A campanha da Abolição
INTRODUÇÃO
Tão importante se nos afigura o trato do problema do
negro no Brasil e particularmente em Santos que, descrevendo o movimento generoso da Abolição, reconhecemos de nosso dever, nesta nova edição da
nossa História, trazer ao conhecimento do grande público estudioso detalhes recuados e quase totalmente desconhecidos, em nossos dias, das
origens do mesmo problema, e que no entanto estão profundamente ligados à sociografia brasileira.
De fato, se existiu entre nós um movimento de Abolição, existiu a massa negra, e
existindo esta massa sociogênica, que em nosso país chegou a orçar (em estado de pureza) por três milhões de indivíduos aproximadamente, necessário
se torna que conheçamos o processo de transferência e difusão e, mais do que o processo, o tipo de composição, da mesma massa transferida e difusa,
para a necessária compreensão dos fenômenos históricos e sociais verificados e conseqüentes, atingindo não somente o campo étnico mas também o
econômico, o religioso, o musical, o coreográfico e o folclórico.
Nossa intenção é servir aos sociólogos e aos que
estudam esses campos, em conjunto, ou isoladamente, e só isso justifica a presente introdução produzida para abertura deste capítulo, na qual nos
valeremos muito da ciência e da pesquisa alheias, dos ensinamentos daqueles que mais e melhor estudaram os fatos distantes das transferências
africanas para o Brasil, naqueles seus detalhes mais desconhecidos.
***
Desde o princípio do século VIII, os árabes
(muçulmanos) haviam tomado todo o Norte africano (mahgrib ou mahgreb), dominando as mais bravas nações
berberes, como ponto de partida para o domínio total ou quase total do chamado continente negro.
Após a execução do plano principal, que os levara a fazer do Norte da
África o trampolim da conquista do Mediterrâneo, das ilhas, do extremo da
península itálica e de toda a península ibérica (Espanha e
Lusitânia) - onde por muitos séculos permaneceriam como senhores -, trataram os árabes das algaras,
que ao tropel dos seus zenetas e amazigues, ao soar arrepelado dos alboques e analfis, deviam reduzir, por todo o século VIII e depois pelo IX, a um
total domínio, em verdade barbaresco, as regiões e os povos mais distantes e mais interiores do grande continente, até onde os levasse a sua sanha
guerreira e exploradora de escravos [1], apoiados nisso pela bolsa judaica,
sempre cheia e sempre voltada à mercancia, até mesmo a humana.
O primeiro comércio de cativos, segundo os melhores autores, foi exercido por eles em
meados do século VII, continuado depois, pelos séculos a seguir.
Ao entrar do século XVI, perdidos os domínios europeus de tantas centúrias, e abertos
novos campos de negócio à mercadoria humana, com o povoamento das colônias espanholas e portuguesas das três Américas, acentuou-se o movimento das
algaras árabes, preadoras de escravos, em todo o coração africano, onde os portugueses, principalmente, tentavam fixar-se, ampliando suas conquistas
anteriores.
Àquela altura, tribos negras de várias regiões já se haviam muçulmanizado, pela força
ou por conveniência, tornando-se tributárias pacíficas dos dominadores de tantos séculos, evitando o próprio extermínio.
O tráfico tornara-se uma organização, dirigida por muçulmanos e judeus, que, desde
muito, procuravam valorizar o homem destinado à venda no mercado internacional, dando-lhe uma educação relativa, uma religião (monoteísta) e
ensinamentos profissionais diversos, que o habilitariam a sofrer menos, desviando-o do futuro eito comum, do viramundo, do bacalhau, da pargalheira,
e, principalmente, dos porões infectos, e tantas vezes fatais, dos navios negreiros.
Começava na própria África a preparação de castas negras que
deveriam surgir, mais tarde, nos Estados Unidos da América, nas
Antilhas e no Brasil. Surgiam os malés e muçulmis, principalmente entre ussás, cabindas, mandingas e nagôs, como negros de classe
e preço; separavam-se os iorubanos [2] caçados como bichos, nas mesmas
algaras assassinas dos séculos anteriores, compondo a multidão anônima que se destinava aos porões dos negreiros e aos mais baixos e mais brutos
ofícios de todos os ergástulos coletivos.
Nos últimos lustros do século XVI, os cenários e as cenas eram esses, a coincidir com
a organização da Companhia Geral do Comércio no Brasil, detentora do privilégio do tráfico, e, conseqüentemente, com o aumento das importações
brasileiras. Data mesmo da organização daquela Companhia o comércio em massa (por atacado) da criatura humana, que tivera a desgraça de ser negra,
dirigida a força da corrente traficante, principalmente, para a Bahia e Pernambuco, com elevada porcentagem (seja dito de passagem) daqueles
malés e muçulmis, concentrados em Lagos, na Guiné portuguesa,
ao fundo da grande baía de Benin (5 graus ao Norte da Linha do Equador).
Vejamos agora os mesmos fatos descritos por dois mestres desaparecidos:
José Maria dos Santos e Nina Rodrigues [3]:
"Para bem compreender o fecundo mas tão doloroso fenômeno das migrações africanas para
as terras do Novo Mundo, é preciso saber e recordar que elas coincidiram, no tempo, com a invasão da África
Equatorial pelas hordas maometanas providas de armas de fogo. À pressão feroz e destruidora da catequese islamita, de inspiração muçulmana,
cujas vagas sucessivas se formavam no Alto Egito e na Tripolitânia,
ruíram grandes nações e povos inteiros desapareceram.
Ainda no último quartel do século XIX, a resistência mais tenaz oferecida à penetração
colonial de ingleses e franceses no centro da África proveio de ordens religiosas, no gênero dos Senussya, monopolizadores do tráfico de escravos
por velha concessão dos padixás de Constantinopla. Durante três séculos, os habitantes da África Equatorial
viveram no terror das caravanas de catequese.
Aquelas populações, ainda presas a uma concepção mitológica do universo e servidas por
uma indústria militar que não ultrapassava as armas de arremesso e os escudos de vime ou de couro de hipopótamos, viam os expedicionários do
Crescente surgir de surpresa em suas terras. Passado o irresistível primeiro contato da mosquetaria, era necessário, debaixo do fumo das habitações
incendiadas e sobre o solo umedecido pelo sangue dos primeiros sacrificados, optar por uma das três hipóteses: converter-se imediatamente à nova
religião, entregar o pescoço à cimitarra, ou partir em cativeiro. Formava-se assim, como um inenarrável rosário de agonias, a longa e sinistra
enfiada das gargalheiras, que, semanas depois, vinha, na costa do Atlântico, encher os porões dos navios negreiros, a troco de moeda, de armas ou de
munições diversas."
Os traficantes portugueses, espanhóis ou de qualquer outra procedência européia, não
tinham forças para, no sertão, penetrar o bastante a uma grande e proveitosa presa. Pelo menos por muito tempo foram as razzias mouras, mais
ou menos religiosas, mas sempre depredadoras e escravagistas, as suas principais fornecedoras. O grande império
Cabinda, de que ainda hoje restam tão vivas tradições em certos meios negros da Bahia, foi destruído em 1591, por um bando vil de aventureiros,
armados de mosquetes, que desceu do Marrocos, através do Saara, ao
mando de um renegado espanhol, posto por interesse ao serviço do sultão de Fez (vide Maurice Delafosse, Les Noirs de l'Afrique - Payot,
Paris, 1922, pág. 78) (N.E.: Fès ou Fez, em árabe Fas, é um centro religioso, administrativo e cultural fundado em 793
na região interiorana do Norte do Marrocos, nas coordenadas 34º00' de latitude Norte e 5º00' de longitude
Oeste).
A migração negra para os países americanos foi, portanto, o reflexo exterior de um
grande acontecimento político-religioso de caráter interno ou continental, que abrangendo toda a imensa área que vai da costa do Atlântico aos
desertos, e dos limites do Senegal ao Oceano Índico, constitui, certamente, um dos dramas mais vastos e
dolorosos da história do homem sobre a terra.
"No produto daquelas terríveis caçadas ao animal humano, todos se
confundiam. Ricos e pobres, soldados e trabalhadores do solo, sacerdotes e artífices, príncipes e simples pastores, tudo se amalgamava, a caminho do
mar, na mesma multidão tropeçante e carregada de ferros. As jóias e os amuletos preciosos, as grandes plumas, os panos vistosos e brilhantes, tudo
quanto estabelecia a distinção visual de classes e condições, era logo arrebanhado como primeiro lucro. O que se despejava depois no fundo dos
porões era um rebanho torvo e uniforme, inteiramente nivelado pela desgraça e apenas computável por cabeças [4]."
Eis o panorama geral, desdobrado por José Maria dos Santos
[5], dos iorubanos ou apanhados no mato, laçados, caçados, apreendidos e
acorrentados, em estado bravio e em momento de revolta, só amansados à força de sofrimentos, através das distâncias e dos desertos, em longas
caminhadas, criando em cada indivíduo assim preado, e que conseguia sobreviver a tantas penas, o recalque permanente, o ódio ao escravizador de
qualquer natureza, a vontade constante de fugir, de reconquistar a liberdade, idéias fixas que iriam produzir assassínios futuros (contra senhores
ou capatazes) ou fugas para as florestas, formadoras de quilombos.
Eram esses os atirados ao fundo dos porões de todos os barcos negreiros, como feras
amontoadas, satisfazendo de qualquer modo, e acorrentados, as suas necessidades fisiológicas, envenenando-se com as suas emanações, morrendo de
fome, de desnutrição, de escorbuto (avitaminose do tipo C), de cólera, de varíola, de febre amarela, até de raiva, contaminando os portos onde
chegavam.
Haveria distinções dentro da própria desgraça de ser cativo, e eis o que
veremos, em descrições de caráter científico do grande Nina Rodrigues, conhecendo melhor a história dos malés e muçulmis
muçulmanizados e judaizados (confrorme a crença dos doutrinadores e preparadores), que embarcavam em melhores condições, descansados, bem tratados,
vestidos, representando um capital a zelar, e destinados, por isso, a pontos e regiões conhecidos pelos judeus traficantes de
Lagos, que preferiam escravos desse tipo e pagavam o que eles valiam, principalmente os Estados Unidos, a
Bahia e Pernambuco, os pontos do mundo onde se localizavam em maior número os mercadores judeus [6].
O depoimento do sábio médico e sociólogo baiano Nina Rodrigues, a respeito
destes malés e muçulmis, elaborado em 1884/1886, foi publicado anos mais tarde (1900) em francês (talvez para que obtivesse maior
difusão no mundo científico internacional). Para não perder o sabor e a originalidade e também para que nada se altere no pensamento do mestre,
reproduziremos suas passagens como foram escritas e publicadas [7]:
"La forme par excellence du fétichisme des africo-bahianais c'est l'animisme diffus,
c'est-à dire "l'attribution à chaque être et à chaque chose, d'un doube fantôme, esprit, âme, indépendant du corps où
il fait sa residence momentanée". Mais il est incontestable que pour les plus intelligents, pour ces métis d'esprit si
non de corps, d'ici ou venus d'Afrique, la religiosité atteint les bornes du polytheisme.
"Comme forme de culte organisé, je crois qu'il
n'existe à Bahia que la religion des Yorubans et des Yébus [8], vulgairement
appelée de "Saint" ou de "candomblés", et la religion des nègres convertis à l'islamisme, qu'ils appellent entre eux "musulmís",
mais que d'autres noment "malés", par mèpris, semble-t'il" [9].
"Les "malés" ou "musulmís" qui professent un islamisme plus ou moins
entaché de pratiques fétichistes, ne sont aujourd'hui q'une petite minorité dans l'etat de Bahia. Ils n'ont pas réussi a transmettre leurs croyances
aus créoles qui en sont issus. Un vieil africain, petit commerçant et prête de sa confession religeuse, me disait que la religion des nègres de "saint"
et même celle des catholiques, sont beaucoup plus faciles, amusantes et attrayantes que celle des "musulmís", qui s'imposent une vie austère,
astreinte à l'observance des principes religieux qui ne tolerant ni fêtes ni libations.
C'est porquoi, me disait'il, les fils de malés ont peu de tendance
à suivre les croyances de leurs pères, et qu'une fois emancipés ils embrassent facilment la religion yorubane ou le catholicisme
[10].
"Les "malés" constituent une societé africaine tout-à-fait à part et qui se
fait remarquer pas l'austerité de la vie intime, par l'observance plus ou moins fidèle de ses prèceptes de foi, par la croyance en un Dieu supérieur
et par l'inadmission aux cultes d'images ou d'idoles. Ou dit qu'ils croient avec ferveur aux talisman "gri-gris" etc... et passent pour des
sorciers consommés. Leur genre de vie contribue peut-être beaucoup à maintenir la creinte que leurs associations inspirent auxs autres nègres, qui
les croient possesseurs de secrets magiques et d'envoutement. Les objets, les instruments de précision des européenes ne constiuerant'ils pas en
Afrique des peuves de supériorite des sorciers blancs?
"Un nègre employé de la Faculté de Medicine m'a declaré que, quoique catholique
convaincu et n'ajoutant aucune foi aux saints africains ni aux "candoblés", il avait un profond respect pour les sorcelleries des "malés"
et que toujours il priait Dieu de l'en préserver.
"Le qualificatif "malé" rapelle peut-être celui de "malinkés"
employé par les Mendigas, qui sont aussi des musulmans. Le vieux prêtre "musulmí" m'a assuré que la pluspart des "malés" de Bahia sont
de Haoussa. Cette nation africaine a été jadis très puissante d'ans l'Etat de Bahia; elle formait une societé si solidement assise sur la base
religieuse qu''elle a pu provoquer plusieurs fois des séditions d'esclaves fortes et graves [11].
"Monsieur le Dr. Francisco Gonçalves Martins, depuis Vicomte de Saint
Lourence, alors chef de police adressa au président de la Province, en 1835, un rappórt sur la dernière insurrection des "malés", qui a
éclaté pendant la nuit du 24 au 25 janvier, rapport fort instructif à cet ègard [12].
L'extrait suivant de ce document officiel donne une idée exacte de l'organisation
religeuse des "musulmís":
"....l'insurrection etait ourdis depuis longtemps et le secret
inviolablement gardé; le plan en était dressé avec une superiorité que la brutalité et l'ignorance de ces gens-lá ne permettait pas d'espérer. En
general presque tous savent lire et écrire en caractères inconnus qui ressemblent auxs caractères arabes usités chez les Ussas (Haoussa) lesquels
paraissent s'être entendus aujourd'hui avec les nagôs. Cette nation (Haoussa) est celle qui s'est insurgée jadis plusieurs fois dans cette Province
et que les nagôs ont remplacée depuis. Il y a des maitres qui donnent des leçons et qui se sont chargés d'organiser l'insurrection dont faisaient
partie beaucoup d'africans affranchis et même riches. Ou a trouvé un grand nombre de livres; quelquer uns, disent'ils, renferment les préceptes
religieux tirés du melange des sectes, principalment du Korân. Ce qui est certain c'est que la religion entrait pour partie dans les causes du
soulevêment et les chefs persuadaient aux misérables que certains papiers (évidemment des talismans "gri-gris") les préserveraient de la mort,
ce qui fait que dans quelquer recherches que nous avons faites nous en avons trouvé une grande quantité sur les cadavres et dans les vêtements
riches et étranges qui paraissaient appartenir aux chefs" [13].
"Les documents qui on été pris et que visait le chef de police existent encore
aujurd'hui dans les archives publiques. Il est probable qu'ils sont écrits en arabe, car le vieil prêtre "musulmí" m'a avoué que la religion
a été propagée, surtout par des nègres musulmans venus d'Afrique ou par des affranchís qui on revenaient après une promenade, et dout un grande
nombre avaient fait le pélerinage religieux de la Mecque. On m'a dit, aux archives publiques, que des nègres "malés" invités à déchiffrer les
documents, déclarérent, qu'ils se rapporttaient pour la plupart à des précepts religieux. Cellas est plus que probable, car chacun sait que des
versets du Koran, ècrits sur des petits morceaux de papier et portés en amulettes au cou, constituent um "gri-gris" fort estimé chez les
nègres musulmans.
"L'un d'eux, cependant, s'est refusé à traduire un des documents, sous prétexte qu'il
ne pouvait le faire sans l'autorisation préalable du chef de la sècte.
"Les mesures sévères prises par le gouvernement, au nombre
desquelles figurait la déportation en Afrique de tous les "malés" provinciales, non seulement cruelle et inhumaine des autorités provinciales, non
seulement réduisierant à un chiffre insignifiant le nombre des nègres mahométans, mais encore les rendirent plus dissimulés dans les pratiques de
leur foi religieuse. Un vieil "malé" me disait: "Ils nous laisserent à peine ce que nul ne peut toucher: la foi
qui vit au coeur"[14].
"Il ajouta que les préceptes qui y sont enseignés sont observés autant que
le permettent les autorités civiles et ecclésiastiques ainsi que les lois du pays. Cependant, malgré les conditions de l'esclavage, les privilèges
de l'ancienne religion de l'Etat et les persécutions qui suivirent les mouvements séditieux des africains, l'islamisme, ou dire de plusieur "malés",
reçoit encore un grand nombre de convertís, même des anciens esclaves de prêtes catholiques qui ne donnaient pas toujours l'exemple de la sagesse et
de la pureté de moeurs que l'on et en droit d'attendre d'eux [15].
Aqui termina a transcrição de Nina Rodrigues, em complemento à outra de José Maria dos
Santos. Bem se vê que a questão do negro e sua influência na vida brasileira é bem mais complexa do que tem parecido à nossa gente, e que só um
estudo realmente histórico e realmente científico poderá conduzir à sua exata compreensão, em todo o seu pitoresco e em toda a sua profundidade.
Além, por detrás de um José do Patrocínio ou de um Quintino de Lacerda, pode estar todo um
back-ground de heranças que é preciso compreender.
Gustavo Barroso, historiador de grande cultura [16],
parece ter sido o único secundador de Nina Rodrigues, na compreensão do problema e dos fatos descritos, e assim escreveu um interessante trabalho a
que deu o título de "Uma Guerra Maometana no Brasil", com os subtítulos: "A religião de Maomé na Bahia" - "Os negros malés" - "Suas
revoltas" - "A Guerra Santa de 1835", de onde respigamos os trechos a seguir:
"A religião de Maomé e a civilização árabe chegaram ao
Brasil através dos escravos importados das regiões africanas de cultura árabe [17].
Tentaram até deflagrar uma gUerra santa na Província da Bahia, onde eram numerosos. Davam-se a si próprios o nome de "Muçulmis", muçulmanos,
mas os outros escravos negros de origem bantu ou congolesa os denominavam "malés", isto é, gente do Império Africano e Maometano do
Niger/Mali. Malé era uma corrutela da palavra Malinké,
gente de Mali [18].
"Esses escravos muçulmanos pertenciam aos povos haussás ou auçás, nagôs ou jorubas,
tapas, geges, grunas, bornos, cabindas, minas, calabares, jobus, mendobis e benins. Não seguiam ortodoxamente o Corão, porém as práticas duma das
seitas do Islão, que se tinham espalhado pela África. Alguns possuíam certa instrução, muitos sabiam ler e escrever a língua árabe. Obedeciam a imãs
chamados limanos ou alumás (imames), e a marabutos ou santarrões.
"As primeiras insurreições desses negros maometanos na Bahia foram preparadas pelos
auçás em 1807 e 1809, sendo esmagadas pelo Governador, o Conde da Ponte. Durante os anos de 1813 e 1816, o Governador Conde dos Arcos venceu duas
novas rebeldias desses mesmos auçás. Em 1826, 1827 e 1828, os jorubas se levantaram por sua vez, foram vencidos e duramente castigados pelas
autoridades. Em 1830, nova revolta abortou devido a uma denúncia.
"A guerra santa [19]
explodiu em 1835. Durante essa época, devido à Revolução dos Farrapos no Rio Grande do Sul, as províncias do Norte, entre elas a da Bahia, estavam
desprovidas de tropas. Os "muçulmis" ou "malés" aproveitaram essa circunstância favorável para um golpe de surpresa que lhes devia
entregar a cidade do Salvador, onde pretendiam chacinar os brancos e proclamar uma rainha negra, a escrava Sabina, que afirmavam ser uma princesa na
sua terra natal. Para se reconhecerem durante a luta, todos deviam usar uma gandura ou camisola branca com cinta vermelha. Todos os documentos dessa
grande conspiração, escritos em língua e caracteres árabes, acham-se no Arquivo Nacional.
"O movimento devia eclodir durante a noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, durante
os festejos tradicionais no arrabalde do Bonfim, a cuja famosa igreja quase toda a população da cidade costumava ir em peregrinação. Os escravos
marchariam de vários pontos sobre a cidade semi-deserta e se apoderariam dos quartéis e pontos estratégicos, semeando por toda parte a confusão e a
morte.
"Tudo fora minuciosamente preparado em segredo, no seio das djemas ou
associações religiosas que mantinham os escravos em contato, sob a orientação da sociedade secreta Ohogho. Escravos libertos, enriquecidos no
comércio e pequenas indústrias locais, forneciam armas, munições e dinheiro. Havia escravos organizados em grupos militares e muito bem armados.
Mulatas e negras libertas serviam de elementos de ligação.
"Duas dessas mulheres se apavoraram na última hora e denunciaram a conspiração às
autoridades, que tomaram logo providências de caráter militar".
Após descrever a revolução, suas marchas e pormenores, continua Gustavo Barroso,
discorrendo sobre o final dos fatos revelados pelos documentos do Arquivo Nacional:
"Pela manhã, o movimento rebelde estava inteiramente dominado. Enchiam-se as prisões
de escravos vencidos. Instaurou-se um processo que só terminou nove anos mais tarde, em 1844. Muitos dos rebeldes presos, condenados à morte, foram
fuzilados ou enforcados; outros receberam penas de prisão mais ou menos longas; enfim, alguns voltaram para a África, mandados pelas autoridades,
pois não tinham grandes provas contra eles e os reputavam perigosos, capazes de novas articulações. É provável que fossem esses, os sacerdotes
maometanos da pretalhada, os chamados alumás ou limanos".
"Esta foi a Guerra Maometana que houve no Brasil e da qual pouca gente tem
notícia. Ameaçadora e de curtíssima duração. O povo traduziu a seu modo o nome dos participantes dessa frustrada Guerra Santa: Malés, gente de má
lei, da lei má, más-leis... A lei má era o Corão, que espiritualmente regia esses pobres negros trazidos do Benin e do Senegal, que os antigos
cronistas lusos chamavam Canagá" [20].
O mesmo Gustavo Barroso diria em outro trabalho, "A Maçonaria
Negra de Vassouras" (em 6/10/1951): "Ainda está por ser devidamente escrita, com todos os pormenores, a história da
escravidão em nosso País" [21].
Até agora, somente têm sido descritos alguns de seus aspectos; mas inúmeros existem e dos mais interessantes,
completamente ignorados. Um deles é, sem a menor sombra de dúvida, o das organizações secretas e religiosas da escravaria, com poderosa atuação em
movimentos insurrecionais, cabendo entre elas o primeiro lugar aos famosos malés ou negros auçás muçulmanos da Bahia, que várias vezes se
rebelaram do fim do século XVIII à primeira metade do século XIX. Essas conspirações baianas tiveram articulações ou repercussões em outras
Províncias do Império, nas quais o desenvolvimento da lavoura implicava na existência de numerosos escravos.
"Como exemplo notável disso, basta descrever o que ocorreu no tradicional município de
Vassouras, na província fluminense de grande riqueza agrícola, ao tempo da Monarquia. Num de seus mais conhecidos distritos, o do Patí do Alferes, a
13 de novembro de 1938, rebentou uma grande revolta de negros etc."
Era o drama de Manuel Congo e sua companheira, a bela Maria Crioula, aclamados, pelos
rebeldes, Rei e Rainha do novo quilombo formado, e desta vez no Sul. O Governo Imperial entrou em cena, como descreve Barroso, mandando seguir para
Vassouras um destacamento de tropas regulares, para vingar a derrota das primeiras forças enviadas contra eles, compostas pela Guarda Nacional de
Vassouras, comandada por Laureano Correia e Castro, depois Barão de Campo Belo, assessorado pelo Major Lourenço Luiz de Ataíde e outros distintos
policiais daquela milícia, como Antonio Correia e Castro e Carlos Teixeira Leite.
O choque deu-se a 11 de dezembro de 1838, e os negros foram derrotados, destroçados em
"espantosa matança", presos os seus cabecilhas. Fez-se o processo da rebeldia, com inquirições de testemunhas e outras exigências legais. O Rei
Manuel Congo foi condenado à morte, e enforcado na forma da lei, a 6 de setembro de 1839. Outros negros, como Justino Benguela, Antonio Magro, Pedro
Dias, Belarmino de Tal, Miguel Crioulo, Canuto Moçambique e Antonio Angola, receberam a pena de 650 açoites parcelados, com aplicação de gargalheira
com haste, por três anos; Maria Crioula, a bela Rainha efêmera, foi absolvida.
"O mais curioso- conta Gustavo Barroso
- é que, de acordo com os documentos do processo em questão, descobriu-se a existência de uma grande sociedade secreta
de escravos, dividida em círculos de diversas categorias, cada um dos quais com cinco membros, cujo chefe recebia ordens do de categoria
imediatamente superior. Essa cadeia hierárquica ia até o chefe principal" [22].
Bem se vê como estamos longe de conhecer a nossa própria História, que repousa, em
suas passagens principais, em três tipos de Maçonaria: a Judaica, do povoamento e colonização; a Francesa, da Independência, da Liberdade de
consciência, da Abolição e da República; e a Maometana ou Muçulmana, da escravidão ou dos negros classificados, de Palmares e dos grandes Quilombos
dos séculos XVIII e XIX.
Com isso perdemos o melhor do mistério que ainda hoje envolve, desde um "Bacharel"
Mestre Cosme Fernandes, da fundação da primeira São Vicente, um João Ramalho do povoamento e fundação de Piratininga, um Zumbi dos Palmares, um
Tiradentes, um José Bonifácio, um Pedro I, um Visconde do Rio Branco ou um Rui Barbosa.
Mas fiquemos por aqui. Assim como não devemos considerar como simples e comum
português o homem que veio de Portugal nos séculos XVI e XVII e até certa altura do século XVIII, para sabermos quem realmente somos e de quem
viemos, da mesma forma e pela mesma razão, não devemos considerar, genérica e simplesmente, como escravo africano, como negro da África, o homem de
lá trazido para o Brasil, como se todo ele fosse igual, para não permanecermos na perpétua incompreensão histórica e sociológica e em seus enganos
conseqüentes, que a pesquisa moderna e a moderna metodologia filosófica já não mais aprovam ou justificam.
O que vimos acontecer na Bahia e em Vassouras, no Norte-Nordeste e no Centro-Sul do
Brasil, deve ter acontecido também neste nosso Estado de São Paulo (antiga Província), em ligação com a nossa História regional ou santista, e não é
fora de propósito que coloquemos nesse plano o enorme e famoso Quilombo de Jurubatuba e Bertioga, atacado e destruído em sua maior porção, em 1835 -
naquela mesma época dos fatos muçulmanos da Bahia e de Vassouras -, que, segundo os relatos daquele tempo, abrigava em seus redutos das serras
virgens (do Quilombo, Jurubabuba e Jaguareguava) alguns milhares de canhemboras ou jabás, fugidos das fazendas paulistas, das regiões de Campinas,
de São Paulo, do Paraíba (N.E.: Vale do Paraíba, entre São Paulo e Rio de Janeiro), de
Santos e de Ubatuba.
É pena que destes nossos fatos ainda não tenham aparecido os documentos policiais,
transmitidos à Justiça.
Os dois grandes movimentos nacionais, que marcaram, em extraordinária simbiose, a
extinção do escravismo e a terminação do Império, formando página única na história geral brasileira, têm sido tratados em dezenas de obras e por
dezenas de autores de capacidade vária e maior ou menor pesquisa própria. Tais movimentos, porém, em seus aspectos locais e regionais,
reservadamente santistas, nunca tiveram, até 1937 (aparecimento da primeira edição desta obra), o seu tratadista ou historiador, que,
considerando-os em extensão e em profundidade, pudesse demonstrar à posteridade ter sido aqui, na terra "da fraternidade e da liberdade", o ponto
mais alto, observadas as proporções, de ambos os movimentos em todo o Brasil.
Isso mesmo confessaria em Santos, em 1938, o criminalista, orador e
historiador Evaristo de Morais, grande figura da inteligência e da cultura nacionais, reconhecendo que "ninguém poderia conhecer a história da
Abolição do Brasil, sem conhecer a história do movimento em Santos, como ele não conhecera até 1937 apesar de possuir livro sobre aquele magno
assunto" [23].
Este capítulo especialíssimo traz nesta edição algum acréscimo e
alguma alteração, relativamente ao da primeira, de 1937, como notarão os leitores atentos e estudiosos, reconhecendo, sem dúvida, o empenho do autor
em transmitir um conhecimento ainda mais completo dos fatos, das circunstâncias e dos homens, sem pretender contudo esgotar o assunto.
[...]
Notas:
[1] As algaras árabes
da África se repetiriam no Brasil, em São Paulo (antiga Capitania de S. Vicente), passando de algaras a "bandeiras" e de árabes a
paulistas (seus derivados étnicos), com os mesmos característicos e quase com as mesmas finalidades.
Aliás, o nome "Bandeira", com o sentido paulista ou nacional dos séculos XVI e
XVII, aparece pela primeira vez no século IX, no título de uma obra do historiador árabe Mahomed Ibn Muça-Ar-Razí, vindo para a Espanha naquele
século, onde viveu muitos anos, falecendo em 886.
Tal obra intitula-se "Relação das Bandeiras" e foi encontrada na Biblioteca de
Sevilha, pertencente, segundo julga o Dr. Garcia Domingues, a Al-Radi, filho do rei sevilhano Al-Mohtâmide, grande poeta. Tratava das expedições e
conquistas árabes, descrevendo os lugares conquistados.
As "bandeiras" árabes, constituindo as algaras previstas e ordenadas no
Alcorão, obrigatórias no princípio da primavera, foram as inspiradoras das Cruzadas cristãs, de alguns séculos depois, que tantos despojos e tantas
riquezas proporcionaram a muitos dos seus componentes e organizadores, além de produzirem, pelos contatos com povos superiores em cultura e em
civilização, o aparecimento das Universidades européias e toda a base do Renascimento ocidental, cristão.
[2]Malé era um
vocábulo árabe, equivalente a Malí, do árabe mâl "riqueza" e "i" - adjetivo relativo ou ético árabe, do masculino, significando
ação, natureza, origem etc. Aludia à qualidade dos negros, educados, muçulmanizados, preparados em ofícios, selecionados e prontos, assim,
para obter e proporcionar bons preços aos seus vendedores. Constituíam uma riqueza naquele tipo de comércio. Muçulmí era o mesmo que
muçulman, muçulmano, aludindo ao negro preparado na doutrina de Maomé, religiosamente equiparado ao branco árabe, protegido, educado,
valorizado para todos os efeitos.
Iorubano era um vocábulo hebraico, de "Ior" - "floresta", "Hu"
- "ele" e "Bana" - "construir, edificar, levantar - etc." ou "Báan" e Bâan" - "fechar, terminar, cerrar,
encerrar", significando "ele, o indivíduo feito na floresta, à lei da natureza, primitivo, ignaro, em bruto; ou fechado, encerrado no mato,
na brutalidade" - forma depreciativa, distinguindo o negro assim determinado do malé ou malí e do muçulmí - os educados,
preparados para a vida e para o negócio. A importância desses vocábulos, na definição do negro importado, era grande, como se verifica.
[3] "A Política Geral do
Brasil" e "L'animisme fétichiste des nègres de Bahia", respectivamente.
[4] Castro Alves, nos versos
maravilhosos do seu "Navio negreiro", dos seus "Escravos", ou melhor dizendo do seu "Vozes d'África", dá bem uma idéia da
grande tragédia negra. Santos contaria em seu quilombo libertador de Jabaquara com um desses príncipes africanos, preado em comum e nivelado aos
mais ínfimos dos seus próprios guerreiros e servidores - que foi Pai Felipe, cujo nome legítimo se perdeu (por falta de curiosidade e indagação dos
seus contemporâneos), fugiu do cativeiro, refugiou-se nas serras virgens do Cabraiaquara (mais tarde "do Quilombo") e dali viria então para o
Jabaquara, na grande fase abolicionista de Santos, que se conhecerá neste capítulo.
[5] José Maria dos Santos -
"A Política Geral do Brasil" - Ed. J. Magalhães - São Paulo, 1930, págs. 158/159.
[6] A Bahia era então um
conto de fadas; lugar de riquezas e ostentações, de festas constantes e bizarras cavalhadas (as alcanzías mouras), terra de luxo para brancos
e para negros, da qual diria o Padre Manoel Calado (Val. Lucideno, pág. 8), no século XVII:
"Os homês não aulão adereços custosos de espada & adagas, nem vestidos de nouas
invenções, com que se não ornassem, os banquetes quotidianos, as escaramuças & jogos de cannas, em cada festa se ordenauão, tudo erão delícias, &
não parecia esta tenam hum retrato do terreal paraíso".
Os malés e muçulmís, caídos naquele paraíso, chegaram a constituir uma
sociedade, uma elite de cor, afastada dos outros negros e mais chegada aos brancos. Até na pele pareciam diferir um tanto dos iorubanos: eram
mais claros e mais avermelhados, de feições mais finas, e possuíam a distinção dos gestos. Mais tarde, seus descendentes queriam ser doutores e
casar com doutores.
Em todos os lugares onde tais malés e muçulmís se fixaram, os costumes
foram sempre mais muçulmanos, arabizados, e as manifestações musicais, coreográficas e folclóricas foram mais ricas e superiores.
O "espiritual negro" da América do Norte, por exemplo, é ainda hoje uma
demonstração viva da influência da música litúrgica judaica (mosaica), dos cânticos israelitas, por eles praticados, transmitidos à música popular
daquele país.
Bem compreendido este detalhe histórico da importação do negro, principalmente após o
que se vai ler, da contribuição de Nina Rodrigues, mais fácil será compreender também outros fenômenos sociais, principalmente do Norte e Nordeste
do País, como por exemplo: a formação da República dos Palmares, um quisto religioso (muçulmano-judaico) no coração do catolicíssimo Brasil, que um
profissional da matança coletiva destruiria a soldo ou sob indenização (processo promovido por Domingos Jorge Velho).
[7] Dr. Nina Rodrigues - "L'animisme
fétichiste des nègres de Bahia". Ed. Reis & Cia. - Bahia, 1900, 158 págs. (págs. 14 a 19).
[8] Já vimos o significado
Iorubano. Iebú, o mesmo que Iabu, forma árabe, significa "o que é Pai, ou do Pai etc.", de "I", adjetivo
relativo ou ético árabe, do masculino, significando "ação, movimento, natureza etc." e "Abu", "pai, pai religioso, avô".
[9] Vê-se aqui, delineado e
exposto, o panorama religioso dos negros da Bahia, o mais completo ambiente africano do Brasil. Apenas duas correntes religiosas - uma inferior (a
dos iorubanos e iebus), outra superior (a dos malés e muçulmís). Venceria a inferior, como antes se depreende, por seus
encantos e sortilégios, mas principalmente por seus aspectos de magia e liberdade. Daí a existência, em nossos dias, tanto da Umbanda como da
Quimbanda, com a multidão dos seus centros, tendas e terreiros, já agora envolvendo e abrangendo negros e brancos, autoridades, intelectuais,
parlamentares, ministros, o Brasil inteiro, sem que a própria Igreja Católica tenha forças para vencer a onda imensa que empolga as sociedades e o
povo.
[10] Vê-se bem aqui a
razão de ter vencido a corrente iorubana e iebu e de haver desaparecido totalmente, em nossos dias, a fé muçulmana (malé e
muçulmí) dos negros brasileiros. Era difícil mantê-la, pelas exigências que estabelecia, pela disciplina e dignidade moral que impunha.
Preferiram as crenças liberais...
[11] Esta passagem do
mestre nos demonstra, pela alusão aos movimentos verificados na Bahia, verdadeiras sedições populares, de fundo religioso, promovidas pelos "malés"
e "muçulmis" (aussás, mandingas e nagôs) e reprimidas violentamente pelo poder eclesiástico e policial, como se verá a seguir, que a
inquietação muçulmana no Norte e no Nordeste brasileiro já vinha de longe e já pudera produzir a famosa passagem dos Palmares, que congregava
milhares de crentes negros, fugidos dos seus ergástulos, para a liberdade da serra da Barriga, onde queriam apenas ser livres como outrora nas
solidões africanas e ser felizes. A segunda metade do século XVII assistiu à formação da chamada "república negra", e o ano de 1697 proporcionou ao
Brasil o espetáculo da sua destruição, com os maiores requintes de brutalidade consciente.
Admira hoje, quando comemoramos no Brasil, e particularmente em Santos, a maravilha do
movimento abolicionista, o maior espetáculo de Civilização e Fraternidade proporcionado pelo homem branco - em luta pelo negro e pela sua própria
reabilitação moral - que em nossos livros didáticos e em nossas escolas se promova ainda e admita a glorificação dos destruidores de Palmares, de
ferozes colecionadores de orelhas de escravos assassinados, de assassinos vulgares de fujões imbeles que apenas se defendiam, zelando pelo direito à
liberdade conquistada.
[12] É extraordinário que
fatos como estes, com esta importância, e documentos como este, do Visconde de São Lourenço, não sejam conhecidos por todo o Brasil e divulgados em
seus compêndios de História, parecendo a sua leitura, assim, ao cabo de tantos anos, num estudo de caráter científico, algo de fantástico, de
assombroso, de inacreditável, que parece não ter acontecido... dado o sepultamento total e intencional em que os conservaram aqueles que deveriam
tê-los divulgado.
[13] Este Relatório é a
confissão plena de um assassínio em massa pela polícia, por um homem de bem... que receberia por isso o título de Barão do Império.
Pois em Santos, naquela altura de 1835 a 1837, um quilombo enorme, que se formara
entre as serras do Quilombo (Cabraiaquara), Jurubatuba e Jaguareguava, desde os anos de 1780/1790, era também destruído por um segundo Domingos
Jorge Velho, a soldo e contrato, sendo o lucro apurado com a captura dos que não morreram (os mortos foram centenas), dividido entre o governo
da Província e a Câmara Municipal de Santos, como se verifica pelas sessões (diversas) desta última, em 1837, 1838 e 1839. E quem nos diz que também
aqui, no grande quilombo santista, destruído por Bento José Branco e seus voluntários de São Bernardo, não se repetia o caso histórico e religioso
dos "malés" e "muçulmís" da Bahia estudado por Nina Rodrigues?
[14] Este depoimento do
cientista baiano e os vários e dolorosos depoimentos que ele contém, avivando um drama passado pelos negros que tinham a dupla desgraça de serem
escravos e adotarem uma fé repelida pelo "meio", repetem, por vias indiretas, aquele drama imenso, mil vezes maior, dos árabes e judeus
portugueses, perseguidos, presos, saqueados e expulsos ou recolhidos a grandes campos de concentração, que tinham os nomes de aljamas, alfamas,
moreiras, almoreiras, mourarias e "guetos", para futuras expulsões, principalmente a partir de 1497. A razão praticamente era a mesma, religiosa,
aquela fé que, no dizer do velho "malé" ou "muçulmi", "vivia no coração", como um direito que ninguém podia tocar.
[15] O final do depoimento
"malé", dentro do depoimento geral e científico de Nina Rodrigues, é de uma terrível eloqüência, e põe em grande relevo, ao mesmo tempo, a
conquista abolicionista e a conquista republicana, com a consagração do princípio constitucional da liberdade de culto e de consciência e da
igualdade dos homens, bastante para justificar a existência da própria República.
[16] Membro da Academia
Brasileira de Letras, diretor do Museu Histórico Nacional por muitos anos. Autor da famosa "História Secreta do Brasil" e de várias outras
obras. Redator de revistas literárias e científicas. Grande colaborador de O Cruzeiro, para o qual escrevia apreciados e até notáveis
trabalhos históricos, muito ilustrados, como este ora reproduzido (de 24/2/1951). Gustavo Barroso faleceu em 1961.
[17] Não é verdade. A
religião e a civilização árabe-judaica, com a própria língua árabe e uma contribuição acessória do hebraico, foram introduzidas no Brasil com os
primeiros exploradores, as primeiras Armadas oficiais e particulares, com os navios do longo Contrato de Fernão de Loronha (chamado Fernando de
Noronha), e com os degredados ou desterrados judios e "cristãos-novos", durante todo o primeiro século brasileiro, continuando pelo segundo
(XVI e XVII), chegando a língua a distribuir-se pelo chão de todo o nosso litoral, em centenas de topônimos.
[18] Também não é verdade.
Malin era uma forma plural hebraica do árabe Mali. A palavra Malinké, "gente de Mali", seria, em conseqüência, o mesmo que
Malinki (Malin e Ki, "quem"), significando "gente mali, malin ou malé". Tratando-se de negros de várias partes da África,
apenas disciplinados, educados e preparados ou melhorados pelos árabes e judeus da exploração africana, é evidente que não podia ser considerado de
Mali, já explicado que Mâl, em árabe, queria dizer: "riqueza, fortuna", e Mali, "aquele que é uma riqueza, uma fortuna, ou
vale uma fortuna - o valorizado".
[19] Até a expressão "guerra
santa" era árabe-muçulmana, porque o "dijihed" era a guerra santa dos árabes, a Algara, estabelecida no próprio Alcorão,
obrigatória na entrada da primavera.
[20] A verdadeira, a
grande História do Brasil, está por ser contada, escondida como tem sido ao estudo e conhecimento comum dos brasileiros. Muito antes destes fatos,
já a chamada "República dos Palmares" constituíra uma página "muçulmana" dentro da História do nosso País. A existência dos Mocamos
corrompidos em Mocambos, significando "capela muçulmana" ou "mesquita" e "esnoga ou sinagoga", e espalhados por todo o
Norte e o Nordeste do Brasil, proclamavam a existência dessa História, que o Poder Eclesiástico, evidentemente mais interessado nisso do que o
Político, impediu de figurar em nossos livros, e, conseqüentemente, de divulgar-se entre o nosso povo e os nossos escritores, desde o século XVIII.
Mas, por ter sido escondida e sonegada, não quer dizer que deva continuar escondida e
sonegada neste século de ciência e de cultura em que até os espaços ignotos vão se revelando, em que o átomo já não é mais Átomo
(N.E.: a palavra átomo significa "indivisível", já se sabendo em pleno século XX da existência de prótons, elétrons e muitas
outras partículas subatômicas), em que o homem viaja na órbita terrestre como um asteróide dirigido, e em que coisas
fantásticas e proibidas outrora vão se tornando de domínio público, corriqueiras e banais...
Os brasileiros não podem, em relação à História, à Ciência e à Cultura, fazer como
fizeram com a Abolição - fechar a raia... chegando depois do penúltimo.
[21] Gustavo Barroso, o
grande revelador de mistérios da nossa História, ao revelar estes segredos da Escravidão, já escrevera e publicara a sua História Secreta
do Brasil, que descobria para os brasileiros uma nova História da sua Pátria, aquela verdadeira que jazia sepultada e sonegada ao
público comum, prestando com isso - embora sem o pretender talvez - visto que o fizera apenas por ódio aos judeus (como bom integralista que
era), um grande serviço à nossa cultura. Devia então dizer como dissemos: "Ainda está por ser devidamente escrita, com todos os pormenores, a
História do Brasil", e não como disse.
[22] Se os negros
escravos, muçulmanos ou muçulmanizados, possuíam e integravam a sua Maçonaria, que os conduzia a tais movimentos, articulando-os de
forma tão expressiva, desde o princípio do século XVIII, é fácil calcular que a Maçonaria Judaica, reinante em Portugal e na Espanha dos séculos XV
e XVI, organizada em função da defesa de judeus e muçulmanos perseguidos, expulsos e roubados em seus haveres e fortunas, tenha congregado (como
congregou) os brancos semitas do povoamento brasileiro, que tinham o seu código e usavam os seus sinais de reconhecimento em suas próprias
assinaturas.
Dentro da realidade histórica, será mais fácil ao estudioso de hoje
compreender a figura de um "Bacharel" Mestre Cosme, de um João Ramalho ou de um Diogo Álvares, incompreendidos e indecifrados fora dessa
realidade.
[23] Palavras ditas no
Instituto Histórico e Geográfico de Santos, por ocasião da conferência que ali pronunciou sobre o assunto o grande criminalista e historiador, que
tinha, principalmente no trato do movimento abolicionista, além de outros interesses e motivos de aplicação, mais o interesse de originário da raça
implicada. Referia-se Evaristo de Morais à saída da História de Santos, em 1937, e a este capítulo do livro. |