O padre e os presos
À tarde, quando eu estava entregue aos meus pensamentos, já conformado em não mais
sair para tomar ar fresco, a porta de meu xadrez foi aberta. Um capitão da Aeronáutica, que reconheci prontamente como sendo capelão pela cruz que
trazia bordada na farda, entrou na cela acompanhado por um padre moço, que envergava surrada batina. O capelão, velho e gordo, de rosto corado,
parecia um Papai Noel. Sorridente, disse ser do Serviço de Assistência Social da Força Aérea Brasileira em São Paulo. Estava no navio visitando os
presos da Aeronáutica.
Enquanto ia falando, eu permanecia em pé, examinando a sua figura bonachona. Lembrei
que, dias antes, o engenheiro Augusto da Mata me havia dito que ele estivera em sua cela e lhe arrumara uma coberta. Pensei em pedir o mesmo, mas
meu orgulho foi mais forte. O capitão perguntou meu nome e respondi. Perguntou, a seguir, se eu queria mandar algum recado para minha família.
Respondi que não, que não tinha ninguém a quem mandar recados. O capelão virou-se para o padre ajudante e falou como que a fazer uma pergunta:
"Mas foi uma pessoa de sua família flar conosco. Alguém de sua família ou algum seu
amigo nos procurou..."
"Sim - respondi -, é possível que ainda me tenha restado um amigo..."
O capelão me examinou dos pés à cabeça. Tirou um lenço do bolso da túnica, tirou o
quepe e enxugou o suor. Estranhei, pois fazia bastante frio. De repente, apontando para uma medalhinha que sempre trago numa correntinha ao pescoço,
perguntou:
"Você é comunista?"
"Não. Sou jornalista".
O capelão não gostou da resposta. Olhou interrogativamente para o padre que estava ao
seu lado e voltou a me encarar:
"Quero comunicar que do próximo domingo em diante, os presos poderão assistir missa
no convés do navio. Virei todos os domingos para celebrar o santo ofício."
Encarei o padre e sorri. Ele perguntou-me, intrigado, se eu era católico. Respondi
que sim e expliquei:
"Missa para quem, padre? Marinheiros e fuzileiros não irão assistir para não
desgostar o comandante do navio, um protestante fanático. Quanto aos presos, só irão à missa se não tiverem metralhadoras em suas costas. Depois, o
senhor não acha que é um sacrilégio um padre rezar missa para fiéis que terão o tempo todo metralhadoras apontadas para seus corpos? Não, padre. Se
o senhor não conseguir evitar as metralhadoras, não iremos colaborar para a consumação de tal sacrilégio."
O padre olhou-me em silêncio alguns minutos e disse-me um até logo seco, prometendo
retornar no domingo para rezar missa. Jamais voltou ao navio-presídio. Mas conseguiu, para o José Augusto da Mata e para o Orfeu Sales Santos, dois
cobertores, e creio que também me conseguiria um, caso eu tivesse solicitado.
Ariovaldo, homem boçal e sem caráter, tudo fazia para desesperar mais ainda os presos
políticos.
Por vezes, cheguei a pensar ter ele um caso pessoal comigo.
Uma tarde, cercado por uns dez homens da Polícia Marítima, todos armados de
metralhadoras, permaneceu ao lado dos caldeirões de comida. Batendo significativamente um enorme cassetete de madeira na mão, mandou que eu
apanhasse a bandeja. Parei, olhei para ele e respondi que não queria comer e que ninguém poderia me obrigar a fazer as refeições com as mãos.
"É ordem que eu tenho. É uma questão de disciplina. Você pode não querer comer, mas
tem que apanhar a bandeja e receber a comida, mesmo que seja para jogar na primeira lata de lixo".
Pensei em me manter firme, em não apanhar a bandeja. isso, no entanto, de nada
adiantaria. Apanhei a bandeja onde os marinheiros de roupa imunda jogaram arroz, feijão e um pedaço de carne sebosa. Caminhei meia dúzia de passos,
parei junto a uma lata de lixo e despejei tudo. Coloquei a bandeja no lugar das já usadas pelos meus companheiros e continuei caminhando, escoltado,
para minha cela.
Logo depois, meu xadrez foi aberto e Ariovaldo mandou que eu preparasse minhas
coisas, pois iria mudar. Apanhei o pouco que ali tinha e acompanhei-o pelo corredor, sem proferir uma única palavra. Fui colocado num dos dois
únicos xadrezes existentes no tombadilho. Dois policiais ficavam montando guarda em minha porta dia e noite. No alto, no convés da proa, um
fuzileiro armado de metralhadora permanecia dia e noite de vistas voltadas para meu cubículo.
Segundo comentário dos guardas, os responsáveis pelo navio temiam que eu tentassem
uma fuga, motivo pelo qual haviam me mudado de cela e redobrado a vigilância. Sem saberem, contudo, me mudaram para melhor. Para um xadrez seco,
onde tudo era silêncio. Até então, eu permanecera numa cafua sobre o gerador do navio, que funcionava dia e noite e me aturdia terrivelmente.
Na mudança, carreguei alguns livros que me haviam sido entregues pelo tenente Djalma
Brandão. Ariovaldo fez a apreensão de todos, dizendo que preso não podia ler nada.
Na manhã seguinte, quando me encontrava na fila de café, o tenente Brandão, que fora
a bordo para ver como corriam as coisas, respondi o motivo pelo qual eu mudara de xadrez. Respondi que não sabia explicar, mas aproveitei a ocasião
para falar sobre a apreensão dos livros. Perdendo a calma, o responsável geral pelo policiamento no Raul Soares chamou Ariovaldo e determinou
que ele fizesse a imediata devolução:
"Você não tem autoridade para apreender os livros. Eu emprestei todos eles com
conhecimento do comandante do navio. Você não pode apreendê-los".
Cabisbaixo e humilde, mostrando sua verdadeira personalidade de homem covarde, foi
buscar correndo os livros.
Felizmente, quando da mudança de xadrez, debruçado sobre o colchão para apanhar a
pasta e a escova de dentes, consegui apanhar o punhado de papel de embrulho, que escondi sob a camisa. Nesses papéis, que alguns guardas me
arrumavam, ia escrevendo uma espécie de diário de bordo. Alguns homens da Polícia Marítima me traziam de terra cadernos e aos poucos fui fazendo
completo relato da vida a bordo, enchendo em poucos dias mais de trezentas páginas. |