ZONA NOROESTE
Onde a união fala mais alto
Na região mais carente da Cidade, comunidade forma rede de solidariedade que mobiliza um exército de
voluntários
Rivaldo Santos
Da Reportagem
A chuva acabou com tudo no barraco de Maria da
Conceição. Nem a pequena televisão, comprada em 24 prestações, escapou. Os alimentos estragaram. A roupa da família se perdeu na maré. A tragédia só
não foi maior por conta da solidariedade que contrapôs ao ambiente de desolação.
Enquanto a moradora chorava em um canto do cômodo, um grupo de amigos agia com
rapidez. Em pouco tempo, uma cesta de alimentos já estava na porta da casa. Móveis usados e madeiras para reformar o casebre também foram doados. As
contribuições chegavam de gente que nem conhecia a moradora.
Exemplos de solidariedade não faltam na Zona Noroeste, uma região que, mesmo com a
veloz expansão urbana, mantém hábitos típicos de uma cidade de interior, como a conversa no portão de casa ou em cadeiras na calçada.
Nos momentos mais difíceis, as pessoas se unem. Muitas vezes, para repartir o pouco
que têm. Uma característica que se consolidou com as várias enchentes que causaram grandes estragos nessa faixa da Cidade.
Presidente do Círculo dos Trabalhadores Cristãos da Zona Noroeste, José Joaquim do
Nascimento conhece muito bem o núcleo solidário que funciona silenciosamente. "Todo mundo se conhece. As pessoas ficam sensibilizadas e não negam
ajuda para quem passa por dificuldades", diz Nascimento, que cuida de uma entidade que oferece aulas de balé e cursos de manicure e cabeleireiro
para a comunidade.
Rede social - A solidariedade não fica restrita a ações individuais,
manifestadas em ocasiões excepcionais, como enchentes. Embora não haja números oficiais sobre a rede de solidariedade, estima-se que dezenas de
clubes, associações de bairros, igrejas e até empresas mantenham projetos sociais na Zona Noroeste. Oferecem desde cestas básicas até cursos
profissionalizantes.
Um dos mais atuantes é o Projeto Educacional de Conscientização e Orientação (Proeco).
A ONG criou o Talentos em Ação, iniciativa que pretende contar a história da Cidade e da Zona Noroeste através da arte e da cultura.
Em parceria com o Poder Público e a iniciativa privada, são atendidas cerca de 150
crianças, jovens e adultos, com cursos de desenho, computação, inglês, percussão, dança, teatro e grafite. Os alunos têm o acompanhamento de
psicólogo e assistente social, profissionais que também prestam assistência às famílias.
Marcelo Brito Duarte, professor de teatro no Proeco, ressalta que o projeto não se
limita à formação profissional. "A cidadania é um elemento fundamental neste trabalho. Tentamos mostrar que todos têm condições de vencer, com garra
e determinação para derrubar todas as barreiras".
150 pessoas |
entre crianças, jovens e adultos, são atendidas pelo Proeco, uma organização não-governamental fundada
na própria Zona Noroeste
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Preconceito - Uma dessas barreiras é o preconceito. A Zona Noroeste ainda é
identificada como um lugar de violência e abandono. Nem mesmo o nítido progresso de alguns bairros, que ostentam belas moradias, foi capaz de
derrubar a imagem negativa da área, chamada pejorativamente de "Zona Faroeste".
Thaís da Silva, de 13 anos, admite que já foi vítima de discriminação social. "Foi
numa discoteca. Quando falei que morava na Zona Noroeste, as pessoas falaram que aqui só havia bandido", conta a adolescente, que não deixa se
abater com os comentários maldosos. "É chato ouvir esse tipo de coisa. Mas sempre respondo que bandido tem em toda a Cidade".
A presidente da Sociedade de Melhoramentos da Vila Gilda, Lucinéia Marques de Lima
Souza, já perdeu as contas das provocações que suportou por morar em um dos lugares mais pobres de Santos.
Ela atribui parte da culpa aos meios de comunicação por, indiretamente, promoverem a
desinformação. "A Imprensa só aparece aqui para fazer reportagens sobre a violência. Esquecem que também temos coisas boas para mostrar", diz a
moradora.
José Joaquim do Nascimento, que preside uma entidade filantrópica,
diz que problemas da região sensibilizam os próprios moradores
Foto: Nirley Sena, publicada com a matéria
Empresas incentivam horta comunitária no Rádio Clube
Arar, plantar e colher. Até o final do mês, a comunidade do Dique da Vila Gilda vai
fazer tudo isso em terrenos onde estão instaladas as torres de transmissão de energia da Companhia Piratininga de Força e Luz (CPFL), no Rádio
Clube. O projeto é a realização de um antigo sonho de moradores, que sempre lutaram por uma destinação mais útil às áreas que cortam praticamente
todo o bairro.
Por questões de segurança, os terrenos não podem ser edificados. Por isso, a horta
comunitária recebeu o apoio da empresa e da Petrobrás, doadora de equipamentos de trituração de resíduos.
O projeto está na fase de preparação do terreno, com o depósito de terra própria para
a plantação. Enquanto as primeiras sementes de verduras e legumes não são lançadas nos canteiros, a expectativa é grande. Principalmente dos
moradores mais antigos. Muitos vieram do Nordeste e tinham o hábito de cuidar de pequenas hortas.
"Alguns até se emocionaram quando souberam que haveria uma horta comunitária. Na
verdade, o projeto também resgata um pouco das origens do povo que veio para a Zona Noroeste", conta a presidente da Sociedade de Melhoramentos da
Vila Gilda, Lucinéia Marques de Lima Souza.
Inclusão - A produção da horta será repartida entre as famílias participantes
do projeto, podendo o excedente ser comercializado na região. Além de verduras e legumes, haverá plantação de ervas medicinais. A venda de adubo
orgânico é outra possibilidade.
A psicóloga Sílvia Bari, que presta serviços na comunidade, enaltece os objetivos da
iniciativa. "É uma forma de se conseguir o próprio alimento. Não dá para falar de inclusão social sem trabalho e comida".
Jovens que participam do projeto Arte no Dique aprendem o ritmo da música baiana
Foto: Édison Baraçal, publicada com a matéria
Na Vila Gilda, a esperança vem da batida do Olodum
A meta é ambiciosa: transformar o Dique da Vila Gilda em um lugar de qualidade de
vida. Para cumprir o desafio, José Virgílio Figueiredo, coordenador do projeto Arte no Dique, aposta no modelo de trabalho, desenvolvido pela
ONG Olodum, da Bahia. Ao som das batidas dos tambores, a entidade conseguiu mudar a realidade pobre de Alagados, núcleo populacional da periferia de
Salvador.
Alagados tem uma realidade semelhante ao ambiente degradado do dique, com palafitas
cravadas em área de manguezal. A miséria e a exclusão social também faziam parte do cotidiano dos moradores da periferia baiana. A revitalização só
chegou junto com o projeto cultural comandado pelo músico e compositor Carlinhos Brown. Transformada, a região virou atração internacional, visitada
por turistas de todas as partes do mundo.
Produtor-executivo do Olodum, Figueiredo quer fazer o mesmo na ZN, tendo como base o
Arte no Dique, projeto mantido pela comunidade com a ajuda de empresários e do Poder Público. Em um galpão adaptado, crianças, jovens e
adultos aprendem percussão, teatro e dança. Também participam de aulas de desenho gráfico e violão. Um curso de modelo deve ser a próxima novidade.
"Pode ser que daqui não saia uma Gisele Bündchen, mas, com certeza, teremos uma
profissional habilitada para trabalhar como recepcionista de eventos", diz Figueiredo. Ainda para este ano, o Arte no Dique aguarda a
oficialização da doação de um terreno no Rádio Clube para a construção da sede da ONG. Por enquanto, tudo é feito na base do improviso, como a
música baiana.
Os resultados já começam a aparecer. Três senhoras foram contratadas para realizar
serviços administrativos e dois jovens da comunidade atuam como monitores da banda.
Está no sangue |
"A maioria dos moradores da região tem origem negra.
E o som do tambor tem tudo a ver com a raça"
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José Virgílio Figueiredo
Coordenador do Arte no Dique
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Cultura - As semelhanças entre Alagados e o Dique da Vila Gilda não ficam
apenas nos aspectos físicos. Os traços culturais das duas populações também se assemelham. "A maioria dos moradores da região tem a origem negra. E
o som do tambor tem tudo a ver com a raça. É uma questão cultural", explica Figueiredo.
Natasha Mendes Gabriel, uma das coordenadores do Arte no Dique e do Instituto
Ethos, enxerga outras coincidências, como a baixa auto-estima por conta da exclusão social e do preconceito racial. "Tudo isso está mudando. Em duas
oportunidades, o nosso projeto foi tema de reportagem do Serginho Groissman", diz Natasha, se referindo ao programa Ação, exibido pela TV
Tribuna.
Teatro - Os meninos e meninas da Banda Querô, integrantes do Arte no Dique,
vão participar, em maio, do espetáculo teatral Sem Perder a Ternura Jamais, com textos de Che Guevara e músicas de Gonzaguinha. |