Calçada do Lorena e Estrada Velha, bons acessos para a época, hoje abandonados
Santos em 1894
(ou: a história se repete)
Se a Calçada do Lorena estivesse em obras, a 7 de
setembro de 1822, com certeza as coisas seriam bem diferentes. Os livros de História registrariam, sem crítica, que o grito da Independência deu-se
em Cubatão, "em meio a enorme congestionamento decorrente das obras que interromperam o tráfego na única via de ligação entre a Baixada e o
Planalto".
D. Pedro I, saudoso de sua Domitila (mais tarde Marquesa de Santos) e com as mãos na
barriga, em cólicas causadas pelo cururu apimentado do jantar da véspera, com os Andrada, preso no congestionamento, encontraria aqui os mensageiros
que traziam a decisão de tornar o Brasil independente de Portugal, enfim.
Mas a paixão e as cólicas, aliadas a facilidades de locomoção pela estrada, fizeram
com que a viagem fosse rápida e o encontro deu-se, como dizem os livros, junto ao riacho do Ipiranga, em São Paulo.
Não era a Calçada do Lorena, porém, a única via de acesso entre a Baixada e o
Planalto, quando o cearense Olímpio Lima fundou a Tribuna do Povo, a 26 de março de 1894.
Não há nenhuma ligação entre os fatos acima. Mas, por certo, o combativo jornal do
cearense não deixaria impune a cobrança por estradas melhores ligando o porto e a serra. Já imaginou a loucura: o progresso interrompido por
precário acesso entre a zona de produção do Interior e o porto exportador?
Mas sonhar sempre foi possível ao homem. E o sonho pelo melhor acesso sempre passou
pelas cabeças dos homens de então. Sonhar foge ao controle dos mortais.
E, graças aos sonhos, a Calçada do Lorena logo foi deixada para segundo plano, quando
se concluiu a chamada Estrada da Maioridade, ou Estrada do Mar, em 1844, no 22º aniversário da Independência.
A Tribuna do Povo já encontrou, pois, ao nascer, uma nova ligação rodoviária
entre a Baixada e o Planalto. Ao lado da rodovia tortuosa existia também a ferrovia São Paulo Railway, concluída em 1867. E havia o orgulho da costa
brasileira: o Porto de Santos.
Valor e política - O acesso ao porto sempre foi valioso. Inaugurado
praticamente junto com a Tribuna do Povo, o porto nasceu pequeno em 1892, a 2 de fevereiro, com 250 metros de cais, ampliado para 866 metros
no ano seguinte. Em 1893, mais de mil navios, a vela e a vapor, passaram por Santos, levando, daqui, a fama de maior porto exportador de café do
mundo. Entre 1894 e 1895 exportaram por Santos quase quatro milhões de sacas de café, fechando o ano de 1894 com a espantosa movimentação de 400 mil
toneladas de carga, entre importação e exportação. Só o café rendeu 333.975:049$200. Uma soma astronômica, dir-se-ia então. Para se ter uma idéia, a
Repartição Central de Polícia pagava a um ajudante policial destacado para o porto salário mensal de 3:600$000.
Nem só o porto era o orgulho da Cidade, que ganhou tal título em janeiro de 1839:
também a Santa Casa da Misericórdia, fundada por Brás Cubas, seu primeiro provedor, vivia dias de glória, como a "porta aberta para o mar",
atendendo a marinheiros de muitas nações, na maioria portugueses. Já na época, a Santa Casa vivia de subsídios governamentais: a Lei 310, de 24 de
julho de 1894, que orçou a receita para o ano financeiro de 1894, destinou 50:000$000 de auxílio à Santa Casa, por obra e graça do então presidente
do Estado de São Paulo, Bernardino de Campos.
A 2 de março de 1894, três semanas antes da fundação da Tribuna do Povo, era
publicado o Código Sanitário do Estado, que obrigava a construção de novas ruas com 16 metros de largura e de avenidas com 25 metros de largura. Um
planejamento com os olhos voltados para o futuro, dir-se-ia então.
No item destinado às habitações das classes pobres, que já existiam, era
terminantemente prohibida a construção de cortiços, "convindo para que a municipalidade providencie para que desappareçam os
existentes". Já se controlava nessa época, 1894, as cocheiras e os estábulos, que deveriam existir somente na periferia das cidades.
O progresso avançava rápido: Santos tinha pouco mais de 20 mil habitantes em 1894 (o
recenseamento de 1900 encontrou 50 mil moradores na Cidade) e cerca de 4.500 casas distribuídas pelo Centro de hoje.
Era este o retrato de Santos no ano de fundação da Tribuna do Povo. Foi assim
que o jornal encontrou a comunidade, que almoçava e jantava política e suava pelos poros os últimos raios do verão, porque o jornal foi fundado no
início do outono. Mas a política merece um capítulo à parte.
Política e ebulição - Que falta já fazia a autonomia municipal em 1894!
Nem os vereadores eram eleitos pelo povo: o presidente do Estado os nomeava e, dentre
eles, saía o presidente da Câmara (também chamada Assembléia Municipal), com funções legislativas e executivas. Ou seja: era o homem-forte da
Cidade, como presidente da Câmara e prefeito nomeado ou intendente municipal.
Mas, o vento da esperança também já soprava naquela época. Santos vivia uma política
mambembe, dividida entre as teorias monarquistas (apagadas com a Proclamação da República, em 1889) e os ideais democráticos da nova República. Foi
assim que o único partido da época, o Republicano, dividido por brigas internas, explosivas, reuniu-se para dar a Santos a primeira (e única)
Constituição Municipal, dividindo os poderes Legislativo e Executivo em dois e promovendo eleições diretas a vereador. Não sem antes eleger o
primeiro prefeito indireto, casuístico, o baiano Manoel Maria Tourinho, presidente da Câmara que delegou poderes para se ter a primeira Constituição
local.
Com ela, foram eleitos a 1º de dezembro de 1894 os primeiros vereadores; o próprio
Tourinho estava na lista, como também estava o diretor da Tribuna do Povo, Olímpio Lima, e o jornalista Alberto Veiga.
No lançamento da primeira carta de princípios e direitos, liberal e democrática (pelo
menos em tese), a 15 de novembro de 1894 - e que teve como autor intelectual o poeta Vicente de Carvalho -, os discursos referiam-se ao clamor do
povo santista, por autonomia municipal.
A ebulição, na política, era constante. Resquícios da Revolta da Armada, em 1893 -
levaram Custódio de Mello a invadir Santos e bombardear o porto -, davam o clima de guerra à pacata Santos. De um lado, políticos favoráveis a
Floriano Peixoto; de outro, antiflorianistas ferrenhos brigavam em dois grupos, chefiados por Manoel Tourinho e Américo Martins dos Santos (junto
com Ricardo Pinto de Oliveira).
Olímpio Lima, antiflorianista exaltado, travou célebres batalhas verbais contra um
pró-florianista, o negro Quintino de Lacerda, ex-chefe do Quilombo do Jabaquara, eleito vereador em dezembro de 94. Quintino renunciou pouco depois,
não sem antes pedir a cassação de Olímpio Lima, por falta a seis sessões consecutivas na Câmara.
Assim, por culpa das diferenças internas do Partido Republicano, o fim do ano de 1895
marcou o fim das esperanças do povo santista de enxergar ao longe (mas enxergar) a autonomia municipal e a eleição direta do prefeito; as brigas
levaram à extinção da Constituição Municipal, enquanto os vereadores, contentes, festejavam a mudança da Câmara para um prédio nobre, de estilo
colonial. O casarão de número 4 do Largo Marquês de Monte Alegre, no Valongo, por lei do presidente do Estado, passou a receber os vereadores e o
prefeito-intendente, formando o conjunto de comando da Cidade, num regime sem a participação popular direta.
O ar democrático da República foi para o espaço. Sob os protestos do povo, ávido de
participar de seus destinos. |