Moleques do Macuco
Neiva Pavesi (*)
Narciso de Andrade
escreveu crônicas belíssimas, publicadas em A Tribuna, no tempo em que a literatura esparramava-se gloriosa por uma página inteira. E Narciso
falava, entre outras coisas, de seus tempos de moleque no Macuco. Ah, Macuco! Das lembranças do poeta, das aventuras do
menino que treinava para homem. Lembranças que alimentam até hoje o nosso grande escritor.
Ao vê-las, viajo num mundo que cheira a mar, a suor, braços, pernas e pés esfolados, peraltices. E
não é que os moleques do Macuco voaram?! A molecada não deu chance ao Joel que, realista, advertia: "Nós não temos asas". Todos viram o
Zepelim, "aquela coisa espantosa nos céus santistas, voando sem asas". Então, para o bando, se existe o Zepelim e "ave
que não voa, como a galinha, pode haver gente que voa".
Afinal de contas, "tudo exige exercício preparatório; as já citadas galinhas não são exercitadas
quando pintinhos". "Ficam com medo de alçar vôo. (...) Daí a conclusão final e definitiva: o homem não voa porque tem medo. E moleque do Macuco
tinha medo de alguma coisa? De coisa alguma".
Destemidos, os moleques do Macuco partiram para os exercícios de pernas, braços, tronco e a
posição correta da cabeça para a decolagem. O que não foi fácil: pernas quebradas, galos nas testas, pulsos abertos. Quem cuidou deles foi o seu
Cecílio, "avô do intenso poeta Jairzinho de Freitas, um tanto desconfiado: o que vocês andam fazendo?!" Bem que o Tupã entregou: "Estamos aprendendo
a voar". Mas, quem ia acreditar numa coisa dessas?
E Narciso afirma, sob juramento, que eles saíram "voando em bando sobre o Macuco". Os detalhes
ainda não conhecemos, mas acredito no poeta: os moleques do Macuco voaram. Porque não tinham medo. Vivendo em liberdade em bairro tão generoso, não
conheceram esse sentimento bloqueador.
O poetirmão Roldão Mendes Rosa afirmou que os meninos
do Bairro Chinês também voaram. A molecada do Mercado ficou para trás? Não. Eles também
voaram. Palavra de Cid Marcus. Se provaram? Que nada! Como provar os sonhos de liberdade? Só sonhando juntos, em bando, amigos, moleques, irmãos.
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Num bairro generoso, não conhecem o sentimento do medo |
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E os galos do Macuco? O clima do bairro, naquele tempo, era propício ao melhor canto de galo da
Cidade. Os galos macuquenses tinham um código secreto a sustentar seu canto nas madrugadas santistas. "O primeiro cantor soltava sua voz trêmula,
indecisa, com notas falseadas, para logo depois emitir um absoluto dó de peito". Era o sinal. As respostas se sucediam: um após outro, "os
galos acordavam o Macuco". Ao longo do dia, os galos cantavam em tom de paixão ou de briga. E galo macuquense, mesmo perdendo a briga, cantava antes
de morrer.
Ao ler O gosto da goiaba, penso no dono das goiabeiras assediadas pelos moleques do Macuco.
Quando temos mais idade, esquecemos de nossa infância e trancamos a nossa criança interior a sete chaves. Por isso nos aborrecemos com tais
peraltices, como roubar goiabas, o que já não acontece hoje, quando as peraltices são outras.
Os moleques do Macuco eram muito espertos. Chegaram ao ponto de fazer com que o cão Tigre,
destinado a proteger as goiabas, se tornasse amigo da turma e os ajudasse em suas incursões nos "espaços públicos e, vem em quando, nos domínios
particulares".
Em 2006, foi publicado o livro de poesias de Narciso de Andrade, Poesia Sempre, onde ele
fala poeticamente do cais, do mar, de Amélia, de Maurice, do Maxim's Bar, dos loucos, do poeta... Neste 2007 suas crônicas estão sendo selecionadas
para publicação. Que não demore a acontecer, por favor. Estamos carentes de bons textos, de sentimentos, de lirismo. De boa leitura. Estamos
carentes de escritores como Narciso de Andrade.
(*) Neiva Pavesi: escritora, promotora de leitura,
divulgadora cultura. Coordena concertos de leitora do Grupo Cantigas Praianas. |