As raízes do mal
(Apenas um exercício de ficção)
Estamos no futuro, ano 2083.
O operador liga o transcomunicador e fala com voz grave: "Estação móvel ST-Y 28
informando ao Núcleo de Comando Espacial. Verificada perturbação no tráfego-luz de aeronaves na entrada de Santos Estelar. Nossos patrulheiros já
estão no local adotando plano especial ZX-32 mas pouco poderão fazer. A culpa é das obras da Via Interplanetária Tarquínio Neto, na entrada da base.
Vamos fazer o possível mas o congestionamento deverá prosseguir por mais algumas horas lunares. Canal preferencial WQR-231 em aberto. Aguardamos
manifestação do inspetor de fluxo galático".
O controlador está irritado: quem será que teve a brilhante idéia de reformular o
acesso principal à base espacial de Santos logo agora, em plena temporada cósmica, quando milhares de visitantes de outros sistemas solares procuram
o nosso supercentro de lazer, turismo e cultura, um dos lugares mais agradáveis e repousantes de todo o universo?
Enquanto observa os pontos luminosos e os focos laser no painel
computadorizado, o controlador recorda as histórias contadas por seu pai, um velho engenheiro núcleo-fissor, o homem que iniciou o grande projeto de
reconstrução de Santos, após a catástrofe de 2020, quando o mar finalmente invadiu a cidade, como previam os antigos profetas do século passado,
destruindo prédios, derrubando morros e matando milhares de pessoas. E lembra que seu pai sempre falava: "Santos foi destruída por suas próprias
contradições, não se pode pensar que as coisas sempre serão iguais, é preciso antever o futuro.
O velho engenheiro sempre dizia do prazer que sentiu ao elaborar o Plano Centralizador
de Renascimento de Santos e, nas noites de vento atômico, costumava contar aos filhos as dificuldades encontradas, a começar pela definição dos
objetivos do empreendimento e da concessão de verbas, que encontrou forte reação por parte do Partido Unificado das Ideologias Utópicas. Muitos
gastropolíticos faziam pé firme, querendo que tudo voltasse a ser como antes, uma réplica autêntica da Santos do passado, igualzinha à cidade de
1983.
Mas os representantes da Frente Contemporânea da Vida Livre fizeram passeatas,
querendo que o passado e suas atrasadas concepções fossem definitivamente sepultados e que a reconstrução obedecesse a novos critérios,
transformando a velha ilha em ponto de convergência para todo o cosmos. Sonhavam com um reduto de paz e tranqüilidade, onde a ética ecológica e o
respeito mitológico fossem o sustentáculo de uma nova sociedade.
Os jovens, é verdade, venceram a votação no Supremo Fórum das Prioridades, mas foram
obrigados a fazer algumas concessões, como permitir a criação de 199 novos cargos de assessoria de sistemas subidealizados.
Estes fatos todos o jovem operador conhecia bem, pois passou boa parte da infância e
adolescência assistindo aos empoeirados discos microfilmados que seu pai guardava com carinho, para preservar a memória da civilização litorânea. "A
história nos ensina a viver para o hoje e para o amanhã", costumava repetir para os filhos.
E enquanto o transmutador de tempo avança, trazendo a noite, o jovem operador lembra
alguns acontecimentos antigos, como a festiva inauguração do sistema de canalização unilateral da poluição de Cubatão, construído às pressas depois
do dia em que o Rio Cubatão pegou fogo e ameaçou mandar toda a Baixada Santista pelos ares. Foi apenas um descuido de um trabalhador da usina de
nêutrons, que jogou um cigarro aceso nas águas.
Mas o operador admirava, na verdade, a filosofia de vida que seu pai conseguiu
instalar junto com o plano de reconstrução. A mudança, auxiliada pela natureza, incluiu uma nova mentalidade comunitária, vivencial, existencial. E
foi assim que o jovem aprendeu a amar Santos.
E é exatamente por isso que ele anda tão preocupado.
Os
novos colonos e o velho jornalista - Acostumado a perceber as mais leves mudanças de comportamento, o jovem operador sabe bem que as alterações
foram muitas, desde os aspectos astro-urbanistas até as implicações metropolíticas. Os eletrojornais não cansam de transmitir os sinais de que
alguma coisa não anda bem.
Primeiro, o Egrégio Controle Populacional resolveu cortar de uma vez por todas a
autonomia espacial de Santos. "O povo andava inquieto e arisco", disseram os protonsábios e nomearam um burgo-intendente para governar. Reações
aconteceram, pois o indicado foi Barbosis VIII, um extraterrestre, alheio à vida do lugar.
E os primeiros tempos do novo governante foram difíceis: a tranqüilidade tão duramente
conquistada, aos poucos desmoronava. Resolveu-se realizar muitas obras grandiosas, como a moderna Espaçovia dos Sobreviventes, mas não havia
intercentavos suficientes. Antigos moradores olhavam assustados as imponentes torres do infinito, habitações coletivas que pareciam chegar às
estrelas, dotadas de transformadores de oxigênio e ambientadores cósmicos.
Para resolver o grave problema da superpovoação da ilha, inclusive na parte aérea, foi
aplicado este complicado sistema de construções nucleares, derrubando prédios antigos e erguendo as novas torres em questão de dias. As torres foram
invadindo todos os locais ainda disponíveis, incluindo o Augusto Centro das Artes Androméticas, apesar de todas as tentativas de tombamento e
preservação.
As pontes submarinas - engenhos metálicos que se estendiam até a laje de Santos, em
pleno oceano - deixaram de ser apenas locais de lazer e pesquisa, para transformarem-se em alternativa de moradia para os microtrabalhadores, que
aqui chegavam atraídos pelas obras de expansão da moderna refinaria de carvão venusiano, recolhido dos asteróides errantes. Espalhavam-se os micro
pelas amuradas, indolentes, famintos, espiando os peixes-mercúrio (altamente contaminados) que perseguiam as lanchas craft de transporte
comunitário, que faziam a ligação com Alfapema.
O Centro de Controle dos Espaços Disponíveis e a Divisão de Encaminhamento
Populacional tentavam traçar diretrizes para abrigar os milhões de habitantes, enquanto o Setor de Multiplicação de Alimentos tenta fazer milagres
com a produção de moluscos exóticos.
No Núcleo dos Novos Colonos Centuriais, o desemprego era total e aumentavam as
agrofavelas. Líderes comunitários viviam gritando nas tele-emoções: "A riqueza tem que ser distribuída entre todos...".
E, para complicar ainda mais, o Hospital das Doenças Vídeo-Transmissíveis estava
fechado, sem verbas, sem poder subsistir, causando uma epidemia de hiperneuroses.
Nas cavernas interligadas dos morros e dos astros de Santos, uma perigosa população
armava-se até os dentes, inclusive com os perigosos lugger-dissolventes, assaltando os visitantes.
Apesar de ter todas as condições para tornar-se um dos locais mais visitados da Terra,
Santos não rendia divisas moleculares ao Supremo Conselho Ditatorial. E, por isso, recebia pouca atenção, apesar de ter o maior espaço-porto do
universo conhecido.
Os turistas também tinham motivos para reclamações: a Colônia Repousante de Bertioga
estava praticamente abandonada, sem transportes e sem os Postos de Distribuição Alimentar, enquanto o Depositário de Animais Alienígenas não
mostrava novas atrações, apenas o velho leão de Saturno.
Por tudo isso, o jovem controlador não tirava da cabeça a figura de um velho e
rabugento jornalista, amigo de seu pai, que vivia escrevendo violentos manifestos pedindo a reintegração no cargo de dirigente doméstico daquele
negro altivo, que havia sido eleito legalmente e exilado antes de tomar posse. E que não cansava de pregar a integração dos andróides.
Pois o velho e rabugento jornalista vivia repetindo: "Este não é um planeta sério!",
indignado com os rumos da civilização e, principalmente, com a saturação da Estação Estelar de Santos.
O
grande retorno - O velho jornalista dizia que o tempo estava retrocedendo, por alguma arte mística ou premeditação dos poderosos. E o jovem
controlador pensava muito nestas coisas.
Naquela noite, voltando para casa no seu rumoplay e olhando a chuva meteórica
cobrir a cidade, ele perguntava-se se algum dia, em todos os tempos, as coisas haviam chegado a este estado deplorável e incerto. Ouvira muitas
lendas sobre os "velhos tempos tristonhos", mas não podia avaliar o que ocorrera lá por volta de 1983. Lembrava apenas a figura de seu venerável avô
praguejando e maldizendo fatos sem nenhum sentido, alguma coisa sobre maxideslocação ou dúvidas externas.
O rumplay atravessava a Cidade, contornando os radares dos prédios envidraçados
e desviando dos grandes anúncios lumiflutuantes que ofereciam maravilhosas máquinas japonesas e tônicos beta-reativantes.
Lá de cima, ele enxergava as ruas escuras (as neuroluminárias estavam todas
danificadas) e cheias de sujeira. Nas esquinas e mesmo nos espaço-terminais, estranhas formas de vida perambulavam, esquivas, ameaçadoras. "Nossa
estação é um bocado triste, parece que a angústia está no ar", pensou.
Pouco tempo depois, no ambiente abafado de um certo ínfimo bar, o jovem controlador
conversava com alguns companheiros da Academia Luminosa dos Acompanhantes Multicelulares. Os copos de etilocanalizador já estavam praticamente
vazios quando o grupo discutia sobre o futuro. As frases:
- "O que será dos nossos filhos, vivendo aqui?"
- "Precisamos fazer alguma coisa, não podemos continuar vivendo apenas dos
vídeo-impostos para sustentar toda a população...".
- "As vilas da Planície Gelada são muito mais novas e arrecadam muito mais do que a
gente...".
- "E os membros do Conselho Curricular do Proletariado continuam sem fazer nada,
preocupados apenas em garantir suas próprias vidas e as longomordomias..."
Já meio entorpecido, o jovem controlador ouviu do mais velho dos seus companheiros a
preocupação maior de todos: "Onde será que erramos? O que fizemos para merecer tudo isso, essas urano-algemas que nos prendem, essa falta de calor,
de generosidade, de interumanidade?"
E, em sua cabeça, sem mesmo saber a razão, apareceu a voz do avô, esbravejando: "83
foi a nossa ruína. Eu cansei de avisar, mas eles não quiseram ouvir. Agora, as novas gerações é que vão pagar por tudo". |