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Ex-preso do navio
Argeu, de 83 anos, é uma das poucas vozes que restam
"Não me arrependo daquilo que passou, mas também não gosto de mexer em ferida cicatrizada, pois
isso incomoda e causa uma dor que parece estar presa em minha alma".
Foto: Matheus Tagé/DL, publicada com a
matéria
DEMOCRACIA À DERIVA
Navio-prisão: uma cicatriz na história do sindicalismo
Argeu Anacleto da Silva, 83 anos de idade, era sindicalista portuário em 1964 e, hoje, é uma
das poucas vozes que sobraram dos calabouços do navio-prisão Raul Soares. Ele diz ao Diário do Litoral que mexer na ferida cicatrizada
ainda causa dor em sua alma
Repórter: Francisco Aloise
Os antigos companheiros das Docas se perderam pelo tempo e
quase todos já morreram. Os poucos que estão vivos se encontram muito doentes, com sequelas do cárcere, e não podem mais se locomover e muito menos
falar. As vozes que se opunham ao sistema, em 1964, e que ficaram trancafiadas no navio-prisão Raul Soares, foram se calando aos poucos pelo
decurso do tempo. Mas o Diário do Litoral conseguiu localizar uma dessas poucas vozes. E ela fala de dor, tortura e sofrimento.
"A verdade... de qual verdade o Governo Federal quer saber? Eu busco essa verdade todos os dias,
quer seja nos meus sonhos, ou nos meus devaneios. Não me arrependo daquilo que passou, mas também não gosto de mexer em ferida cicatrizada, pois
isso incomoda e causa uma dor que parece estar presa em minha alma. Temos é que nos prevenir para que fatos lamentáveis como esse não mais se
repitam".
Foi desta forma que o sindicalista portuário no período do início da ditadura militar e preso no
navio-prisão Raul Soares, Argeu Anacleto da Silva, de 83 anos, uma das poucas vozes que restam daquele triste período para o sindicalismo de
Santos, iniciou sua entrevista ao Diário do Litoral.
E avisou: "Vou estar na Câmara de Santos, no dia 8 de novembro, primeiro se Deus permitir, para
dar um abraço no dr. Thomas Maack, pois ele me ajudou bastante, me socorreu e me amparou naquele tempo terrível dentro do navio", disse Argeu, que
aos 83 anos relembra com tristeza do episódio de sua prisão.
E fala do tratamento solidário que recebia do médico Thomas Maack. "Ele era uma pessoa especial
para todos nós. Era um alemão, tinha os cabelos bem avermelhados, e falava fluentemente o português, pois nos dizia que veio, com seus pais, para o
Brasil, ainda bebê de colo", diz o ex-dirigente sindical portuário.
"Usam a democracia como escudo, mas ainda hoje prevalece o domínio imperialista. Naquele período
(da ditadura militar) a democracia virou demoniocracia, mas hoje não está muito diferente, mas não quero e nem devo falar sobre isso. Vocês
querem saber o que houve naquela época; pois eu digo que o que marcou mesmo naquela época foi uma Cidade que se opôs ao regime e apresentou seu
protesto com dignidade, honestidade, e acabou sofrendo as consequências de uma grande injustiça", explica.
Quando fala de sua prisão, seus olhos azuis demonstram sofrimento de um tempo em que o País não
podia respirar democracia, pois volta à sua mente a imagem de um navio-prisão que ficou no Porto de Santos, local de seu ganha-pão e que deixou essa
mesma democracia à deriva por longos anos.
Argeu Anacleto da Silva tinha 35 anos de idade quando foi preso, ficando 75 dias no navio-prisão
Foto: Matheus Tagé/DL, publicada com a
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Sua prisão - Ele diz que foi preso por agentes do antigo Departamento de Ordem Pública e
Social (Dops) e ficou 75 dias aprisionado no navio Raul Soares. Primeiro ficou preso no próprio Dops, que se localizava no prédio do
Palácio da Polícia, na Avenida São Francisco, no Centro de Santos.
Com a chegada do navio-prisão ao Porto de Santos, ele foi enviado para lá. "Aquele navio enorme,
de casco negro, tinha um aspecto desafiador para a sociedade santista. Só quem esteve preso nele sabe da dor e sofrimento de permanecer
incomunicável sob torturas psicológicas, vendo companheiros serem castigados sem nada terem feito. Recebi auxílio dos meus companheiros de trabalho,
porque até o nosso direito de auxílio-reclusão foi suspenso, sendo pago só depois de sete meses", relembra com tristeza o ex-sindicalista.
"A intenção da ditadura militar não era só nos matar de fome, mas também aos nossos filhos, em
casa, que estavam ficando sem o leite, só que os militares não contavam com o amparo e solidariedade humana dos companheiros de cais. E foi essa
solidariedade que nos deu forças para suportar todas as adversidades. Mas, eu não posso me queixar, porque, graças a Deus, ainda estou aqui
vivendo", relata Argeu.
E prossegue: "O que passou se transformou numa ferida já cicatrizada pelo passar do tempo. Faz
parte da história. Nós também fazemos parte dessa história, história triste é verdade. Só não gosto de mexer nesse ferimento, pois mesmo
cicatrizado, ele fere a minha alma, como feriu a alma do sindicalismo de Santos, que nunca mais foi o mesmo. Naquele tempo nós tínhamos união,
solidariedade e companheirismo, e sabíamos lutar por nossos direitos".
Dificuldade - Argeu Anacleto diz que os grandes figurões da sociedade possuem faculdade,
"mas nós, os trabalhadores, possuímos dificuldade. Eles possuem cultura e são os destaques, enquanto nós, os trabalhadores, não temos nada, somos os
etecéteras. Por isso, o trabalhador tem que se unir e se diferenciar pela solidariedade e pelo amor no coração, pois isso é o que diferencia
em qualidade humana um etecétera do figurão, compreendeu?"
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"Nós também fazemos parte dessa história, história triste é verdade. Só não gosto de mexer
nesse ferimento, pois mesmo cicatrizado, ele fere a minha alma, como feriu a alma do sindicalismo de Santos" |
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Foto: Matheus Tagé/DL, publicada com a matéria
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