O PAÍS DO FOME ZERO é também a nação do
desperdício de alimentos. Cerca de 30% do que é colhido no Brasil vão parar no lixo. Em Santos, a situação não é diferente, produtos que são jogados
fora ainda alimentam muitos e poderiam sustentar outros mais. O Mercado Municipal é apontado por carrinheiros como um dos pontos de maior
desperdício na cidade.
Caixas inteiras de frutas e verduras frescas são jogadas fora diariamente,
só porque algumas delas estão amassadas ou machucadas
Foto: Alex Almeida, publicada com a matéria
Retrato do país do desperdício
Tiago Dória
Não é só o Fome Zero que anda mal das pernas, mas também
a consciência dos santistas a respeito do desperdício de alimentos. Além de produzir 500 toneladas de lixo por dia, a cidade joga fora muito
alimento próprio para consumo. Quem mostra toda essa situação é o carrinheiro Anderson, que levou a reportagem do Jornal da Orla aos locais
de maior desperdício de alimentos na cidade.
Em alguns pontos, é possível encontrar frutas, verduras e legumes frescos no lixo. No
Mercado Municipal, a chamada escolha (separação das frutas para o consumo) é rigorosa. O produto que o cliente
rejeita é jogado fora. "Não posso fazer nada", diz um vendedor. A contradição é tremenda: caminhões chegam abarrotados de frutas frescas enquanto os
catadores recolhem alimentos no lixo.
Atrás do Mercado é possível encontrar uma pilha de batatas e cebolas frescas no lixo.
A maioria dos alimentos despejados ali não está estragada. Os produtos são rejeitados apenas por apresentarem imperfeições. São devolvidos pelos
principais compradores do Mercado: os donos de restaurantes e mercearias. "Se tiver uma fruta machucada numa caixa, eles jogam tudo fora", conta o
carrinheiro.
A poucos metros dali, o contraste é maior: uma fila de pessoas ocupa uma rua inteira
ao lado do Mercado para tomar uma sopa. A refeição é servida por várias entidades da região. "Eu sempre venho aqui. A comida é boa. Estou
desempregado há 8 anos", conta uma senhora de 50 anos com um pedaço de pão numa mão e a sopa na outra. Servida em garrafas de plástico cortadas ao
meio, as sopas são a única refeição diária de muitos que estão ali. Algumas famílias inteiras recebem a sopa.
Quando se chega aos bairros da orla de Santos, o desperdício é ainda maior. Na avenida
Epitácio Pessoa, restaurantes jogam pratos inteiros no lixo. Segundo o carrinheiro Anderson, as padarias são as que depositam mais alimentos no
lixo. "Outro dia comemos pão de queijo. Um pote inteiro da massa que faltava um dia para vencer estava no lixo", fala sorrindo Ana, esposa de
Anderson.
O lixo de Santos é disputado por pessoas de outras cidades. "Tem gente que vem de São
Vicente, Praia Grande e Cubatão. Tem dia que até há briga", conta o carrinheiro. E, segundo o catador, existe dia certo para catar alimentos. "O dia
18 é melhor. Um dia antes, vence a maioria dos produtos e então eles jogam tudo no lixo. Coisas que, às vezes, nem estão vencidas".
E ainda existem épocas certas do ano. "Nas festas de final de ano, no Carnaval, tem
mais comida no lixo. Justamente na época em que a população deveria desperdiçar menos alimentos", diz, inconformado.
Ainda conforme o carrinheiro, atrás dos cemitérios da cidade são os locais preferidos
para se colocar restos humanos. É possível encontrar até fetos. "Outro dia encontramos o corpo de um bebê no lixo. Avisamos a polícia. Não é comum,
mas acontece".
Para o catador, existe uma certa "fartura" no lixo da cidade. Uma máquina de escrever,
walkman, discman e aparelhos de informática fazem parte da coleção de objetos encontrados no lixo por Anderson. Todos funcionando em
perfeito estado.
Carrinheiros entram na guerra contra o analfabetismo
Vanderléia de Freitas tem 33 anos. É mãe de 5 filhos e trabalha como carrinheira,
secretária e dona-de-casa. Apesar da correria do dia-a-dia, sobra tempo para uma das atividades mais importantes em sua vida. Mesmo tendo formação
escolar até a 8ª série, há 6 meses é professora de português e alfabetizadora. Seus alunos são companheiros de profissão: carrinheiros da região do
Centro da cidade que assistem as suas aulas à noite.
Enquanto o Programa Alfabetização Zero não sai do papel, a Pastoral da Criança e a
Associação dos Carrinheiros de Santos se unem para combater o analfabetismo e a pobreza infantil na região do centro da cidade. É uma verdadeira
guerra de gigantes. De um lado, carrinheiros e os agentes da Pastoral da Criança. Do outro, a exclusão social, o desemprego e a miséria gritante de
um dos bairros mais pobres de Santos. O quartel-general fica localizado na Rua Amador Bueno, 446, num grande galpão, onde são ministradas as aulas e
os carrinheiros trabalham.
Os trabalhos entre as entidades são realizados em acordo. A Associação oferece à
Pastoral maior penetração na região do centro com cursos e projetos - como a pesagem de crianças feita no galpão da entidade - e a Pastoral dá
visibilidade e respaldo à Associação. Todo segundo sábado do mês são pesadas cerca de 54 crianças.
Desse combate só saem vitoriosos. "O trabalho melhorou muito. Conseguimos reformar o
galpão: criamos um escritório, um refeitório e uma sala de aula. Agora temos 8 carroças de lixo", orgulha-se Vanderléia. Por semana, no espaço, se
processam cerca de 3,5 toneladas de lixo.
O carrinheiro Anderson mostra a falta de consciência:
caixas inteiras de frutas próprias para o consumo são jogadas no lixo
Foto: Alex Almeida, publicada com a matéria
Apenas mais um na multidão
Anderson e Ana são um casal de catadores de lixo da Associação dos Carrinheiros de
Santos. A história do encontro deles com o lixo, em 2001, no entanto, revelou mais do que a tragédia pessoal de um brasileiro pobre e desempregado
que nunca teve a chance de ser mais do que um catador. Anderson e Ana chamaram a atenção dos associados porque poderiam não estar ali.
Ele era locutor de rádio. "Trabalhei três anos numa rádio em São Paulo". O ano era
1998 e a rádio, comunitária, chamava-se Conexão FM. Ela era funcionária da rádio.
Natural de Santo André, Anderson falava no seu programa de um problema que iria bater
de cara no futuro: a exclusão social. "Muitas pessoas entravam por telefone no ar e pediam cesta básica, emprego, além de reclamar de políticos e
empresários. Era um programa que fazia sucesso no bairro, mas não tinha anunciantes", relembra.
Como muitos de seus companheiros, Anderson desconversa em relação ao motivo de estar
ali. "Um golpe financeiro de meu ex-sócio foi o motivo desse corte em minha vida, acarretando dívidas que nunca seriam pagas. Eu dependia muito da
rádio".
Hoje, com uma calça rasgada, unhas negras de sujeira e tênis enlameados, Anderson é
mais um quando se mistura aos vários catadores que dividem com ele as latas, plásticos e outros recicláveis despejados nas ruas, junto com restos de
comida. Como centenas de companheiros, Anderson tem nome, rosto, identidade e até perfil. "Fiz curso de rádio na Jovem Pan na Avenida Paulista, na
capital".
Com uma renda de 350 reais mensais no bolso, fruto de 12 horas diárias de trabalho, o
carrinheiro sente orgulho do que faz e cita três motivos: ganhar o dinheiro de forma digna, limpar a cidade e preservar o meio-ambiente: "Os
carrinheiros realizam diariamente um trabalho importantíssimo de reciclagem. Coisa que muita dona-de-casa não tem coragem e não sabe fazer".
E prossegue: "Santos é uma cidade que tem uma pobreza de espírito muito grande. O
preconceito é muito grande nesta cidade", diz, citando casos de companheiros de profissão que sofreram agressões físicas e morais. Preconceito que
impede um café da manhã. "Tem padarias em que somos proibidos de entrar, mesmo que tenhamos dinheiro".
Anderson impressiona não só pela clareza das idéias, mas pelo senso crítico e
conhecimento dos problemas sociais do país. "O programa Fome Zero nunca vai dar certo, enquanto a dona-de-casa, o empresário, o dono do restaurante
não souberem a riqueza do lixo, aproveitar alimentos e a importância de se reciclar todo tipo de material.
Apesar dos imprevistos e das dificuldades em sua vida, sobra tempo para pensar no
futuro. |