Correição
Uma manhã, enquanto fazia a contagem de presos, um sargento da Polícia Marítima
informava que o navio iria sofrer uma correição da Justiça Militar, requerida pelo criminalista João Bernardes da Silva. Já na véspera, havíamos
percebido que algo de anormal estava para ocorrer: haviam distribuído lençóis por todos os xadrezes. E, por sinal, lençóis novos, ainda engomados.
Em minha cela, onde jamais deixaram um pedaço de pano para me cobrir durante a noite, os guardas colocaram dois!
Logo depois da revista, todos foram retirados de suas celas e colocados no convés,
enquanto dois homens da Secretaria da Saúde dedetizavam os colchões. Fiscalizando o trabalho que estava sendo realizado, o tenente Castelo Branco os
acompanhava de cubículo em cubículo.
Cerca das 10 horas, o promotor Durval Moura Araújo, da 2ª Auditoria de Guerra,
desembarcava de uma lancha na plataforma improvisada ao lado do Raul Soares. Subiu a bordo acompanhado do oficial de diligências Alfredo dos
Santos, do capitão dos portos, do advogado João Bernardes da Silva, de um cinegrafista de televisão, de um fotógrafo dos "Diários Associados" e de
um outro da sucursal de A Gazeta.
O representante deste último jornal era o mesmo que anteriormente estivera no navio
para fazer a reportagem dizendo que os presos recebiam tratamento humano e que tomou o lado dos militares quando me queixei da falta de uma colher
ou de um garfo para fazer as refeições.
José Peres - esse o fotógrafo -, logo que pisou a bordo se pôs a elogiar o tratamento
aos homens ali recolhidos. O capitão Astolpho mandou que os presos se reunissem e informou que o promotor ali estava para fazer uma correição.
O representante do Ministério Público, logo a seguir, passou a percorrer os xadrezes
coletivos do porão, onde recolhiam os homens de "menor periculosidade". Todos os presos foram retirados do convés e recolhidos às suas celas. Sempre
procurando bajular os oficiais da marinha, o fotógrafo José Peres permaneceu no convés, falando alto para ser ouvido por todos os militares que se
encontravam nas proximidades:
"Até eu gostaria de estar preso aqui. O tratamento é muito bom, estou vendo. Se me
deixassem sair uma vez por semana para ver minha mulher eu ficaria aqui de bom grado".
De um dos cubículos próximos, um detido, revoltado ante tamanha sabujice, gritou a
todo pulmão:
"Não precisa sair uma vez por semana. Pode deixar que eu cuido de sua mulher".
Nesse dia, o almoço servido foi especial. Parecia mesmo um banquete. Arroz, feijão,
bife, batata frita e doce de sobremesa!
Entrei na fila, mas não apanhei a bandeja. O promotor perguntou por que eu não comia
e expliquei que me recusava a comer com a mão. O capitão Astolpho Migueis retrucou que no navio havia falta de colheres mas que eu devia ter falado
com ele, o assunto teria sido resolvido. Sem saber bem o que responder, apenas balbuciei:
"É... eu devia ter falado com o senhor. Só que não sei como poderia fazê-lo, uma vez
que fico fechado dia e noite e esta é a primeira vez que o senhor visita um xadrez no navio..."
O promotor ouviu e anotou as queixas feitas por Orfeu e por outros presos,
experimentou a comida servida e perguntou se os detidos tinham alguma reivindicação a fazer. Muitos pediram que ele interferisse junto ao comandante
do navio para que os homens pudessem fazer ginástica durante o arejamento. O promotor ia se dirigir ao capitão Migueis, mas este logo se adiantou
com a resposta:
"Proibi que os presos fizessem ginástica por ter recebido informação de que estava
sendo preparado um pelotão de fuga..."
O resto do dia correu normalmente. Pela madrugada, eu dormia a sono solto - o que não
conseguira até então por não ter qualquer coberta - quando acordei com alarido que faziam em minha porta. Ouvi a chave girar na fechadura e logo o
foco de uma lanterna portátil foi projetado para dentro da cela. Sem mais essa nem aquela, alguém atirou sobre meu catre um pedaço de ferro de mais
de 10 quilos. Felizmente, não me atingiu. Um sargento do corpo de fuzileiros navais, completamente embriagado, com lápis e papel nas mãos,
perguntava o que eu faia ali. Respondi que estava preso, mas se ele quisesse, poderia ir embora.
Cambaleando, pediu meu nome e disse que iria examinar o assunto. Um dos guardas da
Polícia Marítima que o acompanhavam, percebendo seu estado, perguntou se ele percorria o navio com autorização do oficial de dia. O sargento
fuzileiro se alterou, gritando ao guarda que não precisava autorização, pois no navio não reconhecia ninguém como seu superior.
O policial da Marítima - um jovem apelidado de Canguru - fechou a porta do xadrez e
passou a discutir com o sargento, dizendo que iria levar o fato ao conhecimento do comandante da guarda. Efetivamente, assim agiu, mas o tenente
Ariovaldo, mais uma vez, deu mostras de seu caráter fraco, silenciando por medo do que o sargento-fuzileiro pudesse fazer contra ele.
Pela manhã, pedi ao guarda que chamasse o oficial de dia, relatei os fatos, dizendo
que poderia até mesmo ter sido morto caso o pedaço de ferro me batesse na cabeça. O tenente Castelo Branco tomou imediatas providências para
reconhecimento do militar ébrio, constatando, desde logo, que ele fizera a mesma coisa em quase todos os xadrezes.
Dois dias após a correição, um grupo de oficiais da Marinha - todos armados de
pistola - estiveram em minha cela. Um deles determinou que eu o acompanhasse. Obedeci e fui levado por longo corredor, sendo colocado em outro
cubículo, sem qualquer explicação. Meia hora depois, levaram-me de volta. Os oficiais, em ligeira busca, haviam encontrado os papéis em que eu
fizera uma espécie de diário de bordo e em que escrevera alguma coisa relacionada a uma viagem que fizera à África.
Liam com atenção - mas com dificuldade, pois eu escrevera deitado e sem muita ordem -
e mandaram chamar o comandante do navio para comunicar que haviam apreendido papéis que poderiam servir para abertura de outro inquérito contra
minha pessoa, desta vez por ofensas às Forças Armadas.
Retruquei que não fizera ofensa a ninguém, limitando-me a relatar o que ocorria a
bordo. O tenente Coutinho, que se mostrava feliz em servir de carcereiro, exultava. Disse mesmo que levaria tudo para ler para poder tomar as
providências legais. O capitão do navio não se mostrou muito impressionado. Soltou um risinho pálido quando um dos tenentes leu em voz alta a
referência que eu fazia à sua pessoa, chamando-o de "bravo comandante do navio encalhado". Depois, como que querendo mudar de assunto, o capitão
Migueis disse pausadamente:
"Pois é... Até hoje nós o conservamos preso legalmente. Agora, leio na Folha de
São Paulo que o Superior Tribunal Militar concedeu um habeas-corpus a seu favor, mas não vamos soltá-lo. Só o faremos depois de
recebermos instruções do capitão da Aeronáutica que é presidente do inquérito a que você responde".
Procurei mostrar que isso era um absurdo. Que eu ficara preso incomunicável durante
43 dias, não tendo sido interrogado uma única vez. O capitão Astolpho Migueis, com mais um de seus sorrisos enigmáticos, jogou um exemplar da
Folha sobre o colchão da minha cela e se afastou, dizendo:
"Vá se divertindo com a leitura da concessão de seu habeas-corpus. Vá se
preparando, também, para responder a outro IPM que vamos fazer baseados nesses escritos apreendidos em seu xadrez".
Nessa noite, fui visitado pelo tenente da Polícia Marítima que se encontrava de
serviço. Revoltado, disse a ele que reforçasse a guarda dali para a frente, pois se não me libertassem nas próximas horas, como determinava a
Justiça, eu iria fugir, mesmo que fosse para ser metralhado e morto quando já me encontrasse nas águas do mar.
Às 23 horas, fui retirado da cela e levado para a sala dos oficiais. Ali estava o
capitão da Marinha José Luís, da Capitania dos Portos, que fora a bordo cuidar de minha liberdade. Logo que ali cheguei, um dos oficiais me entregou
uma mala cheia de roupas, dizendo:
"Esta mala chegou para você há muitos dias. Não foi entregue por não termos recebido
ordens nesse sentido. Além disso, dentro dela encontramos uma bala 38, dundun, e resolvemos investigar".
Levei um choque.
Será que iriam inventar outra coisa para não me libertarem? Expliquei que aquela mala
eu comprara na África e que a bala dundun era minha mesmo. Eu trouxera como recordação da guerra na Argélia. Minha empregada, no afã de mandar
roupas para o navio, entregara a meu irmão a mala sem dar pela bala no fundo. Os oficiais, felizmente, acabaram por aceitar a explicação e disseram
que não iriam instaurar um novo IPM.
Fui levado, numa lancha do Corpo de Bombeiros, até o cais. Dali, embarquei num
automóvel e fui conduzido à Capitania dos Portos, onde me aguardavam muitos amigos e o advogado João Bernardes da Silva. Depois das formalidades
legais, fui posto em liberdade.
Numa das "peruas" dos "Diários Associados"
que transportaram companheiros do jornal a Santos, viajei para São Paulo. Entrei no jornal já ao clarear do dia, sendo abraçado por todos que haviam
trabalhado na noite anterior e que me aguardavam com ansiedade. Entre verdadeira chuva de papel picado e abraços dos amigos, caminhei até minha mesa
de trabalho, reassumindo de pronto meu posto, com uma pergunta a bailar em meu cérebro; quanto tempo me deixariam em paz? Para justificar a
"revolução", os militares teriam que fazer novas prisões, teriam que manter as cadeias cheias. Seria eu preso novamente? Seria condenado - mesmo sem
ter cometido qualquer crime - num dos inquéritos em que fui indiciado?
***
A primeira sexta-feira após ter sido posto em
liberdade, me apresentei ao juiz auditor da 2ª Vara da II Região Militar. Aleguei ao dor Tinoco Barreto "motivos superiores" por não ter comparecido
durante várias semanas. O magistrado deu um sorriso e disse compreender perfeitamente tais "motivos superiores".
Logo depois de minha saída do navio Raul Soares, o presidente da França, general
Charles De Gaulle, visitava o Brasil. Por falar bem o francês, fui encarregado de cuidar da cobertura jornalística da visita que o estadista faria a
São Paulo. Em ofício, a direção do jornal solicitou ao comando da 4ª Zona Aérea credenciais que me permitissem trabalhar nos próprios da
Aeronáutica.
Confesso que não acreditei que me dessem permissão para fazer a cobertura
jornalística. Pois eu não era considerado subversivo? Não poderia aproveitar a oportunidade para cometer um atentado contra chefe de Estado
estrangeiro, criando, assim, um caso internacional para o Brasil?
Recebi - contudo - credencial da 4ª Zona Aérea. E credencial com fotografia e tudo,
assinada pelo tenente-coronel chefe de Relações Públicas da FAB. De posse do documento, fiquei a perguntar a mim mesmo: afinal, que espécie de
subversivo sou eu para os oficiais da Força Aérea Brasileira?
Não fiz, contudo, a cobertura da visita do presidente Charles De Gaulle ao Brasil.
Sabedor que a Aeronáutica havia me fornecido credenciais, o governador Adhemar de Barros se entendeu com a direção dos "Diários Associados",
solicitando minha substituição por ser eu considerado persona non grata pelo Governo de São Paulo.
Na Auditoria de Guerra, criaram um livro no qual sou obrigado a apor minha assinatura
todas as sextas-feiras até ser julgado. O juiz Tinoco Barreto tem permitido, na medida do possível, que eu exerça minha profissão de jornalista.
Quando do assassinato, em Goiás, do ex-presidente da Síria, Adib Shishekly, o magistrado me forneceu salvo-conduto para sair de São Paulo a fim de
fazer cobertura jornalística do caso. Mais tarde, concedeu-me autorização, por escrito, para entrevistar o presidente do Brasil, marechal
Humberto Castelo Branco.
Meus amigos esbugalharam os olhos ao verem tal autorização. Os elementos da
"revolução" se desesperaram quando viram estampada, na primeira página do Diário da Noite, uma fotografia minha ao lado do
marechal-presidente. O Estado de São Paulo chegou mesmo a publicar um comentário a respeito: como eu poderia chegar ao lado do presidente:
Pois então não viam que eu poderia matá-lo?... |