Reprodução das páginas 4 e 5 da revista
O hotel dos sonhos
Luiz Alca de
Sant'Anna
Tal
e qual o Negresco, de Nice ou o Chateau Frontenac, de Quebec, Santos já teve o seu hotel dos sonhos, sim. Não falo de estabelecimentos hoteleiros de
luxo máximo como o Ritz, de Paris, ou o Dorchester, de Londres, só para citar apenas dois. Esses são os tempos do conforto, das mordomias incríveis,
reduto imperativo de milionários, empresários ou autoridades que usam o poder para usufruir daquilo que não poderiam no exercício comum de suas
funções. Citei os dois primeiros porque eles simbolizam as próprias cidades onde estão situados, quer nos cartões-postais, quer no imaginário dos
turistas ou dos encantados com a grandeza de um mundo inacessível para a maioria dos bolsos.
Tivemos o Parque Balneário,
registro maior dessa nossa Santos em meados do século 20 e que tornou a Cidade não apenas um sítio litorâneo de descanso e lazer, mas uma estação de
verão, sofisticada, elegantíssima, ponto de encontro do requinte, das extravagâncias de bom gosto daqueles ricos que, por mais que tivessem feito
suas riquezas pós-imigração, cuidavam para não parecer deslumbrados ou inconvenientes pelo peso de suas jóias ou limusines. Eram atentos ao valor e
não ao preço, o que faz toda a diferença entre um novo rico e um ascendente interessado.
O hotel
Foto de Rafael Herrera, publicada com o texto
Comandado pela família
Fraccarolli, especialmente seu João e todo o clã, incluindo até um irmão do poeta Martins Fontes, Velsírio, casado com Renata, uma das herdeiras,
erguia-se, deslumbrante, na confluência da Avenida da Praia com a Ana Costa, sendo que os fundos pegavam toda a Carlos Affonseca e a Fernão Dias,
onde um último bloco da imensa construção ainda resiste, hoje, propriedade particular.
De seus salões maravilhosos,
todos os que foram adolescentes ou jovens nas décadas de 50 e 60 ainda recordam. Principalmente do Salão Dourado, que antecedia o imenso salão de
jantar, com suas estátuas nos nichos, os frisos de ouro reluzindo, os lustres fantásticos de cristal que pendiam do enorme pé-direito. Lá aconteceu
meu baile de formatura em Direito em 1970.
Ainda menino de 12 anos, e
naquela época aos 12 éramos mesmo meninos, fui convidado junto com meus pais para jantar no Parque, por um casal amigo francês que ali se hospedava.
Na minha visão de garoto que ainda pouco freqüentava esse tipo de lugar e quase não saía à noite, porque os pais ainda tinham o bom senso de não
levar crianças a eventos noturnos ou jantares, fiquei extático ao me deparar com todo o cerimonial: do impecável das toalhas de linho branco e dos
guardanapos à louça e ao serviço, magnífico.
No meu universo gastronômico
diminuto de quem fazia as refeições em casa ou em família, no máximo almoçava fora num domingo indo à Cantina do Guilherme, deixei o queixo cair com
a lista de pratos impressa num cartão dourado: o menu do dia dado por um mâitre de luvas brancas com toda a reverência, pedindo que
escolhesse e chamando-me de "meu jovem". Achei aquilo de uma delicadeza inigualável e até hoje, no quadro das lembranças que habitam a bênção da
memória, ainda lembro da fisionomia do sujeito. Dá para acreditar?
Os que se adiantavam a mim
em uma década, pelo menos minhas primas e primos, por exemplo, eram habitués do grill de verão, um dos cenários mais lindos com suas
mesas de ferro branco, palco em forma de concha e a pista de mármore iluminada, por entre os chorões e chapéus-de-sol, estrategicamente
distribuídos. Isso sem falar na boate, que dizem (eu não peguei) era toda em rosa e dourado e depois seguia em tons pastéis, mas de um aconchego
muito chique e onde aconteciam festas memoráveis e comentadas.
Eram os Bailes de Glamour,
Girl e Miss Sociedade, organizados por Thereza Bueno Wolf, então colunista do jornal A Tribuna, as noites beneficentes em prol de entidades
como a Casa de Estar, comandada por dona Zeca de Mello e Faro, os chás do Clube da Lady, fundado e mantido por dona Zezé Lara Infante Vieira, e
tantas outras promoções que reuniam o que era chamado, sem dúvida, de forma elitista, mas também de uma pureza que não existe mais, de "a nata". Ou
seja, os paulistas de quatrocentos anos, os empresários e profissionais liberais de sucesso, os descendentes dos barões do café, as forças mais
representativas.
Os filhos, principalmente as
jovens mulheres, ainda solteiros, acompanhavam os pais. O que se denominava jeunesse dorée. Já pensaram falar nisso hoje? Que "mico" a galera
iria pagar?
Lustres e ambiente do
hotel
Fotos de Rafael Herrera, publicadas com o texto
Os boêmios tinham como ponto
de encontro o bar, no mais puro estilo inglês, com suas cadeiras de tiras de couro, as mesas em tons marrons, o piso idem, e meia-luz, o que o
deixava sempre igual, independente de ser manhã, tarde ou noite. Entrei lá poucas vezes, pela proibição da idade, e quando o fiz, achei-me
deliciosamente transgressor!
E como fofocas e
maledicências não são privilégio dos modernos, muito papo machista rolou ali e conversas à boca pequena já revelavam qual senhora casada havia dado
bola para um solteiro e de quem aquelas lindas mulheres desacompanhadas, que surgiam de repente como quem não quer nada, eram amantes. Geralmente,
daqueles senhores milionários, os grandes deste mundo e de Santos, é claro.
Pequenos escândalos,
deliciosos "potins", o termo usado, aconteciam por ali. Certa feita, minha mãe entrou com uma amiga para tomar um refresco ao fim da tarde, o que
não era hábito entre senhoras, e deram de cara com o marido da dita cuja, beijando o pescoço de uma loura, de tomara-que-caia vermelho. A senhora
não teve dúvidas: fingiu que não viu, puxou o braço de minha mãe, a essa altura estupefata e constrangida, e saiu do bar. Lá fora, fez um comentário
comum entre as mães de família da época: "quem procura acha, eu jamais deveria ter entrado, nunca mais vamos tocar nesse assunto". Era a suposta
classe acima de qualquer sentimento ou impulso!
Mas quem pega Depois da
Cena e lê esta matéria pode estar achando esquisito, descabido: o que tem a ver um hotel de luxo com cultura, intelectualidade, justamente a
proposta da revista? Deixamos para o final mais esse acréscimo do Parque Balneário Hotel.
Sem falar nos monumentais
bailes de Carnaval que atraíam multidões de todo o País e eram considerados "os mais adultos e avançados" e que ficaram nos anais do histórico
santista: grandes companhias de revista, como Walter Pinto e outras, se apresentaram em seus magníficos salões, assim como cantores e cantoras na
boate em fechados shows. Uma das salas da frente, subindo a escadaria do lado da Ana Costa, à direita, era reservada para reuniões da
inteligência local e muitos movimentos cabeça se formaram e se desenvolveram naquele espaço. Idéias foram lançadas e afirmadas. Não esquecendo dos
clubes de servir como Rotary e 21 Irmãos, que realizavam jantares festivos.
Detalhe da página 6 da revista
No longo corredor
envidraçado que dava para o belíssimo jardim e que ligava a parte social à recepção, cheio de sofás e charmosos ambientes de conversas, políticos
trocavam impressões, faziam conchavos e, quem sabe, resolviam os destinos do País. O presidente Washington Luís adorava se hospedar no Parque. Já
idoso, sempre de branco, cavanhaque, chapéu de palha e bengala, caminhava tranqüilo por entre as alas de canteiros de azaléias e hortênsias, naquela
riqueza paisagística que havia.
Ainda que ostentar, ao
contrário de agora, fosse uma afronta à boa educação, as mulheres vestiam-se a rigor para jantar, enquanto os homens portavam terno escuro e gravata
obrigatória. Uma senhora de sobrenome italiano famoso entre os milionários paulistanos que freqüentavam a orla, na época, ficou conhecida por andar
rodeada por seguranças, já que os botões de seus vestidos eram de pedras preciosas, quando não, de brilhantes.
No salão de jogos, o
carteado corria solto. Depois da proibição do jogo pelo presidente Dutra, o clima se manteve nos altos lances das apostas, nos cacifes milionários
que tilintavam através das fichas em reluzente madrepérola. Fortunas se fizeram e outras se perderam. Enquanto os jogadores se concentravam nas
cartas, os acompanhantes conversavam sentados nos sofás de couro, aproveitando da mordomia oferecida.
O Parque Balneário tornou
Santos memorável, um símbolo de glamour, no verdadeiro sentido da palavra e não como se quer qualificar hoje, bastando um brilho ou um
destaque. Glamour é um estado de espírito, vem de dentro, a perfeita combinação do requinte com o esplendor, da ousadia com uma beleza que
nem de longe é razoável ou explicada pelo prosaico.
Eis porque é fundamental
exaltar aquele hotel dos sonhos, que se foi, lamentavelmente, pelas razões que os novos valores mercantis e sociais determinaram. Sem culpas ou
acusações, por favor. O Parque cumpriu o seu destino nos que o freqüentaram, nos que passaram rapidamente por lá e até nos que não o viram mais de
pé, mas percebem um olhar de brilho na avó que dançou em seus salões ou mesmo no professor, que, ao relatar a história desta cidade, com certeza, o
menciona como uma de suas maiores glórias.
Detalhe da página 8 da revista
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