Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria
Grandes companhias chegavam de navio
Da Reportagem
Quando o calor era intenso, bastava abrir as portas dos
camarotes e os janelões do corredor, para que uma deliciosa brisa entrasse. Ninguém conhecia ar-condicionado.
Mesmo assim, alguns produtores de espetáculos mandavam os funcionários fecharem os
janelões, porque quem não tinha dinheiro para comprar ingresso sempre dava um jeitinho de pular para entrar no teatro.
"Às vezes, a discussão entre quem ficava nos camarotes e os produtores chegava ao
palco e atrapalhava a nossa concentração", lembra o ator e escultor Serafim Gonzalez, de 71 anos, que nasceu em Sertãozinho (SP) e desde os 5 anos
reside em Santos. Em 1948, com 14 anos, ele fez sua estréia no teatro amador.
Era o protagonista da peça Atenéia, com direção de Newton de Souza Telles e
texto baseado em poemas de sua mãe, Itacy Telles. A encenação foi depois da criação do grupo Teatro dos Estudantes, do Centro dos Estudantes de
Santos, do qual Serafim Gonzalez foi um dos fundadores.
Novo e imenso mundo - "Eu, tão novo, no meio daquele palco enorme, embaixo
daquela estrutura alta. Era um mundo imenso e novo. Até então, só tinha me apresentado em igrejas (que promoviam atividades culturais, como
teatro)", conta o ator.
Serafim Gonzalez acredita ser a única pessoa viva daquele tempo que continua em
atividade, já que perdeu o contato com as demais. E como ficou pouco tempo na Cidade, também não conviveu com os colegas santistas que vieram
depois. É que em 1952 foi para o Rio de Janeiro, onde fez sua estréia como profissional, na peça Massacre.
"Eu só tive contato profissional com os atores santistas muito tempo depois, no Rio ou
em São Paulo. Mas o Ney Latorraca eu lancei, no teatro amador do Colégio Canadá", recorda-se.
Voltando a falar do Teatro Coliseu, Serafim Gonzalez lembra que assistiu a diversos e
importantes espetáculos, uma vez que a Cidade era parada obrigatória de companhias famosas, principalmente as italianas.
O avião - "Como elas vinham de navio, se apresentavam no Coliseu após o
desembarque, ou na volta da temporada paulistana, para não ficarem paradas três ou quatro dias, uma vez que naquela época os navios ficavam até
semanas atracados no Porto".
Aproveitando a deixa em relação aos meios de transporte, Serafim Gonzalez tem uma
teoria para explicar um dos motivos da queda na programação do Coliseu naquela época. "Quando o avião começou a se popularizar como transporte de
pessoas e cargas, as companhias estrangeiras desciam diretamente em São Paulo. Foi o caso da de Vitorio Grasman, que nunca se apresentou no
Coliseu".
O ator santista relembra, ainda, que as grandes companhias paulistanas vinham para
Santos sempre às segundas-feiras, porque na Capital os espetáculos ficavam em cartaz de terça a domingo. "Foi com a popularização da televisão que
se estabeleceu que teatro é de quinta a domingo".
Outro fato curioso, conta, é que naquela época o Coliseu cobrava um preço fixo (e
caro) de aluguel, diferente do que acontecia na Capital, onde se cobrava um mínimo pela locação e 12% da bilheteria. "Essa norma do Coliseu ajudou a
dificultar a apresentação de espetáculos, pois para ter lucro o produtor tinha que vender todos os ingressos (mais de 1 mil lugares). E havia as
despesas com transporte e alimentação".
Bebedouro e coxia - Como espectador do Coliseu, Serafim Gonzalez assistiu a
A Chuva, com Dulcinéia de Moraes; Desejo, com atuação e direção de Zimbienski e Olga Navarro; O Ébrio, com Vicente Celestino e
Gerda Abreu, que misturava teatro e projeção em tela, algo inovador.
Também viu muitas óperas. E ressalta que o teatro dispunha até de um bebedouro e
coxias especiais para abrigar os animais usados nesse gênero.
Como profissional, o ator fez mais de 20 peças no Teatro Coliseu, entre elas,
Massacre e Manequim.
Por tudo isso, Serafim Gonzalez tem vivido dias de expectativa com a reinauguração.
Ele lembra que houve vários teatros importantes em São Paulo que não resistiram à voracidade dos empresários da construção civil e foram demolidos.
"Será maravilhoso ver a recuperação de um patrimônio da nossa história. E vamos poder
receber espetáculos de grande porte. Estrutura o Coliseu tem. Pretendo voltar a pisar o palco, talvez com uma remontagem de O Inimigo do Povo, de
Ibsen, que fiz com o amigo Cláudio Correa e Castro. Seria um espetáculo à altura da tradição do Coliseu".
Serafim Gonzalez, que estreou no Coliseu com 14 anos,
lembra que o teatro tinha coxias para os animais usados nas óperas
Foto: Maurício de Sousa, publicada com a matéria
Na platéia, um público sempre elegante e refinado
Da Reportagem
você fala alto, gesticula muito, reclama do calor e não
puxa a cadeira para a mulher sentar? Seria alvo de centenas de olhares reprovadores. A elegância e a educação faziam parte do comportamento de quem
freqüentava o Teatro Coliseu.
Bem, nem todos seguiam religiosamente a etiqueta. Certa vez, em uma de suas
apresentações, o maestro Heitor Villa-Lobos estava de chinelo. E como ele não está aqui para se defender, eis a explicação: "Estava com o pé
machucado". A testemunha ocular é Valentina Leonel Vieira, de 90 anos.
Professora de etiqueta, por diversas vezes ela freqüentou o Teatro Coliseu. Foi pela
primeira vez aos 11 anos, quando assistiu à peça A Ceia dos Cardeais, com Leopoldo Fróes. "Era um local lindo, maravilhoso, repleto de gente
elegante e educada".
Mais tarde, já casada, conta que teve o privilégio de assistir às óperas Madame
Butterfly, Carmen e La Traviata; as peças O Avarento (com Procópio Ferreira), Esta Noite Choveu Prata (Dulcina
Odilon Conchita) e A Comédia do Coração (Cacilda Backer e Cleide Yáconis).
"Recordo-me, ainda, que lindas foram as declamações de Margarida Lopes de Almeida, que
venceu o título, em Paris, das mãos mais lindas do mundo. No palco, ela foi apresentada por meu irmão, Paulo Bueno Wolf. De repente, a platéia
começou a rir. Preocupado, ele achou que estivesse com o paletó desabotoado. Mais era um gato que estava atravessando o palco. Ágil, Paulo conseguiu
pegá-lo. Foi muito aplaudido".
Vestuário - Valentina Leonel Veira relembra que as senhoras usavam vestidos de
tafetá ou crepe, luvas, brilhantes, mini-binóculos de madrepérola e chapéus. Quando estavam nos camarotes, mantinham as coberturas. As que se
sentavam na platéia as retiravam, para não atrapalhar a visão de quem estava atrás.
Homens vestiam terno, gravata e usavam chapéu. No intervalo, eles iam às frisas e
camarotes para cumprimentar as damas, sempre com beijo na mão. E mais: abriam as portas, puxavam as cadeiras e as ajudavam a retirar o casaco.
Lá fora, na calçada do teatro, o homem ficava sempre do lado da rua, para
protegê-las. "De algum cão ou bêbado inconveniente", explica a professora de etiqueta.
Poucas pessoas chegavam de carros ao teatro. Era um objeto caro, de luxo. Quem não
tinha, mesmo elegantemente vestido, usava o bonde.
A pontualidade ("virtude de reis e rainhas", atesta Valentina Leonel Vieira) era
obedecida. Ninguém entrava depois de iniciado o espetáculo, para não atrapalhar a platéia e os artistas. Falar alto? Nem pensar. "Também ninguém
aplaudia antes do fim do espetáculo. A regra só era quebrada em apresentação de orquestras".
Impensável, também, era ver algum casal se beijando na boca ou se agarrando. Outra
curiosidade: raramente uma dama ia ao toalette — nem mesmo no intervalo — e jamais para retocar a maquilagem. E olha que não havia
ventiladores e muito menos ar-condicionado.
"A maquilagem não derretia. Acho que porque éramos mais calmas, tranqüilas, de gestos
comedidos. Antigamente as pessoas suportavam mais o calor. Mas um leque era indispensável, manuseado sempre elegantemente. Foi uma época de
glamour, encantamento e beleza. Tive o prazer de vivê-la".
Valentina Vieira lembra de mulheres de luvas, homens de chapéu e binóculos de
madrepérola
Foto: Paulo Freitas, publicada com a matéria
Ballet Stagium apresentou-se no teatro já em fase de abandono
Da Reportagem
O impresso do programa ainda está guardado. Faz parte da
história de um dos mais importantes representantes da dança no País, o Ballet Stagium.
"Lembro-me muito bem. O Teatro Coliseu já estava meio abandonado, mas como seria nossa
primeira apresentação nele, tinha significado especial. Foi no dia 28 de outubro de 1974", revela o bailarino e coreógrafo Décio Otero.
Ele relembra que o Coliseu, mesmo naquele estado, impressionava porque era do porte e
do tipo do renomado Teatro São Pedro, de São Paulo.
Preocupado com a qualidade do espetáculo, Décio Otero, já naquela época, lançou mão do
linóleo (um tipo de plástico para recobrir o palco), e montou um programa especial que agradou em cheio a platéia que lotou o Teatro Coliseu.
"Apresentamos Jerusalém, com música de Almeida Prado, coreografia com a qual
vencemos o Prêmio da Crítica em 1974; Orfeu e Orídice, uma colagem musical; e Dona Maria I, A Rainha Louca, coreografia que criei
baseada em Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meirelles. Fez um tremendo sucesso".
Para quem não sabe, apesar de instalado em São Paulo desde a sua criação, o Ballet
Stagium tem carinhosa relação com a Cidade. "A nossa estréia como companhia foi no dia 23 de outubro de 1971, no Teatro Independência, no Gonzaga".
Décio Otero ainda guarda o programa do balé Jerusalém de 1974
Foto: Paulo Freitas, publicada com a matéria
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