Monumento funerário de José Bonifácio no Panteão dos
Andradas
Foto: Decom/Prefeitura Municipal de Santos
As festas da Abolição e homenagem a José Bonifácio
Em Santos, as festividades do dia 13 de maio de 1888 diferiram
muito das anteriormente realizadas. Não só se estenderam por todo o resto daquele mês, como também se apresentaram vinculadas às homenagens que o
povo prestou à memória de José Bonifácio. A Abolição enlaçou-se com o túmulo do Patriarca, ensinando-nos que há na História episódios que se
repetem, assim como os há, que se entrelaçam como as letras de um monograma. A cidade viveu dias memoráveis, cheios de atrativos, recordações e
glorificações.
Culminaram elas nos acontecimentos do dia 26, um domingo em que o sol pulverizava de luz a
limpidez do céu azul.
O largo da Matriz e a Praça Visconde do Rio Branco, que formaram mais tarde a atual Praça da
República, apresentavam aspecto nunca jamais visto. Tudo fora cuidadosamente preparado para o cerimonial da missa campal, a primeira, segundo as
crônica da época, que se celebrava na Terra dos Andradas. No espaço entre a igreja Matriz e o prédio da Alfândega erguia-se um harmonioso pórtico,
algo semelhante ao da Catedral de Arles, na França.
Todos aqueles que o miravam, inquiriam com admiração:
- Quem seria o autor dessa maravilha?
E quando verificavam tratar-se de obra de Benedito Calixto, não poupavam elogios aos méritos
do artista.
Pareciam construídas de pedras as colunas daquele pórtico, assim como o friso e capitéis
semelhavam aos de bronze, tal o esmero da imitação. Poder-se-ia dizer o mesmo com respeito às cornijas, que coroavam tão bela obra. O pedestal
fingia mármore branco.
Aquele trabalho ainda oferecia à vista curiosos pormenores. Assim, distinguiam-se ao centro,
num belo painel, a imagem da Lei, e embaixo, as célebres datas: 28 de setembro de 1871 e 13 de maio de 1888. Ao lado da igreja, completando ao outra
fachada do pórtico, encontrava-se um grande quadro a óleo, com o busto do Patriarca. Distinguia-se sobre o pórtico a figura de um índio, com uma
bandeira na mão, onde sobressaía a seguinte divisa: Brasil livre. À direita do índio, que tinha a seus pés os instrumentos dos castigos e dos
suplícios da escravidão, notavam-se dois bustos, um do sublime José Bonifácio, e outro do poeta e advogado, que fora escravo, Luís Gama.
Justa homenagem aos primeiros mensageiros da idéia abolicionista do Brasil.
Mereceram, ainda, o valioso concurso de Benedito Calixto todas as demais coisas relativas às
solenidades daquele dia. Cumpre-nos mencionar as principais:
Amplo coreto, destinado às autoridades, alteava-se entre o pórtico e a Alfândega.
Na Praça Visconde do Rio Branco, hoje Praça da República, e na Rua 25 de Março, hoje XV de
Novembro, as janelas das casas guarnecidas de bandeiras de todas as cores, concorriam para aumentar o regozijo popular.
Viam-se nos passeios, ou calçadas, de distância em distância, pequenas colunas de madeira
ostentando bonitos escudos. Trazia cada um deles o nome de um abolicionista.
Neste, por exemplo, estava o nome de Silva Jardim; naquele, o de Quintino de Lacerda;
naquele outro, o de Santos Garrafão; além, o do major Xavier Pinheiro; mais além, o de Júlio Conceição, e assim por diante, até fecharem o rol os
nomes de Antônio Bento, Joaquim Nabuco e José do Patrocínio.
Ao lado do templo, armado a capricho, distinguia-se o púlpito. Enfim, um altar muito bem
paramentado erguia-se defronte do pórtico.
O povo ali começava a chegar desde as 11 horas, tendo início ao meio-dia a missa campal. Na
hora programada, o celebrante assomava ao altar. Tratava-se do cônego Luís Alves da Silva, notável sacerdote santista.
Acompanhavam-no mais dois distintos sacerdotes, que ajudaram a missa. Durante a cerimônia, a
banda musical dirigida pelo maestro Luís Arlindo da Trindade executou diversas peças dos mais célebres compositores.
Terminado o sacrifício incruento, dirigia-se o cônego Luís Alves para o púlpito.
Aglomerava-se apertadamente o povo, no Largo da Matriz, para ouvir o notável orador sagrado.
A sua prédica, delineada segundo os preceitos da retórica de Bossuet, foi brilhantíssima,
arrebatadora. Os principais abolicionistas mereceram longas e encomiásticas alusões da sua imaginosa eloqüência. A excelsa figura de José Bonifácio
foi guindada às maiores alturas, não faltando especiais referências às suas cinzas - mergulhadas, até então, no esquecimento de humilde sepultura.
O nome do pregador encheu a Cidade.
Não havia quem não proclamasse os méritos do orador. Muita gente sabia de cor alguns de seus
conceitos. Mencionaremos apenas um dos que andam correntes na tradição. Referindo-se precisamente ao túmulo de José Bonifácio, assim opinava, do
alto da sua tribuna, o cônego Luís: "Não podemos conservar o gigante no seu leito de Procusto. Urge, pois, conseguirmos para os despojos de José
Bonifácio nova morada, onde uma lâmpada votiva e algumas flores possam testemunhar, mais facilmente, a gratidão e o amor de todos os brasileiros".
Cerca de cinco mil pessoas assistiram às solenidades daquele movimentado dia 26.
Após o sermão, as autoridades e boa parte do povo dirigiram-se, em cortejo cívico, para a
Igreja do Carmo, onde se encontrava o túmulo do Patriarca. Ali, a jovem santista d. Julieta de Morais proferiu um vibrante discurso. Dele é esta
passagem: "Aqui, como eu, creio que todos estremecem, assistindo a uma nova ressurreição, e todos os corações palpitam de amor - amor puríssimo a
José Bonifácio, o santo Patriarca fundador de nossa Pátria. E então perdoem-me se vacilo entre oferecer a humilde grinalda que traz saudades, ou
ajoelhar-me sobre este túmulo pequeno, mas muito pequeno, para conter um gigante. Ele dorme, ou antes, vive e viverá sempre enquanto houver uma
estrela no céu da nossa Pátria, enquanto viver um brasileiro que tenha alma, memória, coração e lágrimas para orvalhar esta pedra..."
Em seguida, d. Elodia Freire, representando o clube Amazonas, produziu, também, um breve e
elegante discurso.
Usaram ainda da palavra as alunas do professor Aprígio Carlos de Macedo, de nome Ana
Constança Ferreira, Henote Rinando e Amélia Machado. Terminando, discursaram com soberba facúndia os drs. Rubim César e Silva Jardim.
Todos os oradores se manifestaram pela trasladação daquelas cinzas para um mausoléu.
Onde entretanto seria ele colocado?
O contrato do Governo da Província com o escultor Bernardelli rezava, logo na primeira
cláusula, que o monumento ao velho Patriarca seria colocado ao centro da Igreja do Carmo.
Surgiram, porém, alguns obstáculos. Foi, por isso, permitido ao escultor construí-lo no
pátio central da mesma igreja.
Houve em São Paulo um jornal intitulado Diário Mercantil, aparecido em 1844 e
dirigido por Gaspar da Silva e Leo de Afonseca. Mais tarde, entrou, também, para a redação, o poeta Eduardo Salamont. Foi na imprensa paulistana um
dos órgãos de publicidade mais bem feitos do seu tempo. Os dois últimos redatores residiram em Santos.
Eis o que nos diz o Diário Mercantil, de 27 de outubro de 1889, a respeito do lugar
onde seria colocado o monumento a José Bonifácio, nesta cidade:
"Parece estar finalmente terminada a inglória luta para se poder dar começo, em Santos, ao
assentamento do mausoléu de José Bonifácio, belíssimo trabalho do grande escultor brasileiro Rodolfo Bernardelli.
Após uma longa e fastidiosa peregrinação de Bernardelli: do sr. Bispo Diocesano para o
visitador da Ordem do Carmo, na Corte; deste para o Papa. Em Roma o nosso querido artista estava tão adiantado como antes de começar a sua
via-sacra!
Queriam encostar à parede um monumento artístico de quatro faces!
Melhor inspirado, porém, resolveu Bernardelli requerer ao sr. conselheiro presidente da
Província a suspensão do artigo 1º do contrato, que o obrigava a colocar o mausoléu no centro da Igreja do Carmo, e a solicitar licença para ser ele
ereto no pátio central da mesma igreja.
Honra ao sr. general Couto Magalhães, que pôs termo as atribuições
(N.E.: atribulações?) do grande artista, deferindo prontamente o seu requerimento.
Até que enfim!"
Até que enfim? Não, absolutamente não. O caso continuava complicado. |