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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
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A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, volume II, com ortografia atualizada (páginas 233 a 246):
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PRIMEIRA PARTE - PRELÚDIOS DA INDEPENDÊNCIA

Capítulo IV - Acontecimentos em S. Paulo (cont.)

[...]

Um relatório maçônico

Terminada esta longa digressão em torno dos secretos pensamentos do sr. Assis Cintra, retomemos o fio de nossas anteriores observações. Dizíamos que ele inseriu no Homem da Independência, contra a atitude de José Bonifácio em face dos acontecimentos revolucionários de 23 de junho, o relatório escrito pelo representante secreto da Loja de Gonçalves Ledo sobre tais sucessos, no dia seguinte à sua verificação.

Para o autor, o movimento subversivo daquele dia fora obra maçônica; a Maçonaria, instigada pela vontade de Ledo, tudo prepara para que a revolução estalasse, depondo o governador Oeynhausen, e proclamando a República em S. Paulo. Foram encarregados dessa audaz manobra radicalista os simpáticos irmãos Alves Alvim, que tocaram a rebate no sino da Cadeia, para que as tropas e o povo acudissem ao ponto de reunião previamente marcado - o Pátio de S. Gonçalo, assim chamado por ali existir a igreja sob invocação daquele santo.

Um deles, José Inocêncio, é que propôs convidar-se a José Bonifácio para presidir à eleição; e foi, segundo o relator, quem deu ao discurso daquele o aparte que citamos, protestando que o povo não queria no governo nenhum dos que o tinham oprimido até então. José Bonifácio não atendeu, antes se opôs ao alvitre, e conseguiu que da Junta aclamada fizesse parte o governador deposto, traindo assim os intuitos dos conspiradores e prejudicando a execução dos planos combinados. Redigida, em vereança, pelo próprio Bonifácio, a ata da aclamação, protestaram contra ela e não a assinaram, José Innocêncio Alves Alvim e Joaquim Alves Alvim, os dois iniciadores do fracassado movimento republicano.

Este é, com toda a fidelidade, o resumo do Relatório, em cujos conceitos o escritor de O Homem da Independência confiadamente se louva. Examinemos, ou por outra, pulverizemos sem maior demora a famosa peça - mais do que inverossímil, por ser positivamente inverdadeira.

O sr. Assis Cintra não nos diz onde a colheu, de que arquivo ou de que obra a copiou ou trasladou; nem quem é o tal F. Soares, que a assina como representante da Loja de Gonçalves Ledo (Loja cuja denominação também não dá); de forma que fica o público obrigado a acreditar nos seus arrazoados sob palavra, como se se tratasse de um vulto que, por suas imáculas virtudes, pela austeridade de seu caráter, por seus notáveis talentos de publicista, pela vastidão de seu preparo intelectual, sobretudo em História, já se tivesse imposto incondicionalmente à veneração dos letrados e da opinião pública em geral.

Nenhum desses predicados concorre no sr. Assis Cintra em grau superior ao de outros quaisquer historiadores, que se julgam, entretanto, no dever imprescindível de citar sempre as fontes de que se socorrem para que suas informações e conceitos sejam devidamente examinados pelos homens capazes, maiormente se visam retificar informes ou contestar juízos que a tradição já consagrou na História.

Cumpre-nos declarar que não conhecemos o Relatório de que o escritor paulista lançou mão para encher de irreverentes convícios a reputação moral do Patriarca. Pode ser que ele o desencantoasse nalgum arquivo não franqueado aos estudiosos ou nalguma antiga publicação desaparecida das bibliotecas; mas se de fato existe semelhante escrito, não merece fé alguma, por ser inteiramente destituído de seriedade documental, como demonstraremos em seguida.

Em 12 de agosto de 1861, o dr. MELLO MORAES [1], que era então Grande Orador do Oriente Brasileiro, querendo averiguar até que ponto a Maçonaria tinha cooperado para a proclamação da Independência e do Império, requereu ao respectivo Grão-Mestre, marquês de Abrantes, que lhe mandasse dar por certidão tudo quanto constasse a tal respeito.

Ora, a "Loja de Gonçalves Ledo", como vagamente lhe chama o sr. Cintra, era a Loja Comércio e Artes. Mas esta Loja se achava inativa havia longo tempo, devido às perseguições que contra ela movera a polícia carioca, especialmente ao tempo do ministério presidido pelo Conde dos Arcos, e só se reinstalou a 24 de junho de 1821, em casa do capitão-de-mar-e-guerra José Domingues de Athayde Moncorvo, como o próprio autor assegura à pág. 75 do seu volume [2], baseando-se no referido Mello Moraes, cujas informações transcreve, sem contudo declinar a fonte onde abundosamente as captou.

E na pressa com que lança mão dos preciosos dados do velho cronista, nem reparou sequer que na obra deste há um evidente erro de composição tipográfica ou de revisão, que cumpre corrigir, porquanto, depois de escrever que a Loja se instalara de novo a 24 de junho, linhas abaixo refere que a "5 de junho ela reergueu suas abatidas colunas". Reerguer as colunas abatidas é, em linguagem simbólica, recomeçar a atividade no mundo maçônico; e a Loja Comércio e Artes não poderia reencetar essa atividade antes de ter sido instalada.

Assim, pois, a 24 de junho houve uma sessão especial de instalação e a 5 do mês imediato, isto é, de julho, recomeçou ela a trabalhar. Trata-se de uma simples troca de caractere - um l por um n, letras que no tempo da composição tipográfica manual eram vizinhas nas divisórias dos respectivos caixotins, podendo o artista, ao distribuir o trabalho já utilizado, ou ao principiar trabalho novo, lançar nelas ou delas tirar inadvertidamente um tipo em vez do outro.

A obra de Mello Moraes em que vêm todas as notícias referentes à intervenção da Maçonaria nas agitações pela nossa independência política foi publicada "sem cuidado na revisão das provas", conforme textual e judiciosamente observa Porto-Securo [3].

O que se torna indubitável, porém, é que, segundo Mello Moraes, e segundo o próprio Cintra, a Loja Comércio e Artes, suspensa havia bastante tempo por ordem da polícia, só reentrou em período de franca atividade depois de 24 de junho, data em que de novo se instalara secretamente. Como é possível, pois, que antes desse fato capital, tivesse ela nomeado um representante em S. Paulo, planejado um levante, ao mesmo tempo militar e popular, de natureza radicalista para depor o governador da Província e substituí-lo por um governo republicano?

Como é que uma Loja, antes de se instalar, antes de reunir seus irmãos, antes de ouvi-los em assembléia, antes de combinar com todos um plano harmônico de ação coletiva - poderia deliberar a tal respeito, organizar planos, despachar agentes para executá-los, desenvolver sua atividade com esperança de êxito em condições tão precárias?

É absurdo que uma associação carioca, aberta a 24 de junho, tivesse promovido uma conspiração na capital de S. Paulo, no dia anterior; e mesmo que fosse alguns dias depois, tal façanha dificilmente poderia ser praticada, porque o Rio está longe, e não havia telégrafos nem vias férreas aproximando os povos, mas apenas correios irregularmente organizados e incômodas estradas de rodagem que se percorriam demoradamente no lombo de cavalgaduras pachorrentas ou retardatárias.

Esta é a primeira dúvida que levantamos contra a autenticidade e a veracidade da narrativa atribuída a F. Soares, suposto representante da Loja de Gonçalves Ledo junto aos conspiradores republicanos da Paulicéia. Mas se a narrativa é autêntica e seu autor existiu - teremos que reputá-lo o mais insigne dos mentirosos políticos de seu tempo, pois a sua carta é um grosseiro tecido de falsidades e inexatidões, como se verá.

Chefiada a sedição pelos Alvins, que tocaram a rebate, propuseram eles à militância e ao povo que se mandasse buscar José Bonifácio em sua casa, para presidir à eleição; e como este, ao revés do que desejavam aqueles moços entusiastas, deu a presidência do Governo Provisório ao governador português deposto, que a aceitou - foi isso considerado uma torpe traição do velho Andrada.

Os irmãos Alvins - informa o relator secreto, com grande e evidente gáudio do professor Cintra - protestaram contra a atitude do futuro Patriarca e deixaram de assinar a ata da eleição. A afirmativa é simplesmente audaz por mentirosa. Os dignos moços paulistas não levantaram protesto algum e assinaram, com todos os cidadãos presentes ao comício, a ata de que se fala, ou antes, o "Termo de Vereança Geral e Extraordinária para se proceder à formação de um Governo Provisório, jurar as Bases da Constituição decretada pelas Cortes de Lisboa, observar as Leis, jurar obediência ao Rei e ao Príncipe Real".

A assinatura de Manuel Alves Alvim é a 47ª e figura entre a de Joaquim Rodrigues Gonçalves e a de Thomé Manuel de Jesus Varella; e a de José Innocêncio Alves Alvim vem pouco abaixo da de seu irmão, é a 58ª e está entre a do padre Vicente Pires da Motta e a do ajudante Jerónymo José de Andrade [4].

Ora, não podendo nós conceber que um representante da Maçonaria contasse à Loja que o comissionara tão escandalosa mentira - temos que concluir forçosamente que tal representante é supositício e que seu Relatório é meramente apócrifo. Os irmãos Alvins, contra o que ele assevera, foram dos primeiros a assinar a ata, sem restrição alguma. Logo - não protestaram; logo - estavam de pleno acordo com o que José Bonifácio propôs e foi unanimemente aprovado pelo povo e tropa, segundo reza a dita ata que os destemidos irmãos subscreveram.

Mas essa mentira não está só. Acompanha-a solidariamente outra de porte igual. Afirma o professor Cintra - ou antes o correspondente epistolar maçônico da Loja Comércio e Artes, chamado F. Soares, que os cabeças da sublevação pugnavam pelo estabelecimento do regime republicano no território paulista; e daí a desilusão que tiveram com a aclamação do nome de Oeynhausen para presidente da Junta. José Innocêncio, que arengara à multidão logo depois da chegada de José Bonifácio ao local, perorou da seguinte forma, ao que refere Soares, patrocinado por Cintra: "Queremos que o conselheiro presida nossos trabalhos. Está deposto o governador português, o déspota João Carlos. Queremos a liberdade. Estamos cansados de escravidão. O Brasil inteiro ouvirá a nossa voz e nos ajudará. Viva o conselheiro! Viva a Religião! Viva S. Paulo! Viva o Brasil! Viva a Liberdade!" [5].

Estava escrito, porém, que o autor paulista havia de contestar-se a si mesmo com os próprios documentos que, sem maior exame, foi encaixando nas páginas do seu livro, como um noticiarista de jornal que, à última hora, quando falta matéria para encher a folha do dia, recorta apressadamente de outro jornal notícias ou artigos quaisquer, gruda-os nos linguados e quase sem os ler manda-os para as oficinas.

O livro de que se trata é uma cerzidura desordenada de documentos contraditórios que a todo o momento se repelem. Não é obra de um investigador escrupuloso, de u m historiógrafo refletido, ou de um pensador competente: é, como dissemos, o simples trabalho de um jornalista pouco esforçado. Para cumprir seu contrato com os editores, precisava desancar o Patriarca num volume de certo número de páginas. Toca a suprir a falta de cabedal próprio, estendendo a mão sobre os alheios tesouros de nossa história passada e a acumulá-los sem ordem, sem critério, sem exame, e sem escrúpulos.

Mais uma prova do que avançamos está na transcrição, à pág. 83, de um trecho de Machado de Oliveira sobre os sucessos de 23 de junho, transcrição que fez com o único intuito de convencer seus leitores, apadrinhado por uma opinião valiosa, de que José Bonifácio não foi o fautor desses acontecimentos, que se deveram exclusivamente aos Alvins e à Maçonaria. Ele que o transcreve, é porque reconhece no escritor citado e transcrito autoridade moral e suma competência historial.

Pois no referido trecho, informa com precisão Machado de Oliveira que José Innocêncio Alves Alvim, "logo que se viu rodeado de povo e por ele vivamente vitoriado, e que a tropa se apresentara ali em formatura com seus chefes, levantou vivas à Religião, ao Sistema Constitucional, às Bases da Constituição, ao Príncipe Regente e ao Governo Provisório que ia instalar-se" [6].

Como se conciliam estes informes tão positivos com os que há pouco citamos? Se os Alvins, sob injunções da Ordem Maçônica, tentaram proclamar a nossa independência sob a forma republicana, e não o fizeram, obstados pela traição de José Bonifácio, tal qual diz e repete em vários passos de seu volume o professor Assis Cintra [7] - como é que José Innocêncio levantou vivas às Bases da Constituição Portuguesa e ao príncipe regente? José Bonifácio, nesse momento preliminar, ainda não tinha sido convidado a comparecer no local, ainda não tinha dado sua opinião, ou emitido publicamente seu parecer sobre a revolta. Logo - antes dele houvera um traidor à Maçonaria e à República; e esse traidor era precisamente José Innocêncio. Ou não há lógica neste mundo. Dando vivas ao príncipe regente, provou que era monárquico; e provou mais que nem sequer era ainda independencista porque levantou vivas às Bases da Constituição Portuguesa.

Não há como escapar deste dilema; e por isso tornamos a dizer: ou o Relatório de F. Soares é apócrifo ou o seu autor sofria incuravelmente de mitomania - e nesse caso sua narração fantástica não merece absolutamente crédito, a não ser dos sofismadores contumazes da verdade histórica.

E não foram somente essas as manifestações que os Alvins deram, de sua inteira solidariedade com José Bonifácio e o Governo Provisório. Ainda seis meses depois, a 31 de dezembro, assinavam eles a Representação da Câmara Municipal, pedindo ao príncipe para ficar, e da qual foi portadora a deputação chefiada por José Bonifácio [8]. Mas se pediam ao príncipe para não partir - como é que eram republicanos? E se nesse sentido assinavam uma representação oficial, que seria defendida por José Bonifácio perante d. Pedro - como é que tinham na conta de traidor o venerando cidadão paulista? Não é tudo isto ingênuo, inverossímil e inacreditável?

E não ficamos somente aí. Ainda há mais. Cintra, no ardor de seu puritanismo republicano, não perdoa, como se tem visto, a José Bonifácio o seu erro político inicial, trabalhando pela independência debaixo do regime monárquico e não da República. Anulou assim o brilhante movimento que a Maçonaria encaminhava sob a cívica orientação de Gonçalves Ledo.

Entretanto, os documentos, mesmo de origem autenticamente maçônica, prosseguem na sua faina de pulverizar tudo quanto a esse respeito avança, com a maior audácia, o imperturbável sofista bragantino. Ledo era republicano, Ledo queria que a nossa emancipação fosse feita proclamando-se ao mesmo tempo a República; e tal não aconteceu porque o maquiavelismo político do eminente Andrada inutilizou os ingentes esforços daquele intrépido e popular publícola. É o que diz Cintra. É o que Cintra repisa e repete, a cada passo, enaltecendo o carioca e deprimindo o paulista.

Mas o que Cintra diz, repisa e repete, sacudindo freneticamente nas mãos o Relatório famoso de Soares - é pura e simplesmente mentira, e nada mais. Na certidão que o Grão-Mestre da Maçonaria Brasileira, marquês de Abrantes, mandou passar, a requerimento do irmão Gr. 33, dr. Mello Moraes, sobre a intervenção daquele Instituto no movimento emancipador, lê-se textualmente o seguinte: "Que da ata da sessão de 20 do 6º mês do mesmo ano de 1822 (90 de setembro) consta que, tendo sido convocados os maçons membros das três Lojas Metropolitanas [9] para esta sessão extraordinária, com o especificado fim adiante declarado, sendo também presidida pelo sobredito Primeiro Grande Vigilante Joaquim Gonçalves Ledo, no impedimento do Grande-Mestre José Bonifácio, dirigira do sólio um enérgico e fundado discurso, demonstrando com as mais sólidas razões que as atuais políticas circunstâncias de nossa Pátria, o rico, fértil e poderoso Brasil, demandavam e exigiam imperiosamente que a sua categoria fosse inabalavelmente firmada com a proclamação DE NOSSA INDEPENDÊNCIA, E DA REALEZA CONSTITUCIONAL NA PESSOA DO AUGUSTO PRÍNCIPE, PERPÉTUO DEFENSOR DO REINO DO BRASIL... Que propôs ainda o mesmo Primeiro Vigilante Joaquim Gonçalves Ledo a necessidade de ser esta sua moção discutida... Em conseqüência do que,... falaram vários membros, e posto que todos aprovaram a moção, reconhecendo a necessidade imperiosa de se fazer a independência do Brasil E DE SER ACLAMADO REI DELE O PRÍNCIPE D. PEDRO DE ALCÂNTARA, seu defensor perpétuo e constitucional, contudo... ficou reservada a discussão para outra assembléia geral" [10].

Aí está em que consistia o republicanismo vislumbrado pelo professor Assis Cintra no monarquista declarado e confesso Joaquim Gonçalves Ledo! Este queria que o Brasil se proclamasse independente com a categoria de Reino e que d. Pedro fosse aclamado rei do mesmo Reino, e propunha na Maçonaria exatamente aquilo que o príncipe, sob as patrióticas instigações de José Bonifácio, iria breve executar em S. Paulo.

Como, pois, a não ser por lastimável ignorância, agravada de insólita má-fé, rebaixa-se o papel de José Bonifácio, exalçando-se o de Gonçalves Ledo, se ambos agiam impulsionados pelo mesmo ideal e buscavam a realização prática do mesmo duplo objetivo - a separação de Portugal e a constituição do Brasil na categoria de Reino?

Em vista do que expusemos, das provas a que nos cingimos, e dos argumentos em que nos baseamos - ainda uma vez repetimos: o Relatório maçônico de F. Soares, em que se apóia Cintra, se não é um documento apócrifo, é com toda a certeza um documento inepto!

***

A Junta Paulista é a primeira a reconhecer a regência de D. Pedro

A agitação produzida no espírito público da Província pelos fatos ocorridos a 23 de junho, a preocupação do Governo Provisório em pôr ordem nos serviços da Administração, de acordo com a índole do sistema constitucional inaugurado, contribuíram para que as eleições dos deputados às Cortes não se realizassem com a presteza desejada e recomendada tanto pelas ditas Cortes, como pelo rei e pelo príncipe regente.

Outros graves acontecimentos de que falaremos em seguida, e que trouxeram alarmada a população paulista, não deixariam, por certo, de cooperar para o retardamento desse importante ato - o primeiro que se realizava entre nós, e que, por isso mesmo, dado o atraso do meio social da época, havia de decorrer entre escolhos e dificuldades de toda a sorte.

Primeiros atos do Governo Provisório

No mesmo dia de sua proclamação, realizou o Governo Provisório a sua reunião inaugural, tendo assentado em primeiro lugar que se faria uma participação ao príncipe regente e às Cortes Nacionais e Constituintes de Lisboa, assinada por todos os membros do mesmo governo, e na qual se lhes narrassem as ocorrências políticas aqui sucedidas [11].

Na segunda sessão, realizada a 25, ficou mais resolvido que se nomeasse uma comissão de três deputados da mesma Junta, para minutarem a carta que deveria ser apresentada a Sua Alteza, acompanhada de uma cópia do auto que dos acontecimentos de 23 se lavrara na Câmara Municipal.

Tal comissão, para que foram eleitos José Bonifácio, o arcipreste Felisberto Jardim e o padre-mestre Francisco de Paula e Oliveira, ficou incumbida de comunicar a d. Pedro que, tendo o governo de S. Paulo jurado obediência às Bases da Constituição, ao rei e à regência do Rio, também jurara na mesma ocasião promover o bem da província em particular, pelo que pedia a Sua Alteza que lhe deixasse livre a disposição e economia dos negócios internos e outrossim lhe permitisse o direito de representar contra os inconvenientes que pudessem resultar da expedição de qualquer lei ou decreto, em vista das circunstâncias de ordem local dignas de ser atendidas.

Na mesma reunião nomeou-se outra comissão, incumbida de levar pessoalmente ao príncipe a carta projetada, comissão para a qual foram escolhidos o brigadeiro Jordão e o coronel Gama Lobo [12].

Na terceira sessão, que se passou a 27, leu-se, examinou-se, aprovou-se e mandou-se copiar com todo o asseio, para ser assinada, a minuta da referida carta [13], que foi mandada para seu destino a 30 [14].

Da súmula desse documento, exarada na ata da sessão de 25, e que acabamos de reproduzir linhas atrás, nada consta relativamente à contribuição pecuniária da província para as despesas gerais do Reino; nem a isso tampouco se refere d. Pedro na sua carta de 30 de julho, escrita ao governo paulista em resposta àquela participação, e dando sua plena aprovação aos atos praticados pelo mesmo governo.

É de notar, entretanto, que d. Pedro alude à faculdade que se arrogou a Junta de lhe representar contra os inconvenientes resultantes da aplicação de certas medidas a S. Paulo, mas nem de leve toca no pedido que lhe fora feito de deixar-lhe "a disposição e economia do governo interior da Província", nos termos constantes da ata da sessão realizada a 25 [15].

Teria acaso pensado d. Pedro que seria melhor não dar uma aquiescência expressa a tal desejo, por lhe parecer exorbitante das faculdades inerentes ao regime das juntas locais e prejudicial à boa marcha da administração do Reino?

É certo que, na sua carta de 17 de julho a El-Rei seu pai, participa-lhe ele que a Junta de S. Paulo lhe obedece, "menos no que toca a mandar dinheiro" [16], mas nos documentos que examinamos, relacionados com esse fato, não encontramos nenhuma declaração da Junta de S. Paulo, escusando-se a cooperar para os gastos gerais do País.

Dificuldades financeiras

O que supomos é que o Governo Provisório, tendo em vista a situação aflitiva das finanças provinciais, pretendeu apenas suspender suas remessas para o Erário do Rio até que a situação se normalizasse.

Efetivamente não podiam ser piores as condições em que a Junta fora encontrar o Tesouro paulista, cuja receita mal chegava para satisfazer os compromissos comuns da Administração; tanto assim que, logo na sua terceira sessão, realizada a 27 de junho, determinou à Junta da Fazenda que, quando as rendas não fossem bastantes para acudir às despesas urgentes com a segurança pública, defesa da província e folhas dos ordenados, fizesse "um rateio exato por todos estes sem preferência" [17].

E mais tarde, continuando a ser péssima a situação do Tesouro, impossibilitado de fazer face, regularmente, aos pagamentos que lhe competiam, o secretário do Interior e Fazenda, Martim Francisco, propôs, e foi adotado, que se tornasse público o estado financeiro da província, e se pedisse aos capitalistas dela, por meio de uma subscrição, e a título de donativo ou empréstimo, a quantia que fosse necessária no momento, marcando-se os juros a pagar aos prestamistas e a verba previamente destinada ao serviço não só de tais juros como da amortização gradual das somas obtidas [18].

Não obstante, continuaram correndo pela Junta da Fazenda os pagamentos com serviços pertencentes ao Governo Geral; assim, pois, se S. Paulo, porque não havia sobras, escusava-se de concorrer para os gastos da Corte, nem por isso deixava de contribuir com a sua cota para o pagamento das despesas que deviam ser custeadas pelo Erário Régio, o que quer dizer que não negava, como parece à primeira vista, recursos financeiros à administração do príncipe regente.

E a prova de que assim continuava a proceder, é que na citada reunião do dia 27, determinou ainda à Junta da Fazenda que não desse cumprimento às portarias vindas do Erário do Rio de Janeiro sem que lhes fosse posto o respectivo Cumpra-se pelo governo - providência indispensável para que este pudesse conhecer a marcha das finanças e decidir da oportunidade, adiabilidade ou urgência dos pagamentos ordenados por aquele Erário [19].

Também até 22 de setembro os tributos do Banco do Brasil continuaram a ser mandados, ininterrupta e regularmente, para o Rio, e só na sessão desse dia é que resolveu o governo suspender tais remessas [20], naturalmente pela escassez de recursos monetários para atender aos compromissos do próprio Tesouro Nacional, resgatados por intermédio da Junta da Fazenda.

Parece-nos demonstrado, portanto, que a falta de dinheiro dos paulistas, da qual se queixara o príncipe a seu pai, não importava em escusa de contribuírem para as despesas gerais do Reino no território da província.

O que é incontestável, porém, é que à Junta de S. Paulo cabe positivamente a prioridade no reconhecimento da legitimidade da Regência, jurando fidelidade e obediência ao governo de d. Pedro - e este é um fato culminante na evolução dos acontecimentos políticos que lograram seu inevitável desfecho nos campos do Ipiranga.

As Juntas constituídas nas outras províncias tinham-se espontaneamente submetido à soberania das Cortes e não prestavam obediência alguma à precária autoridade da Regência. A mesma Junta Fluminense nascera de um geral sentimento de desconfiança e hostilidade ao governo de d. Pedro, cujos atos pretendia fiscalizar e cuja autonomia buscava restringir, intervindo até nas atribuições privativas de seu cargo e que as Bases da Constituição lhe asseguravam formalmente.

De maneira que o primeiro apoio direto, a primeira decisiva demonstração pública de solidariedade que teve d. Pedro, partiu de S. Paulo, onde José Bonifácio comandava a opinião da generalidade de seus patrícios; daí, naturalmente, a confiança crescente que ao velho santista e aos paulistas leais manifestava o regente, a ponto de não querer tomar nenhuma atitude definitiva sem primeiro ouvir a palavra de S. Paulo, ou por outra, a do sábio Andrada, como para diante se verá, principalmente quando nos ocuparmos do Fico.

A seqüência dos fatos irá mostrando, à luz dos documentos e da crítica, que a prioridade do grandioso movimento que libertou do jugo português o Brasil, cabe a S. Paulo, e especialmente a José Bonifácio, que o instinto popular e a justiça histórica elegeram Patriarca da nossa independência.

[...]


NOTAS:

[1] Obr. cit., vol. 1º, pág. 79, col. 2ª, nota e pág. 90, 1ª col.

[2] O Homem da Independência.

[3] História da Independência, cap. V, pág. 166, nota 35, in fine.

[4] Termo de Vereança Geral, e Extraordinária da Câmara, feita a requerimento do povo, e tropas desta cidade e termo (Actas da Câmara Municipal de S. Paulo, vol. XXII, págs. 469 e 472). Aqui reproduzimos o importante documento de nossa História: "Aos vinte e três de junho de mil oitocentos e vinte e um, nesta Cidade de S. Paulo e Casas da Câmara e Paços do Concelho dela, onde foram vindos o doutor juiz de fora presidente Nicolau de Siqueira Queirós; vereadores atuais, e o atual procurador assistindo o povo, e as tropas, pelos quais foram convocados os ditos extraordinariamente para se proceder à formação de um Governo Provisório, jurar as Bases da Constituição decretadas pelas Cortes de Lisboa, e observar religiosamente as Leis, que garantem a segurança individual, a propriedade, e direitos dos cidadãos; jurarem outrossim a obediência ao Muito Alto, e Poderoso Senhor Dom João Sexto, Nosso Rei Constitucional do Reino Unido de Portugal, Brasil, e Algarves, e a Sua Alteza Real o Príncipe Hereditário Regente do Reino do Brasil, e à Real Dinastia da Sereníssima Casa de Bragança, tudo na conformidade do que Sua Alteza Real praticou de próximo na Corte do Rio de Janeiro, e mandou praticar em todo o Reino do Brasil.

"E neste ajuntamento, e vereação foram nomeados por unânime aclamação do povo, e tropas, que se acham reunidos, e postados no largo destes Paços do Concelho - Para presidente o Ilmo. e Exc. Sr. João Carlos Augusto d'Oeynhausen - Para vice-presidente o conselheiro José Bonifácio de Andrada e SIlva - Para secretários do Governo do Interior e Fazenda o coronel Martim Francisco Ribeiro de Andrada - Para os Negócios da Guerra o coronel Lázaro José Gonçalves - Para os da Marinha o chefe de esquadra Miguel José de Oliveira Pinto - Para deputados, e vogais da Junta pelo Eclesiástico o rmo. arcipreste Felisberto Gomes Jardim, e o rmo. tesoureiro-mor João Ferreira de Oliveira Bueno - Pelas Armas o coronel António Leite Pereira da Gama Lobo, e o coronel Daniel Pedroso Müller - Pelo Comércio, o coronel Francisco Ignácio de Sousa Queirós, e o brigadeiro Manuel Rodrigues Jordão - Pela Ciência, e Educação Pública o rdº. pe. me. Francisco de Paula e Oliveira, e o professor André da Silva Gomes - Pela Agricultura o dr. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, e o tenente-coronel António Maria Quartim; dos quais aos presentes se deu logo posse e o juramento seguinte: - Juro as Bases da Constituição decretadas pelas Cortes Gerais e Extraordinárias e Constituintes de Lisboa. - Juro obediência a S. M. o Sr. Dom João Sexto, Rei Constitucional do Reino Unido de Portugal, Brasil, e Algarves. - Juro outrossim, de vigiar pela exata, e pronta execução das Leis existentes; e promover todo o bem desta província em particular e da nação em geral. Assim Deus me salve. E depois de findo este ato de vereação, para constar mandaram lavrar este termo em que esta Câmara e todas as autoridades, povo, e tropas presentes assinaram. E eu João Nepomuceno de Almeida, escrivão da Câmara que o escrevi, e assinei".

[5] O Homem da Independência, pág. 83.

[6] O Homem da Independência.

[7] Idem, págs. 38, 77 e outras.

[8] Registro da Câmara Municipal de S. Paulo (1820-1822), págs. 297 e 299.

[9] Eram estas: Comércio e Artes, Esperança de Niterói e União e Tranqüilidade. Da primeira se desdobraram as duas últimas (MELLO MORAES - Obr. cit., vol. 1º, pág. 79, col. 1ª). RIO BRANCO, na nota 10 à pág. 183 da Hist. da Indep., prova que a data citada por Mello Moraes e encampada por VARNHAGEN está errada. Segundo o calendário dos maçons brasileiros, 20 do sexto mês corresponde a 20 de agosto e não a 9 de setembro.

[10] MELLO MORAES - Obr. cit., vol. cit., pág. 90, 2ª coluna. Os grifos e versaletes são nossos. (N.E.: nossos, isto é, do autor Alberto Sousa).

[11] Actas das Sessões do Govêrno Provisório de S. Paulo (publicação oficial do Arquivo do Estado, pág. 7 da 3ª edição).

[12] Idem, página 8.

[13] Idem, página 11.

[14] Docs. Interes., vol. XXXVI, pág. 143.

[15] Docs. Interes., vol. XXXVI, pág. 144.

[16] Cartas de D. Pedro I a D. João VI, edição do Instituto Histórico do Ceará. Nesta edição, que é reproduzida fielmente, como já dissemos, dos Documentos para a História das Côrtes Geraes Portuguesas, publicação oficial autorizada pela Câmara dos Deputados de Portugal, e haurida diretamente nos seus preciosos arquivos, lê-se o seguinte: "Em S. Paulo houve uma concussão, para o juramento das Bases da Constituição, e formaram uma Junta Provisória, obedecendo-me, menos no que toca a mandar dinheiro, e que querem para a Junta as mesmas autoridades que tinha o governador".

Na edição Eugénio Egas, esta carta é vertida da tradução francesa de Monglave, e o trecho de que se trata está redigido por esta forma: "Houve tumultos em S. Paulo por ocasião do juramento das Bases da Constituição. Os habitantes organizaram uma Junta Provisória que depende de mim, exceto no que diz respeito a dinheiros públicos, que se negam a fornecer para as necessidades do Rio de Janeiro. Reclamam para a Junta os mesmos poderes de que se achava investido o governador, a quem coube a presidência" (pág. 13).

[17] Actas do Govêrno Provisório, pág. 11.

[18] Idem, página 64.

[19] Idem, página 11.

[20] Idem, página 60.

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