Bom Sucesso
Vamos em direção de Bom Sucesso. Pequena cidade. Povo hospitaleiro. Passamos por uma Fazenda. Já é hora do almoço. Tomamos café. O
sargento Jason Tupynambá - sempre camarada - oferece-nos fatias de saboroso queijo paulista. A mim. A Eurico Santos. Ao sargento Aristides. Que
havíamos ficado em nossos caminhões. Sem aderir ao moka. Bom Sucesso ainda está longe. O tempo se conserva péssimo. Seguimos. Depois de
desesperada espera.
Mais alguns quilômetros adiante o nosso caminhão pára. Acabou-se a gasolina. Os outros
prosseguem. Ficamos sós. Paralisados. Tomando chuva. Aguardando que a gasolina chegasse. Viria de Bom Sucesso. E veio. Após longa demora. A estrada
é excelente, nesse trecho.
Quando pisamos em Bom Sucesso, eram 13 horas. Calcule o leitor em
que estado lastimável nós chegamos.
O 150 EM AÇÃO - Canhão 150. Do Forte Itaipu. Operando em Eng. Hermillo.
Ao alto, de pé, Francisco Sá Júnior e tenente Polydoro Bittencourt
Aterradinho
Em Bom Sucesso, tivemos almoço e café. O sargento Nadyr, pela manhã, viera de
"Floriano" até ali. Providenciar sobre o rancho. Logo depois partimos para Aterradinho. Onde chegamos à tarde. Eu e muitos outros fizemos a metade
do percurso a pé. Porque, mais uma vez, faltara gasolina. A Aterradinho, no dia seguinte, chegou o coronel Favilla. Vinha visitar-nos. Interessado,
como sempre, pela sorte de seus soldados.
Estamos a 30. Desse dia a 4 de setembro, descansamos
algo. À noite, damos guarda. Patrulha. Sentinela. É preciso indormida vigilância na Caixa d'Água. Nenhum soldado gosta desse serviço. Porque tem que
subir uma escada muito alta. E ficar em situação perigosa. Se perder o equilíbrio, a morte é certa. E o frio, ali, é desumano. Mas os santistas são
disciplinados. E corajosos. Fazem o plantão arriscado. Embora sofrendo os rigores da temperatura. Horácio Assumpção - um moço distintíssimo. Eduardo
Wright - outro. Quando eu os procuro lá estão. Guindados à Caixa. Firmes. Eretos. Observando, do alto, o que se passa em derredor.
O assédio a Taquari
Dia 4. Domingo. Sabemos que Ligiana, onde está a 2ª Cia. do 7º, foi
bombardeada pela aviação inimiga. Sabemos, também, que o general Klinger e seu Estado-Maior se transportaram para Avaré. A fim de estudar um plano
de ataque às tropas ditatoriais que ocupam Taquari. Ataque levado a efeito na noite de 5. Com o brilhante concurso dos voluntários santistas.
Comandados pelo major Othelo Franco.
***
Na madrugada de 5 o 6º B.C.R. e as 2ª e 3ª Cias. do
7º chegaram a Aterradinho. De passagem. Ficam duas horas em nosso alojamento. Seguem depois para Bom Sucesso. Vão combater em Taquari.
Para as trincheiras de Fartura
Às 15 horas do mesmo dia. A 1ª Cia. parte para as trincheiras de Fartura. Passamos em Bom
Sucesso. Itaí. Pirajú. Sarutaiá. Chegamos em Fartura. Ao romper da manhã de 6. Noite inteira viajando. Sem dormir. Fomos para o Grupo Escolar.
Servem-nos café e pão. À vontade. Procuramos descansar. Não pudemos. Somos mandados para as trincheiras. Com urgência. Recebemos munição. Abundante.
O caso é grave... Avançamos. Quatro quilômetros adiante. Onde a fuzilaria não cessa. Ouvindo, perfeitamente, o tiroteio. Cerrado. Impressionante.
Sob fogo vivíssimo tomamos posição. Junto de destemidos voluntários de Presidente
Prudente e bravos soldados da Força Pública. Combatendo tropas paranaenses. Que estão perto. Na montanha fronteiriça. Comanda-nos o tenente Ferraz.
Militar valoroso. Abnegado. Que não arreda pé do seu posto de honra. No decorrer do dia. Por três ou quatro vezes. Trocamos balas com o inimigo.
O nosso cansaço é visível. Indissimulável. Estamos
lutando com extremo sacrifício. Mas nenhum santista dá demonstração de fraqueza. Vem a noite. Somos escalados para o serviço de sentinela. Dois
quilômetros além. Cumprimos o nosso dever.
7 de setembro
Logo cedo. A neblina é intensa. Veste as montanhas que nos
cercam. O inimigo quebra o silêncio. Uma descarga em regra. Um pipocar trágico dos F.M. Nós revidamos. Mais impetuosos ainda. Queremos brigar de
verdade. Por S. Paulo. Em homenagem à gloriosa data da Independência Brasileira. O tiroteio dura longo tempo. Aguardamos a aproximação do
adversário. Ele já se avizinha. É audacioso. Nós ansiamos pelo choque. Temos fé que venceremos. Ou ficaremos, sem vida, nas trincheiras.
***
À tarde. Uma agradável surpresa. Permanecíamos em posição de comate. Chegam
às trincheiras o padre Gasparino Dantas. Vigário de Ipaussú. O sr. José Nunes de Oliveira. Dona Philomena da Costa Nunes. Esta dama oferece-nos
biscoitos. E rebuçados. Conversa conosco. Animadamente. Estimula-nos, com palavras vibrantes, a defender a nossa causa sagrada. Encanta-nos, o
espírito simples e comunicativo desa sra. Que aperta, afetuosamente, a nossa mão. Que entra nas trincheiras. Que nos agrada. Que exige nossa
amizade. Ela é paulista. Seu esposo, o dr. Carlos Alberto, é major médico. Pertence a uma Cia. de Voluntários Paulistas. Dona Philomena tem especial
admiração pela nossa rapaziada.
É ela própria quem o confessa. Sempre disposta.
Incansável. Generosa. E valente. Armada de fuzil ficaria na luta. Coragem não lhe falta. Patriotismo também.
Onde está Athié?
Eu palestro com a ilustre senhora. Digo-lhe que, no dia seguinte, 8, farei 38 anos de idade.
Ela duvida. Julgava-me menos velho... Mostro-lhe a minha carteira de identidade. Ri e crê. A prova é oficial. Em dado momento, dona Philomena, como
que se recordando, pergunta-me:
- Onde está Athié?
E acrescenta:
- Desejo conhecer muito esse moço. Pessoalmente. Sempre vejo o seu retrato nos
jornais.
Eu dou-lhe informações precisas. Athié, meu prezado camarada, está nas trincheiras do
flanco direito. Muitos quilômetros distante das nossas. Entretanto, eu me incumbiria de avisá-lo.
Dona Philomena agradece. Vai nos deixar. Antes,
porém, promete-me, para o dia seguinte, um presente natalício: - pés-de-moleque. Feitos por suas próprias mãos. Fico penhorado. E espero a
guloseima. Meus companheiros aderem logo. Todos são candidatos a um pé-de-moleque. Que deve ser de raça...
Na manhã seguinte
Dia 8. Festa de Nossa Senhora do Monte Serrat. Em Santos. Minha madrinha
de crisma. Dia também do meu aniversário. Sinto-me velho. 38 anos. Marcho para o fim. Fatalmente. Todos nós marchamos. Estarei perto? Estarei longe?
Não sei. É melhor não saber. A realidade apavora. Procuro iludir-me. Como toda a humanidade. Mas entristeço. Longe do lar querido. Sem poder subir
ao Monte. Para beijar os pés sagrados da milagrosa santa. Reajo. Irei quando terminar a guerra. Com a vitória estrondosa de São Paulo. Nossa Senhora
está na Catedral. Ajudarei a conduzi-la ao Monte. Consolo-me com essa esperança.
***
Ainda madrugada. Eu cochilava nas trincheiras.
Desperto. Subitamente. O inimigo faz fogo. Contra a nossa posição. Fogo intenso. Respondemos. As metralhadoras entram em ação. Parece que o mundo se
acabará. No mesmo instante. Mas é só impressão. O mundo não acabará. Nem nós pereceremos. Milhares de balas passam sobre as nossas cabeças.
Assobiando. Tragicamente. Numa ameaça sinistra. Se alguma nos atingir, paciência. Será um paulista a menos. Mas São Paulo vencerá. Há de vencer.
Está com o Brasil. Está com Deus.
***
Cessado o tiroteio, escuto um companheiro dizer: -
essa fuzilaria foi em homenagem ao Santos Amorim. Que faz anos hoje. Achei espírito na frase. Entretanto, eu bem dispensava tal homenagem...
Nossa situação em Fartura
De 6 a 14 passamos na trincheira. Boa Esperança. Em Fartura. Foram 8 dias de grande
utilidade para a causa que defendíamos. Por que havíamos oposto tenaz resistência ao inimigo. Obrigando-o a conservar distância. Não permitindo a
sua deslocação da montanha. Senão para a retaguarda. Que era livre. E que nos não interessava. Nosso objetivo era impedir a invasão de Fartura.
A tropa adversária, inúmeras vezes, tentou o golpe. Nada conseguiu. Sempre foi
repelida. Com vantagem para nós. Chegamos, num só dia, a avançar 4 quilômetros. À vanguarda. Ocupando valiosa posição. Os flancos eram nossos. E
estavam seguramente guarnecidos. Difícil, senão impossível, sermos derrotados. Fartura jamais seria do inimigo. Se lá fossem mantidas nossas
posições. O tenente Ferraz, militar competente, tinha essa opinião. Lógica. Intuitiva. Fundamentada.
Mas, não sei por quê, a trincheira Boa Esperança
logo ficou despovoada de soldados. Naturalmente, para o inimigo poder tomá-la. E, tomando-a, conquistar Fartura. Foi isso o que se deu. Alguns dias
mais tarde. A 25 ou 26 de setembro. Quando nós já estávamos nas trincheiras de Porto Delfino. Desse modo, traído, S. Paulo tinha de ser derrotado.
Como foi. Desgraçadamente para o Brasil.
Desaparecimento do sargento Tavares
Dias 9 a 10. Ligeiros tiroteios. Pela madrugada e à noite. Dia 11. Às 14 horas. Uma patrulha
de cinco cavalarianos sai das nossas trincheiras. Para fazer uma patrulha de reconhecimento. Dois quilômetros além. Comandada pelo 3º sargento João
Tavares do Canto. É notada pelo inimigo. Que faz fogo cerrado.
Nossos soldados reagem. Por espaço de 40 minutos. O sargento Tavares entra por um
atalho da estrada. Desaparece. Seus comandados regressam. Ignorando se Tavares ficara preso. Garantindo, todavia, que não fora ferido.
O soldado Alfredo Engler, que fizera parte do grupo,
informa o que acima reproduzo. Esse episódio nos deixou pesarosos. Porque o sargento Tavares era um moço digno. Que gozava da nossa estima. Pela sua
conduta reta. Inatacável. E evidenciou-nos, também, que o inimigo estava vigilante. A 2.000 metros, apenas, de distância.
***
A mim nunca me pareceu bem contado esse caso. Sempre
presumi que o sargento Tavares - que eu conhecia suficientemente - tivesse sido, em tão dolorosa contingência, abandonado covardemente. Pelos
soldados que o acompanhavam. E por isso, depois de ferido, ficado prisioneiro. Foi o que sempre manifestei. Abertamente. Nas trincheiras.
Vim agora a saber, pelo sargento Nadyr Malheiros, que Tavares lhe telegrafara, de Castro,
cidade paranaense, dando-lhe a entender que fora ferido. E que, quase restabelecido, viajava para Barretos. Em nosso Estado. Sua terra natal.
Essa notícia chegou ao meu conhecimento a 28 de outubro. Quando escrevo esta
narrativa. Reproduzo-a. E concluo: - o sargento Tavares foi ferido e aprisionado pelos paranaenses. Que o conduziram para Castro. A verdade é essa.
E foi ocultada.
O GIGI AO PINHO... que eu vou ver se posso ficar livre de você...
O anjo da trincheira Boa Esperança
Dona Philomena da Costa Nunes ficou sendo, para nós, o anjo da trincheira Boa Esperança. Era
justo esse título. Que lhe demos por unanimidade de votos. Diariamente nos visitava. Levando-nos presentes. Jornais. Revistas. Cigarros. Tendo para
todos palavras carinhosas. E de extraordinária exaltação cívica.
Que senhora admirável! Quanta gratidão lhe devemos! Nós. Que ela tratou como filhos.
Com transbordamento de coração. Eu me relembro, agora, de uma frase que ela me repetia sempre: - "quando os senhores forem embora de Fartura,
estaremos perdidos" - E esclarecia: - "como nos aconteceu em 1930. Quando o inimigo ocupou nossa terra".
Dona Philomena previa o que, afinal, se realizou. Para aflição sua. E nossa, também.
Fomos traídos.
***
Ia-me esquecendo de assinalar uma coisa. Os
presentes que recebi. No dia do meu natalício. Nas trincheiras. Eurico Neves, gaiato incorrigível, deu-me o pé esquerdo de uma velha bota de gaúcho.
Encontrada num reconhecimento. Manoel Moran, 3 pentes de balas para fuzil. José João de Carvalho. nº 61. Mineiro. Idem. Renato Pimenta, 1 lata de
compota de cidra. Dr. Francisco Neves, um abraço amigo. Eurico Marianno dos Santos. Chocolate e cigarros. Athié. Um cesto com mamões, ervilhas
verdes, aipim, cana doce, cheiro verde etc. etc.
Que pessoal escovado! |