Charge: Padrón - publicada com a matéria
D. Dorotéia, vamos furar aquela onda?
Regina Lúcia Alonso Peres (*)
Colaboradora
Domingo. Bar Harmonia. Movimento intenso de homens em
trajes e adereços coloridos. A criançada da rua alvoroçava-se e nós também! "Mãe, hoje é dia de D. Dorotéia?" A confirmação fazia-se em meio aos
preparativos do almoço e do lanche para os intervalos do desfile. Da esquina da Bittencourt com a Conselheiro Nébias, espiávamos curiosos o
movimento do bar do outro lado da avenida. Os homens vestiam-se de mulher. Um deus-nos-acuda! Meus tios, fervorosos carnavalescos, pegavam roupas da
mamãe ou da tia para desfilar com os colegas do bairro.
Após o almoço, lá íamos nós - pais e sete filhos - pegar o bonde na avenida. O
cobrador, muito gentil, ajudava a embarcar as crianças, e o motorneiro, sem pressa, aguardava que todos se instalassem em segurança. Dlém, dlém...
Dlém, dlém... O bonde ia cortando a avenida, até dobrar no Boqueirão para nosso desembarque, na Ponta da Praia, em frente aos clubes. O bonde quase
esvaziava, pois toda a população, nesse domingo, queria assistir ao desfile. Papai escolhia um lugar à sombra dos chapéus-de-sol e nos acomodava
sentados no meio-fio. A conversa girava em torno das expectativas com o desfile: que bloco abrirá o desfile? As fantasias estarão tão suntuosas
quanto no ano passado? E os carros alegóricos?
O espocar dos fogos interrompia os comentários. Silêncio total! Corações disparando de
emoção! Começava a magia, escorrendo pelas ruas de paralelepípedos! Bloco das Esmeraldas, do clube Atlético Santista, um luxo só em suas fantasias
verde e branco! Dengosas do Marapé, um encanto! Chineses do Mercado, homenageando os povos orientais... A gente simplesinha do Mercado
transformava-se com seus ricos trajes de mandarim rebrilhando aos raios de sol da tardinha santista!
Os carros alegóricos eram um espetáculo à parte, como um palco de teatro, cenas
vivenciadas conforme o tema de cada bloco. Quantas vezes foi necessário que os trabalhadores da Prefeitura levantassem os fios de iluminação da
avenida para que os carros pudessem passar com suas alegorias altíssimas. O povo aplaudia de pé, entusiasmado, jogando confete... Serpentinas
cruzando-se ao por-do-sol.
Como retomar as raízes e tradições nesta Santos de hoje
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Atrás dos blocos, os patuscos, geralmente representando clubes, bairros, associações -
faziam crítica dos costumes, da política em geral e do que era mais pertinente à Cidade - providências em dias de fortes temporais, mais escolas, o
preço em alta de algum alimento, falta de atendimento hospitalar... Tudo em linguagem acessível, contundente, mas respeitosa, provocando além de
risadas pela irreverência, momentos de reflexão que, em casa, seriam relembrados e discutidos. Nos primeiros anos da D. Dorotéia, os patuscos com
roupas de papel de seda tomavam banho na praia, numa algazarra sem fim.
O desfile encerrava-se, sempre, com o tão esperado casal de noivos. D. Dorotéia, homem
vestido de noiva, geralmente grávida, o que para a época já provocava questionamentos... Um condutor de bonde no papel de noivo querendo escapar do
compromisso... O casal fazia mil estripulias. A criançada ria que só e o povo atiçava a brincadeira, que terminava num trampolim à frente dos
clubes. Em meio a peripécias, verdadeiras acrobacias, os noivos desabavam no mar, literalmente "furando aquela onda"!
Agora, a volta, os irmãos mais velhos carregando os três pequenos adormecidos, o bonde
apinhado, estribos cheios, mil comentários sobre os blocos. Em casa, a família recolhia-se ao leito. Eu não conseguia dormir, a cabeça cheia de
cores e beleza...
Pela manhã, corríamos em busca da A Tribuna. Nosso jornal registrava o fato,
informando sobre os vencedores com fotos maravilhosas! Novamente em mim as lembranças tornando-se inesquecíveis, voltando hoje ao se aproximar mais
um Carnaval. Onde a nossa "Dorotéia", que foi se descaracterizando com o tempo, quase ninguém assistindo, as janelas da orla fechando-se para o
barulho e o grotesco?! Como retomar nossas raízes e tradições nesta Santos de hoje? Nestes últimos anos, iniciativas como o "Carnabonde" vêm
despertando o povo para o Carnaval de rua. Suas marchinhas já se fazem ouvir, nas tendas da praia... Afinal, "D. Dorotéia" ainda quer "furar aquela
onda"!...
(*) Regina Lúcia Alonso Peres é pedagoga e poeta.
Bloco Carnavalesco Bola Alvinegra, fundado em
1937 por associados do Santos Futebol Clube. Nos anos em que participou dos desfiles oficiais do carnaval santista, nunca tentou concorrer aos
prêmios oferecidos pela Prefeitura. Seus integrantes só queriam mostrar sua irreverência e alegrar o povo que prestigiava os desfiles. Sua principal
característica é a figura do pierrô
Foto: reprodução/acervo particular, publicada no Diário Oficial de Santos em 29/1/2005
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