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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CARNAVAL
Tempo de Carnaval (30)

Memórias da festa santista
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Texto do poeta santista Vicente de Carvalho, publicado no Almanaque de Santos-1972, de Olao Rodrigues, impresso em 1972 na Impress, da capital paulista (páginas 43 a 45). A ortografia foi atualizada nesta transcrição:
 


Imagem: ilustração publicada com a matéria

 

O Carnaval

Vicente de Carvalho

Parece que só o Carnaval resiste, sempre viçoso e sempre transbordante de alegria, à onda de inconstância que transforma e substitui, de geração a geração, as transitórias coisas humanas.

A alma, talvez ainda mais que o corpo, obedece à moda. A mudança pela qual evoluiu no vestuário inexpressivo de hoje o traje pitoresco, ou ridículo, ou simplesmente ausente, dos antepassados, é com certeza menor do que a diferença entre o modo pelo qual eles pensavam, sentiam e viviam, e o nosso modo de viver, de sentir e de pensar.

Tudo quanto é humano participa dessa influência implacável do tempo. As grandes coisas que têm a eternidade, pelo menos problemática, da alma, como as coisas insignificantes que só têm a limitada duração do corpo - a religião, o feitio dos chapéus, as obras de arte, e as obras de cal e pedra, as nobres conquistas do pensamento como as materialidades da carne exigente e fraca, os altos sistemas filosóficos e os modestos sistemas de preparar a cozinha, tudo isso vai de transformação em transformação através dos anos. Não é cada homem que tem alma: é cada tempo. Cada geração possui, com entusiasmo e convicção, a sua moda privativa de encarar o Universo, de amar a Deus e a Mulher, de sonhar os seus sonhos, de gozar os seus prazeres, de guiar a sua ambição e de temperar a sua sopa.

Tudo cansa, tudo se arruína, tudo passa, menos o Carnaval. Só ele sobrenada no oceano de destroços que é a vida humana. desmaia o ardor pelas festas piedosas da Igreja; vai-se reduzindo a uma tradição perdida a solenidade aparatosa das procissões; amortece pouco a pouco no desuso a comemoração pirotécnica dos santos cujo dia se festejava com a aplicação inocente dessa diabólica invenção que é a pólvora, feita para as batalhas e as carnificinas... E só, de todas as festas populares que o tempo desapiedado vai varrendo das nossas almas e dos nossos costumes, fica, eternamente juvenil, essa consagração de três dias do ano às loucuras da Alegria.

Seria interessante indagar de que fios de complicada psicologia se trama esse fenômeno de resistência sem exemplo oferecido pela alma inconstante dos homens à ação implacável do tempo. Não é certamente o vosso espírito, ó dominós espirituosos; nem o teu barulho, ó Zé Pereira barulhento; nem o vosso aparato, ó bandos carnavalescos deslumbrantes da fácil riqueza de papel dourado e das sedas imitadas com economia; nem a vossa chuva multicor, que faz noite estrelada na cabeleira das mulheres, ó confete; nem o vosso esguicho, amável, sóbrio, perfumado, ó bisnagas que representais a civilização da antiga seringa, pródiga de simples água do pote ou da água complexa das sarjetas...

O Carnaval, essa consagração de três fugitivos dias do longo ano à loucura, explica-se como uma instintiva revolta do homem, condenado a uma vida eriçada de asperezas, escravizado entre grades de cárceres de uma civilização toda feita de complicadas conveniências que o obrigam a viver aprumado, de leis que o guiam como o freio guia um cavalo, mal domado, de necessidades adquiridas que o esporeiam, de lutas extenuantes que lhe absorvem a alma, e de colarinhos engomados que lhe torturam o corpo.

Não há tirania mais dura que a do bom senso. É o bom senso que nos impõe o trabalho, cheio de fadiga, e a moda, fecunda de caprichos. É ele que corta as asas travessas de nossa fantasia, e a substitui, em nossos ombros vergados, pelo peso da Verdade; que nos reprime dos instintos para os quais nos fez a natureza, como vigorosos animais que éramos, e nos submete ao respeito à Autoridade, ao Costume, aos Códigos, a toda a complicada engrenagem da organização social, como abatidos cidadãos que nos tornamos; que pouco a pouco esvazia os nossos olhos da consoladora contemplação das coisas do céu, para o mesquinho e amargo espetáculo das realidades da terra.

É ele, o bom senso, que envenena nossa vida, que a despovoa de pitoresco e a ensombra de tristeza. É ele que nos guia, que nos arrasa quase, nessa curta e penosa jornada que vamos caminhando sempre, sobrecarregados de deveres de necessidades, de preocupações - e sem destino conhecido como digno de tanto esforço empregado e de tão duras dificuldades afrontadas.

O Carnaval é um ato de revolta instintiva contra as tiranias do bom senso. Abrimos com ele, no comprido ano todo, preenchido com as coisas graves, com a Regra e com a Ordem, um parêntesis de três dias consagrados à livre e tumultuosa alegria. Nem há, em todo o farto Olimpo, deus que mereça mais fervoroso e mais agradecido culto do que essa deusa de tão raras mas tão luminosas aparições para o nosso coração acostumado à sombra.

A sua festa não é marcada apenas pela ligeira referência do Calendário, feita de frágil tinta que um pouco de tempo apaga, no frágil papel que um pouco de tempo destrói; a sua tradição é conservada intacta e viva, através do tempo destruidor, no espírito duradouro dos homens. Santa Alegria, consoladora das aflições quotidianas! Que muito é que te consagremos três dias do ano - nós que esbanjamos com a preocupação das coisas que chamamos graves apenas porque são desagradáveis, e que chamamos sérias apenas porque não são risonhas - a nossa vida e a nossa alma?

SANTOS, 1900.

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