PRIMEIRA PARTE - PRELÚDIOS DA INDEPENDÊNCIA
Capítulo IV - Acontecimentos em S. Paulo (cont.)
[...]
Um relatório maçônico
Terminada esta longa digressão em torno dos secretos pensamentos do sr. Assis Cintra, retomemos o fio
de nossas anteriores observações. Dizíamos que ele inseriu no Homem da Independência, contra a atitude de José Bonifácio em face dos
acontecimentos revolucionários de 23 de junho, o relatório escrito pelo representante secreto da Loja de Gonçalves Ledo sobre tais sucessos, no dia
seguinte à sua verificação.
Para o autor, o movimento subversivo daquele dia fora obra maçônica; a Maçonaria, instigada pela
vontade de Ledo, tudo prepara para que a revolução estalasse, depondo o governador Oeynhausen, e proclamando a República em S. Paulo. Foram
encarregados dessa audaz manobra radicalista os simpáticos irmãos Alves Alvim, que tocaram a rebate no sino da Cadeia, para que as tropas e o povo
acudissem ao ponto de reunião previamente marcado - o Pátio de S. Gonçalo, assim chamado por ali existir a igreja sob invocação daquele santo.
Um deles, José Inocêncio, é que propôs convidar-se a José Bonifácio para presidir à eleição; e
foi, segundo o relator, quem deu ao discurso daquele o aparte que citamos, protestando que o povo não queria no governo nenhum dos que o tinham
oprimido até então. José Bonifácio não atendeu, antes se opôs ao alvitre, e conseguiu que da Junta aclamada fizesse parte o governador deposto,
traindo assim os intuitos dos conspiradores e prejudicando a execução dos planos combinados. Redigida, em vereança, pelo próprio Bonifácio, a ata da
aclamação, protestaram contra ela e não a assinaram, José Innocêncio Alves Alvim e Joaquim Alves Alvim, os dois iniciadores do fracassado movimento
republicano.
Este é, com toda a fidelidade, o resumo do Relatório, em cujos conceitos o escritor de O Homem
da Independência confiadamente se louva. Examinemos, ou por outra, pulverizemos sem maior demora a famosa peça - mais do que inverossímil, por
ser positivamente inverdadeira.
O sr. Assis Cintra não nos diz onde a colheu, de que arquivo ou de que obra a copiou ou trasladou;
nem quem é o tal F. Soares, que a assina como representante da Loja de Gonçalves Ledo (Loja cuja denominação também não dá); de forma que fica o
público obrigado a acreditar nos seus arrazoados sob palavra, como se se tratasse de um vulto que, por suas imáculas virtudes, pela austeridade de
seu caráter, por seus notáveis talentos de publicista, pela vastidão de seu preparo intelectual, sobretudo em História, já se tivesse imposto
incondicionalmente à veneração dos letrados e da opinião pública em geral.
Nenhum desses predicados concorre no sr. Assis Cintra em grau superior ao de outros quaisquer
historiadores, que se julgam, entretanto, no dever imprescindível de citar sempre as fontes de que se socorrem para que suas informações e conceitos
sejam devidamente examinados pelos homens capazes, maiormente se visam retificar informes ou contestar juízos que a tradição já consagrou na
História.
Cumpre-nos declarar que não conhecemos o Relatório de que o escritor paulista lançou mão para
encher de irreverentes convícios a reputação moral do Patriarca. Pode ser que ele o desencantoasse nalgum arquivo não franqueado aos estudiosos ou
nalguma antiga publicação desaparecida das bibliotecas; mas se de fato existe semelhante escrito, não merece fé alguma, por ser inteiramente
destituído de seriedade documental, como demonstraremos em seguida.
Em 12 de agosto de 1861, o dr. MELLO MORAES
[1], que
era então Grande Orador do Oriente Brasileiro, querendo averiguar até que ponto a Maçonaria tinha cooperado para a proclamação da Independência e do
Império, requereu ao respectivo Grão-Mestre, marquês de Abrantes, que lhe mandasse dar por certidão tudo quanto constasse a tal respeito.
Ora, a "Loja de Gonçalves Ledo", como vagamente lhe chama o sr. Cintra, era a
Loja Comércio e Artes. Mas esta Loja se achava inativa havia longo tempo, devido às perseguições que contra ela movera a polícia carioca,
especialmente ao tempo do ministério presidido pelo Conde dos Arcos, e só se reinstalou a 24 de junho de 1821, em casa do capitão-de-mar-e-guerra
José Domingues de Athayde Moncorvo, como o próprio autor assegura à pág. 75 do seu volume
[2], baseando-se no referido Mello Moraes, cujas
informações transcreve, sem contudo declinar a fonte onde abundosamente as captou.
E na pressa com que lança mão dos preciosos dados do velho cronista, nem reparou sequer que na
obra deste há um evidente erro de composição tipográfica ou de revisão, que cumpre corrigir, porquanto, depois de escrever que a Loja se instalara
de novo a 24 de junho, linhas abaixo refere que a "5 de junho ela reergueu suas abatidas colunas". Reerguer as colunas abatidas é, em
linguagem simbólica, recomeçar a atividade no mundo maçônico; e a Loja Comércio e Artes não poderia reencetar essa atividade antes de ter sido
instalada.
Assim, pois, a 24 de junho houve uma sessão especial de instalação e a 5 do mês imediato, isto é,
de julho, recomeçou ela a trabalhar. Trata-se de uma simples troca de caractere - um l por um n, letras que no tempo da composição
tipográfica manual eram vizinhas nas divisórias dos respectivos caixotins, podendo o artista, ao distribuir o trabalho já utilizado, ou ao
principiar trabalho novo, lançar nelas ou delas tirar inadvertidamente um tipo em vez do outro.
A obra de Mello Moraes em que vêm todas as notícias referentes à intervenção da
Maçonaria nas agitações pela nossa independência política foi publicada "sem cuidado na revisão das provas", conforme textual e judiciosamente
observa Porto-Securo [3].
O que se torna indubitável, porém, é que, segundo Mello Moraes, e segundo o próprio Cintra, a Loja
Comércio e Artes, suspensa havia bastante tempo por ordem da polícia, só reentrou em período de franca atividade depois de 24 de junho, data em que
de novo se instalara secretamente. Como é possível, pois, que antes desse fato capital, tivesse ela nomeado um representante em S. Paulo, planejado
um levante, ao mesmo tempo militar e popular, de natureza radicalista para depor o governador da Província e substituí-lo por um governo
republicano?
Como é que uma Loja, antes de se instalar, antes de reunir seus irmãos, antes de ouvi-los em
assembléia, antes de combinar com todos um plano harmônico de ação coletiva - poderia deliberar a tal respeito, organizar planos, despachar agentes
para executá-los, desenvolver sua atividade com esperança de êxito em condições tão precárias?
É absurdo que uma associação carioca, aberta a 24 de junho, tivesse promovido uma conspiração na
capital de S. Paulo, no dia anterior; e mesmo que fosse alguns dias depois, tal façanha dificilmente poderia ser praticada, porque o Rio está longe,
e não havia telégrafos nem vias férreas aproximando os povos, mas apenas correios irregularmente organizados e incômodas estradas de rodagem que se
percorriam demoradamente no lombo de cavalgaduras pachorrentas ou retardatárias.
Esta é a primeira dúvida que levantamos contra a autenticidade e a veracidade da narrativa
atribuída a F. Soares, suposto representante da Loja de Gonçalves Ledo junto aos conspiradores republicanos da Paulicéia. Mas se a narrativa é
autêntica e seu autor existiu - teremos que reputá-lo o mais insigne dos mentirosos políticos de seu tempo, pois a sua carta é um grosseiro tecido
de falsidades e inexatidões, como se verá.
Chefiada a sedição pelos Alvins, que tocaram a rebate, propuseram eles à militância e ao povo que
se mandasse buscar José Bonifácio em sua casa, para presidir à eleição; e como este, ao revés do que desejavam aqueles moços entusiastas, deu a
presidência do Governo Provisório ao governador português deposto, que a aceitou - foi isso considerado uma torpe traição do velho Andrada.
Os irmãos Alvins - informa o relator secreto, com grande e evidente gáudio do professor Cintra -
protestaram contra a atitude do futuro Patriarca e deixaram de assinar a ata da eleição. A afirmativa é simplesmente audaz por mentirosa. Os
dignos moços paulistas não levantaram protesto algum e assinaram, com todos os cidadãos presentes ao comício, a ata de que se fala, ou antes, o
"Termo de Vereança Geral e Extraordinária para se proceder à formação de um Governo Provisório, jurar as Bases da Constituição decretada pelas
Cortes de Lisboa, observar as Leis, jurar obediência ao Rei e ao Príncipe Real".
A assinatura de Manuel Alves Alvim é a 47ª e figura entre a de Joaquim Rodrigues
Gonçalves e a de Thomé Manuel de Jesus Varella; e a de José Innocêncio Alves Alvim vem pouco abaixo da de seu irmão, é a 58ª e está entre a do padre
Vicente Pires da Motta e a do ajudante Jerónymo José de Andrade [4].
Ora, não podendo nós conceber que um representante da Maçonaria contasse à Loja que o comissionara
tão escandalosa mentira - temos que concluir forçosamente que tal representante é supositício e que seu Relatório é meramente apócrifo. Os irmãos
Alvins, contra o que ele assevera, foram dos primeiros a assinar a ata, sem restrição alguma. Logo - não protestaram; logo - estavam de pleno acordo
com o que José Bonifácio propôs e foi unanimemente aprovado pelo povo e tropa, segundo reza a dita ata que os destemidos irmãos subscreveram.
Mas essa mentira não está só. Acompanha-a solidariamente outra de porte igual.
Afirma o professor Cintra - ou antes o correspondente epistolar maçônico da Loja Comércio e Artes, chamado F. Soares, que os cabeças da sublevação
pugnavam pelo estabelecimento do regime republicano no território paulista; e daí a desilusão que tiveram com a aclamação do nome de Oeynhausen para
presidente da Junta. José Innocêncio, que arengara à multidão logo depois da chegada de José Bonifácio ao local, perorou da seguinte forma, ao que
refere Soares, patrocinado por Cintra: "Queremos que o conselheiro presida nossos trabalhos. Está deposto o governador português, o déspota João
Carlos. Queremos a liberdade. Estamos cansados de escravidão. O Brasil inteiro ouvirá a nossa voz e nos ajudará. Viva o conselheiro! Viva a
Religião! Viva S. Paulo! Viva o Brasil! Viva a Liberdade!" [5].
Estava escrito, porém, que o autor paulista havia de contestar-se a si mesmo com os próprios
documentos que, sem maior exame, foi encaixando nas páginas do seu livro, como um noticiarista de jornal que, à última hora, quando falta matéria
para encher a folha do dia, recorta apressadamente de outro jornal notícias ou artigos quaisquer, gruda-os nos linguados e quase sem os ler manda-os
para as oficinas.
O livro de que se trata é uma cerzidura desordenada de documentos contraditórios que a todo o
momento se repelem. Não é obra de um investigador escrupuloso, de u m historiógrafo refletido, ou de um pensador competente: é, como dissemos, o
simples trabalho de um jornalista pouco esforçado. Para cumprir seu contrato com os editores, precisava desancar o Patriarca num volume de certo
número de páginas. Toca a suprir a falta de cabedal próprio, estendendo a mão sobre os alheios tesouros de nossa história passada e a acumulá-los
sem ordem, sem critério, sem exame, e sem escrúpulos.
Mais uma prova do que avançamos está na transcrição, à pág. 83, de um trecho de Machado de
Oliveira sobre os sucessos de 23 de junho, transcrição que fez com o único intuito de convencer seus leitores, apadrinhado por uma opinião valiosa,
de que José Bonifácio não foi o fautor desses acontecimentos, que se deveram exclusivamente aos Alvins e à Maçonaria. Ele que o transcreve, é porque
reconhece no escritor citado e transcrito autoridade moral e suma competência historial.
Pois no referido trecho, informa com precisão Machado de Oliveira que José
Innocêncio Alves Alvim, "logo que se viu rodeado de povo e por ele vivamente vitoriado, e que a tropa se apresentara ali em formatura com seus
chefes, levantou vivas à Religião, ao Sistema Constitucional, às Bases da Constituição, ao Príncipe Regente e ao Governo Provisório que ia
instalar-se" [6].
Como se conciliam estes informes tão positivos com os que há pouco citamos? Se os
Alvins, sob injunções da Ordem Maçônica, tentaram proclamar a nossa independência sob a forma republicana, e não o fizeram, obstados pela
traição de José Bonifácio, tal qual diz e repete em vários passos de seu volume o professor Assis Cintra
[7] - como
é que José Innocêncio levantou vivas às Bases da Constituição Portuguesa e ao príncipe regente? José Bonifácio, nesse momento preliminar, ainda não
tinha sido convidado a comparecer no local, ainda não tinha dado sua opinião, ou emitido publicamente seu parecer sobre a revolta. Logo - antes dele
houvera um traidor à Maçonaria e à República; e esse traidor era precisamente José Innocêncio. Ou não há lógica neste mundo. Dando vivas ao príncipe
regente, provou que era monárquico; e provou mais que nem sequer era ainda independencista porque levantou vivas às Bases da Constituição
Portuguesa.
Não há como escapar deste dilema; e por isso tornamos a dizer: ou o Relatório de F. Soares é
apócrifo ou o seu autor sofria incuravelmente de mitomania - e nesse caso sua narração fantástica não merece absolutamente crédito, a não ser dos
sofismadores contumazes da verdade histórica.
E não foram somente essas as manifestações que os Alvins deram, de sua inteira
solidariedade com José Bonifácio e o Governo Provisório. Ainda seis meses depois, a 31 de dezembro, assinavam eles a Representação da Câmara
Municipal, pedindo ao príncipe para ficar, e da qual foi portadora a deputação chefiada por José Bonifácio
[8]. Mas
se pediam ao príncipe para não partir - como é que eram republicanos? E se nesse sentido assinavam uma representação oficial, que seria defendida
por José Bonifácio perante d. Pedro - como é que tinham na conta de traidor o venerando cidadão paulista? Não é tudo isto ingênuo, inverossímil e
inacreditável?
E não ficamos somente aí. Ainda há mais. Cintra, no ardor de seu puritanismo republicano, não
perdoa, como se tem visto, a José Bonifácio o seu erro político inicial, trabalhando pela independência debaixo do regime monárquico e não da
República. Anulou assim o brilhante movimento que a Maçonaria encaminhava sob a cívica orientação de Gonçalves Ledo.
Entretanto, os documentos, mesmo de origem autenticamente maçônica, prosseguem na sua faina de
pulverizar tudo quanto a esse respeito avança, com a maior audácia, o imperturbável sofista bragantino. Ledo era republicano, Ledo queria que a
nossa emancipação fosse feita proclamando-se ao mesmo tempo a República; e tal não aconteceu porque o maquiavelismo político do eminente Andrada
inutilizou os ingentes esforços daquele intrépido e popular publícola. É o que diz Cintra. É o que Cintra repisa e repete, a cada passo, enaltecendo
o carioca e deprimindo o paulista.
Mas o que Cintra diz, repisa e repete, sacudindo freneticamente
nas mãos o Relatório famoso de Soares - é pura e simplesmente mentira, e nada mais. Na certidão que o Grão-Mestre da Maçonaria Brasileira, marquês
de Abrantes, mandou passar, a requerimento do irmão Gr. 33, dr. Mello Moraes, sobre a intervenção daquele Instituto no movimento emancipador, lê-se
textualmente o seguinte: "Que da ata da sessão de 20 do 6º mês do mesmo ano de 1822 (90 de
setembro) consta que, tendo sido convocados os maçons membros das três Lojas Metropolitanas
[9] para esta sessão extraordinária, com o
especificado fim adiante declarado, sendo também presidida pelo sobredito Primeiro Grande Vigilante Joaquim Gonçalves Ledo, no impedimento do
Grande-Mestre José Bonifácio, dirigira do sólio um enérgico e fundado discurso, demonstrando com as mais sólidas razões que as atuais políticas
circunstâncias de nossa Pátria, o rico, fértil e poderoso Brasil, demandavam e exigiam imperiosamente que a sua categoria fosse inabalavelmente
firmada com a proclamação DE NOSSA INDEPENDÊNCIA, E DA REALEZA CONSTITUCIONAL NA PESSOA DO AUGUSTO PRÍNCIPE, PERPÉTUO DEFENSOR DO REINO DO
BRASIL... Que propôs ainda o mesmo Primeiro Vigilante Joaquim Gonçalves Ledo a necessidade de ser esta sua moção discutida... Em conseqüência
do que,... falaram vários membros, e posto que todos aprovaram a moção, reconhecendo a necessidade imperiosa de se fazer a independência do
Brasil E DE SER ACLAMADO REI DELE O PRÍNCIPE D. PEDRO DE ALCÂNTARA, seu defensor perpétuo e constitucional, contudo... ficou reservada a
discussão para outra assembléia geral"
[10].
Aí está em que consistia o republicanismo vislumbrado pelo professor Assis Cintra no monarquista
declarado e confesso Joaquim Gonçalves Ledo! Este queria que o Brasil se proclamasse independente com a categoria de Reino e que d. Pedro fosse
aclamado rei do mesmo Reino, e propunha na Maçonaria exatamente aquilo que o príncipe, sob as patrióticas instigações de José Bonifácio, iria breve
executar em S. Paulo.
Como, pois, a não ser por lastimável ignorância, agravada de insólita má-fé, rebaixa-se o papel de
José Bonifácio, exalçando-se o de Gonçalves Ledo, se ambos agiam impulsionados pelo mesmo ideal e buscavam a realização prática do mesmo duplo
objetivo - a separação de Portugal e a constituição do Brasil na categoria de Reino?
Em vista do que expusemos, das provas a que nos cingimos,
e dos argumentos em que nos baseamos - ainda uma vez repetimos: o Relatório maçônico de F. Soares, em que se apóia Cintra, se não é um documento
apócrifo, é com toda a certeza um documento inepto!
***
A Junta Paulista é a primeira a reconhecer a
regência de D. Pedro
A agitação produzida no espírito público da Província pelos fatos ocorridos a 23 de junho, a
preocupação do Governo Provisório em pôr ordem nos serviços da Administração, de acordo com a índole do sistema constitucional inaugurado,
contribuíram para que as eleições dos deputados às Cortes não se realizassem com a presteza desejada e recomendada tanto pelas ditas Cortes, como
pelo rei e pelo príncipe regente.
Outros graves acontecimentos de que falaremos em seguida, e que trouxeram alarmada a população
paulista, não deixariam, por certo, de cooperar para o retardamento desse importante ato - o primeiro que se realizava entre nós, e que, por isso
mesmo, dado o atraso do meio social da época, havia de decorrer entre escolhos e dificuldades de toda a sorte.
Primeiros atos do Governo Provisório
No mesmo dia de sua proclamação, realizou o Governo Provisório a sua reunião
inaugural, tendo assentado em primeiro lugar que se faria uma participação ao príncipe regente e às Cortes Nacionais e Constituintes de Lisboa,
assinada por todos os membros do mesmo governo, e na qual se lhes narrassem as ocorrências políticas aqui sucedidas
[11].
Na segunda sessão, realizada a 25, ficou mais resolvido que se nomeasse uma comissão de três
deputados da mesma Junta, para minutarem a carta que deveria ser apresentada a Sua Alteza, acompanhada de uma cópia do auto que dos acontecimentos
de 23 se lavrara na Câmara Municipal.
Tal comissão, para que foram eleitos José Bonifácio, o arcipreste Felisberto Jardim e o
padre-mestre Francisco de Paula e Oliveira, ficou incumbida de comunicar a d. Pedro que, tendo o governo de S. Paulo jurado obediência às Bases da
Constituição, ao rei e à regência do Rio, também jurara na mesma ocasião promover o bem da província em particular, pelo que pedia a Sua Alteza que
lhe deixasse livre a disposição e economia dos negócios internos e outrossim lhe permitisse o direito de representar contra os inconvenientes que
pudessem resultar da expedição de qualquer lei ou decreto, em vista das circunstâncias de ordem local dignas de ser atendidas.
Na mesma reunião nomeou-se outra comissão, incumbida de levar pessoalmente ao
príncipe a carta projetada, comissão para a qual foram escolhidos o brigadeiro Jordão e o coronel Gama Lobo
[12].
Na terceira sessão, que se passou a 27, leu-se, examinou-se,
aprovou-se e mandou-se copiar com todo o asseio, para ser assinada, a minuta da referida carta
[13], que foi mandada para seu destino a 30
[14].
Da súmula desse documento, exarada na ata da sessão de 25, e que acabamos de reproduzir linhas
atrás, nada consta relativamente à contribuição pecuniária da província para as despesas gerais do Reino; nem a isso tampouco se refere d. Pedro na
sua carta de 30 de julho, escrita ao governo paulista em resposta àquela participação, e dando sua plena aprovação aos atos praticados pelo mesmo
governo.
É de notar, entretanto, que d. Pedro alude à faculdade que se arrogou a Junta de
lhe representar contra os inconvenientes resultantes da aplicação de certas medidas a S. Paulo, mas nem de leve toca no pedido que lhe fora feito de
deixar-lhe "a disposição e economia do governo interior da Província", nos termos constantes da ata da sessão realizada a 25
[15].
Teria acaso pensado d. Pedro que seria melhor não dar uma aquiescência expressa a tal desejo, por
lhe parecer exorbitante das faculdades inerentes ao regime das juntas locais e prejudicial à boa marcha da administração do Reino?
É certo que, na sua carta de 17 de julho a El-Rei seu pai, participa-lhe ele que
a Junta de S. Paulo lhe obedece, "menos no que toca a mandar dinheiro" [16],
mas nos documentos que examinamos, relacionados com esse fato, não encontramos nenhuma declaração da Junta de S. Paulo, escusando-se a cooperar para
os gastos gerais do País.
Dificuldades financeiras
O que supomos é que o Governo Provisório, tendo em vista a situação aflitiva das finanças
provinciais, pretendeu apenas suspender suas remessas para o Erário do Rio até que a situação se normalizasse.
Efetivamente não podiam ser piores as condições em que a Junta fora encontrar o
Tesouro paulista, cuja receita mal chegava para satisfazer os compromissos comuns da Administração; tanto assim que, logo na sua terceira sessão,
realizada a 27 de junho, determinou à Junta da Fazenda que, quando as rendas não fossem bastantes para acudir às despesas urgentes com a segurança
pública, defesa da província e folhas dos ordenados, fizesse "um rateio exato por todos estes sem preferência"
[17].
E mais tarde, continuando a ser péssima a situação do Tesouro, impossibilitado
de fazer face, regularmente, aos pagamentos que lhe competiam, o secretário do Interior e Fazenda, Martim Francisco, propôs, e foi adotado, que se
tornasse público o estado financeiro da província, e se pedisse aos capitalistas dela, por meio de uma subscrição, e a título de donativo ou
empréstimo, a quantia que fosse necessária no momento, marcando-se os juros a pagar aos prestamistas e a verba previamente destinada ao serviço não
só de tais juros como da amortização gradual das somas obtidas [18].
Não obstante, continuaram correndo pela Junta da Fazenda os pagamentos com serviços pertencentes
ao Governo Geral; assim, pois, se S. Paulo, porque não havia sobras, escusava-se de concorrer para os gastos da Corte, nem por isso deixava de
contribuir com a sua cota para o pagamento das despesas que deviam ser custeadas pelo Erário Régio, o que quer dizer que não negava, como parece à
primeira vista, recursos financeiros à administração do príncipe regente.
E a prova de que assim continuava a proceder, é que na citada reunião do dia 27,
determinou ainda à Junta da Fazenda que não desse cumprimento às portarias vindas do Erário do Rio de Janeiro sem que lhes fosse posto o respectivo
Cumpra-se pelo governo - providência indispensável para que este pudesse conhecer a marcha das finanças e decidir da oportunidade,
adiabilidade ou urgência dos pagamentos ordenados por aquele Erário [19].
Também até 22 de setembro os tributos do Banco do Brasil continuaram a ser
mandados, ininterrupta e regularmente, para o Rio, e só na sessão desse dia é que resolveu o governo suspender tais remessas
[20],
naturalmente pela escassez de recursos monetários para atender aos compromissos do próprio Tesouro Nacional, resgatados por intermédio da Junta da
Fazenda.
Parece-nos demonstrado, portanto, que a falta de dinheiro dos paulistas, da qual se queixara o
príncipe a seu pai, não importava em escusa de contribuírem para as despesas gerais do Reino no território da província.
O que é incontestável, porém, é que à Junta de S. Paulo cabe positivamente a prioridade no
reconhecimento da legitimidade da Regência, jurando fidelidade e obediência ao governo de d. Pedro - e este é um fato culminante na evolução dos
acontecimentos políticos que lograram seu inevitável desfecho nos campos do Ipiranga.
As Juntas constituídas nas outras províncias tinham-se espontaneamente submetido à soberania das
Cortes e não prestavam obediência alguma à precária autoridade da Regência. A mesma Junta Fluminense nascera de um geral sentimento de desconfiança
e hostilidade ao governo de d. Pedro, cujos atos pretendia fiscalizar e cuja autonomia buscava restringir, intervindo até nas atribuições privativas
de seu cargo e que as Bases da Constituição lhe asseguravam formalmente.
De maneira que o primeiro apoio direto, a primeira decisiva demonstração pública de solidariedade
que teve d. Pedro, partiu de S. Paulo, onde José Bonifácio comandava a opinião da generalidade de seus patrícios; daí, naturalmente, a confiança
crescente que ao velho santista e aos paulistas leais manifestava o regente, a ponto de não querer tomar nenhuma atitude definitiva sem primeiro
ouvir a palavra de S. Paulo, ou por outra, a do sábio Andrada, como para diante se verá, principalmente quando nos ocuparmos do Fico.
A seqüência dos fatos irá mostrando, à luz dos documentos
e da crítica, que a prioridade do grandioso movimento que libertou do jugo português o Brasil, cabe a S. Paulo, e especialmente a José Bonifácio,
que o instinto popular e a justiça histórica elegeram Patriarca da nossa independência.
[...]
NOTAS:
[1] Obr. cit., vol. 1º, pág.
79, col. 2ª, nota e pág. 90, 1ª col.
[2] O Homem da
Independência.
[3] História da
Independência, cap. V, pág. 166, nota 35, in fine.
[4] Termo de Vereança Geral,
e Extraordinária da Câmara, feita a requerimento do povo, e tropas desta cidade e termo (Actas da Câmara Municipal de S. Paulo, vol. XXII,
págs. 469 e 472). Aqui reproduzimos o importante documento de nossa História: "Aos
vinte e três de junho de mil oitocentos e vinte e um, nesta Cidade de S. Paulo e Casas da Câmara e Paços do Concelho dela, onde foram vindos o
doutor juiz de fora presidente Nicolau de Siqueira Queirós; vereadores atuais, e o atual procurador assistindo o povo, e as tropas, pelos quais
foram convocados os ditos extraordinariamente para se proceder à formação de um Governo Provisório, jurar as Bases da Constituição decretadas pelas
Cortes de Lisboa, e observar religiosamente as Leis, que garantem a segurança individual, a propriedade, e direitos dos cidadãos; jurarem outrossim
a obediência ao Muito Alto, e Poderoso Senhor Dom João Sexto, Nosso Rei Constitucional do Reino Unido de Portugal, Brasil, e Algarves, e a Sua
Alteza Real o Príncipe Hereditário Regente do Reino do Brasil, e à Real Dinastia da Sereníssima Casa de Bragança, tudo na conformidade do que Sua
Alteza Real praticou de próximo na Corte do Rio de Janeiro, e mandou praticar em todo o Reino do Brasil.
"E neste ajuntamento, e vereação foram nomeados por unânime aclamação do povo, e tropas, que se
acham reunidos, e postados no largo destes Paços do Concelho - Para presidente o Ilmo. e Exc. Sr. João Carlos Augusto d'Oeynhausen - Para
vice-presidente o conselheiro José Bonifácio de Andrada e SIlva - Para secretários do Governo do Interior e Fazenda o coronel Martim Francisco
Ribeiro de Andrada - Para os Negócios da Guerra o coronel Lázaro José Gonçalves - Para os da Marinha o chefe de esquadra Miguel José de Oliveira
Pinto - Para deputados, e vogais da Junta pelo Eclesiástico o rmo. arcipreste Felisberto Gomes Jardim, e o rmo. tesoureiro-mor João Ferreira de
Oliveira Bueno - Pelas Armas o coronel António Leite Pereira da Gama Lobo, e o coronel Daniel Pedroso Müller - Pelo Comércio, o coronel Francisco
Ignácio de Sousa Queirós, e o brigadeiro Manuel Rodrigues Jordão - Pela Ciência, e Educação Pública o rdº. pe. me. Francisco de Paula e Oliveira, e
o professor André da Silva Gomes - Pela Agricultura o dr. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, e o tenente-coronel António Maria Quartim; dos quais
aos presentes se deu logo posse e o juramento seguinte: - Juro as Bases da Constituição decretadas pelas Cortes Gerais e Extraordinárias e
Constituintes de Lisboa. - Juro obediência a S. M. o Sr. Dom João Sexto, Rei Constitucional do
Reino Unido de Portugal, Brasil, e Algarves. - Juro outrossim, de vigiar pela exata, e pronta execução das Leis existentes; e promover todo o bem
desta província em particular e da nação em geral. Assim Deus me salve. E depois de findo este
ato de vereação, para constar mandaram lavrar este termo em que esta Câmara e todas as autoridades, povo, e tropas presentes assinaram. E eu João
Nepomuceno de Almeida, escrivão da Câmara que o escrevi, e assinei".
[5] O Homem da
Independência, pág. 83.
[6] O Homem da
Independência.
[7] Idem, págs. 38, 77 e
outras.
[8] Registro da Câmara
Municipal de S. Paulo (1820-1822), págs. 297 e 299.
[9] Eram estas: Comércio
e Artes, Esperança de Niterói e União e Tranqüilidade. Da primeira se desdobraram as duas últimas (MELLO MORAES - Obr. cit., vol.
1º, pág. 79, col. 1ª). RIO BRANCO, na nota 10 à pág. 183 da Hist. da Indep., prova que a data citada por Mello Moraes e encampada por
VARNHAGEN está errada. Segundo o calendário dos maçons brasileiros, 20 do sexto mês corresponde a 20 de agosto e não a 9 de setembro.
[10] MELLO MORAES - Obr.
cit., vol. cit., pág. 90, 2ª coluna. Os grifos e versaletes são nossos. (N.E.: nossos, isto é,
do autor Alberto Sousa).
[11] Actas das Sessões
do Govêrno Provisório de S. Paulo (publicação oficial do Arquivo do Estado, pág. 7 da 3ª edição).
[12] Idem, página 8.
[13] Idem, página 11.
[14] Docs. Interes.,
vol. XXXVI, pág. 143.
[15] Docs. Interes.,
vol. XXXVI, pág. 144.
[16] Cartas de D. Pedro
I a D. João VI, edição do Instituto Histórico do Ceará. Nesta edição, que é reproduzida fielmente, como já dissemos, dos Documentos para a
História das Côrtes Geraes Portuguesas, publicação oficial autorizada pela Câmara dos Deputados de Portugal, e haurida diretamente nos seus
preciosos arquivos, lê-se o seguinte: "Em S. Paulo houve uma concussão, para o
juramento das Bases da Constituição, e formaram uma Junta Provisória, obedecendo-me, menos no que toca a mandar dinheiro, e que querem para a Junta
as mesmas autoridades que tinha o governador".
Na edição Eugénio Egas, esta carta é vertida da tradução francesa de Monglave, e o trecho de que
se trata está redigido por esta forma: "Houve tumultos em S. Paulo por ocasião do juramento
das Bases da Constituição. Os habitantes organizaram uma Junta Provisória que depende de mim, exceto no que diz respeito a dinheiros públicos, que
se negam a fornecer para as necessidades do Rio de Janeiro. Reclamam para a Junta os mesmos poderes de que se achava investido o governador, a quem
coube a presidência" (pág. 13).
[17] Actas do Govêrno
Provisório, pág. 11.
[18] Idem, página 64.
[19] Idem, página 11.
[20] Idem, página 60. |