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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Raul Soares - BIBLIOTECA NM
O navio-prisão (4-F)

Clique na imagem para voltar ao índice do livroUma das páginas negras da história santista

 

Este é o texto integral do livro de Nelson Gatto, que a censura do regime militar mandou apreender e destruir. Um raro exemplar remanescente foi cedido a Novo Milênio para esta edição digital, pelo jornalista Carlos Mauri Alexandrino, em 2012.

Impresso pela paulistana Edimax, com 154 páginas e capa de Wilson Cocchi, sem data (foi escrito e apreendido em 1965), tem agora sua primeira edição digital (com ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 63 a 76):

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RAUL SOARES

Navio presídio

A outra face da "Revolução"

Nelson Gatto

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Apresentação e prisão [*]

Para a Polícia paulista, minha prisão era ponto de honra. o sr. Adhemar de Barros dava ordens sobre ordens para a minha captura. O general Aldévio Barbosa Lemos, quando soube de minha fuga da Telefônica, reuniu em seu gabinete os delegados que comandavam o cerco e só faltou espancá-los.

Como procurassem transformar minha resistência num caso pessoal, alguns colegas de jornal, entre os quais se destacou o dinâmico Hélio Siqueira, conseguiram que o jornalista David Nasser, da revista O Cruzeiro, intercedesse em meu favor junto ao governador de São Paulo.

O que eu queria, era simplesmente, era poder voltar ao trabalho e ter direito a defesa no processo em que me haviam indiciado por ter permanecido leal ao Governo Constituído.

Para agradar David Nasser, que, pelas páginas de O Cruzeiro, fazia a apologia da "revolução", o sr. Adhemar de Barros prometeu que iria tratar do assunto com o general secretário da Segurança Pública. O que fizeram, contudo, foi apressar a feitura do inquérito no Dops e remetê-lo à Justiça, tendo o delegado Ruy Ulhoa Canto solicitado minha prisão preventiva.

A coisa era tão absurda que o juiz de Direito Hely Quadros, ao examinar os autos, deu um despacho dizendo não encontrar elementos para minha prisão preventiva. E mais: não via que crime eu poderia ter cometido. Só se houvesse algum crime previsto pelo Código Militar, mas, se assim fosse, a decretação da prisão preventiva fugia de sua alçada. Devolveu o inquérito à Polícia Civil que, por sua vez, enviou os autos à Justiça Militar.

O juiz José Tinoco Barreto, da 2ª Auditoria de Guerra, aceitou os autos e se dispôs a estudá-los para ver em que artigo da Lei de Segurança poderia enquadrar-me.

Enquanto permanecia escondido, escrevi uma carta ao general Amaury Kruel, que lhe foi entregue no Quartel General do II Exército pelos jornalistas Wilson Gomes, Eugenio Gertel, Orlando Criscuolo e Hélio Siqueira. Este o teor da missiva:

"São Paulo, 15 de abril de 1964.

"Senhor general Amaury Kruel,

"Ao escrever esta carta, posso assegurar que não sinto nenhum arrependimento e que, a despeito de estar sendo forçado a viver foragido, não sofro qualquer abatimento moral. Ao contrário: nunca estive tão sereno em minha vida, pois ao repassar todos os meus atos, cheguei à conclusão de que iria repeti-los, caso pudesse recuar no tempo.

"Embora sofrendo perseguições do estado policial que começa a se instalar, minha formação moral não permite a covardia de renegar amigos e superiores aos quais jamais escondi meu constante sentimento de lealdade. Orgulho-me de ter servido sob as ordens do coronel José Lemos de Avellar, militar de caráter e patriotismo, que em tudo honra o Exército do Brasil; orgulho-me de ter pertencido ao Ministério da Justiça, quando o mesmo tinha à sua frente um Abelardo Jurema; orgulho-me ter mantido contato com um homem da fibra do general Albuquerque Puertas.

"Se esta revolução foi feita contra a corrupção administrativa, eu não posso ser vítima dela; se foi contra atividades subversivas, eu tenho minha consciência tranquila de que jamais participei de movimento algum nesse sentido. Durante o pouco tempo em que ocupei cargo público federal, chefiando o Serviço de Repressão ao Contrabando, jamais tive um só momento de hesitação em meu acendrado amor à Pátria, jamais deixei alguma dúvida de plena honradez no trato da coisa pública. Não compreendo, pois, punição para um servidor cujo único crime foi o da disciplina.

"Desencadeada a onda de vinditas e perseguições inspiradas em motivos pessoais, por ser um jornalista de primeira linha no combate à má polícia, fui colocado na lista dos inimigos a serem caçados a qualquer preço. Não podem acusar-me de comunista, pois todo o povo de São Paulo sabe de minha formação democrática. Insistem, contudo, na minha prisão, para torturar-me nos xadrezes policiais, alegando, para a perseguição que me movem, a atuação que tive no dia em que eclodiram os acontecimentos que culminaram com a deposição do governo.

"Minha atuação no episódio Televisão/Telefônica não me envergonha, mas, bem ao contrário, me engrandece. Como chefe do único setor da Polícia Federal que vinha sendo montado em São Paulo, fui incumbido pelo general Albuquerque Puertas, delegado do Conselho de Telecomunicações, de procurar os dirigentes do Canal 9 para reiterar a ordem já expedida através da Agência Nacional, segundo a qual não seria permitida a transmissão de pronunciamentos políticos do sr. Adhemar de Barros e do sr. Auro Soares de Moura Andrade na noite de 31 de março.

"Acreditava o general Puertas que, por ser eu jornalista, as coisas se tornariam mais fáceis. Efetivamente, isso ocorreu, pois o sr. Edson Leite, diretor do Canal 9, que deveria comandar a rede de televisão para a transmissão dos pronunciamentos políticos, prontamente acatou a decisão das autoridades. Caso isso não acontecesse, eu deveria permanecer na sede da estação de televisão com os dois únicos agentes da Polícia Federal lotados em São Paulo, aguardando a cobertura de tropas federais. Em tal caso, o general Puertas havia me assegurado, eu contaria com apoio de tropas do II Exército, que V. Excia., sr. general Kruel, mandaria ao Canal 9 para garantirem minha ação legal.

"Estive na sede da Companhia Telefônica Brasileira acompanhado apenas por dois agentes da Polícia Federal e por três ou quatro jornalistas, e não com trinta e dois homens, como propalaram os dirigentes da Polícia paulista. Talvez tenham multiplicado o meu valor por trinta, o que muito me desvanece...

"Não invadi a CTB. Ali fui para falar com o delegado de Telecomunicações, general Albuquerque Puertas, que era, também, o interventor federal na Companhia Telefônica e ali mantinha o seu escritório. Mandei, efetivamente, fechar as portas da CTB para impedir a entrada de choques da Polícia Política e da Força Pública. E tal providência tomei enquanto aguardava o retorno do general Puertas que, a essa altura dos acontecimentos, encontrava-se no comando do II Exército, conferenciando com o general Aluísio Mendes, solicitando tropas para garantir a sede da CTB. Permaneci, de arma em punho, até alta madrugada, aguardando a chegada de tropas do II Exército que viessem em meu socorro, disposto a impedir, com o sacrifício da própria vida, que um general do Exército fosse preso e humilhado por "tiras" de Polícia.

"Por intermédio de jornalistas e advogados, já instei junto ao general Aldévio Barbosa Lemos, a fim de prestar declarações no inquérito policial e responder pelos meus atos, caso os mesmos tenham infringido o Código Penal. O secretário da Segurança Pública, talvez aconselhado pelos crápulas da Polícia, que sempre tiveram em minha pena uma espada em defesa dos direitos humanos, não aceita minha apresentação. Quer, simplesmente, minha prisão para que homens boçais possam dar vaza aos seus instintos, torturando-me - quiçá matando-me - nos xadrezes da Polícia Política.

"A revolução, que pretende situar-se no plano da grandeza histórica, não pode servir ou se transformar em instrumento de vindita pessoal. Por ser V. Excia. um dos líderes do movimento armado e por sentir que nos militares deve existir patriotismo e caráter, é que venho pedir não clemência, mas JUSTIÇA. Jutiça de poder depor num inquérito policial, caso o mesmo exista, e poder voltar para minha banca de jornalista, sem ter sido supliciado pelos que fazem da revolução um instrumento para suas vinganças.

"Atenciosamente,

Nelson Gatto".

***

As estradas continuavam cercadas e todos os veículos eram minuciosamente revistados. Pela estação rodoviária ou pelo aeroporto era impossível sair, tal o número de policiais que ali se concentrava. Era preciso, contudo, que eu saísse de São Paulo até que as coisas se acalmassem.

Do apartamento em que estive escondido, na Rua Martins Fontes, vestido de rabino, rumei para a sinagoga, em cujo interior conversei longamente com amigos. Ficou decidido que, naquele mesmo dia, eu deveria mudar de pouso. Fui levado para um apartamento da Avenida São João. Conseguiram-me uma vestimenta de padre, com a qual eu deveria deixar São Paulo.

Um sábado à noite, já vestido de sacerdote, aguardava, sozinho, a chegada dos amigos que me iam tirar, em automóvel, da capital do Estado. A campainha tocou e não tive dúvidas em abrir a porta. Em vez de deparar com os rapazes que ansiosamente aguardava, topei com uma bonita jovem, alta, de uns 25 anos de idade, que ficou um tanto atrapalhada ao ver um padre abrir a porta. Procurou escusar-se:

"Desculpe, eu vi luz acesa e pensei que fosse o senhor Cabral... Moro aqui no apartamento ao lado e ia pedir para usar o telefone..."

Calmamente, disse ser irmão do Cabral, um sacerdote que tinha sua paróquia no Interior e estava em trânsito por São Paulo. Mandei á moça que entrasse para telefonar e enquanto ela fez sua ligação permaneci sentado num sofá, lendo a Bíblia.

Após o telefonema, a jovem ficou conversando comigo quase uma hora. Como eu não tivesse sequer café para oferecer-lhe, convidou-me para um cafezinho em seu apartamento. Aceitei e acabei tomando também uma cerveja. A moça - como que querendo tentar um padre - insistia em fazer certas confissões íntimas e eu me limitava a dar-lhe conselhos, dizendo que ela deveria abrir seu coração num confessionário.

Retornei com ela ao apartamento e logo depois os dois amigos ali chegavam, ficando boquiabertos ao verem a jovem em minha companhia. A moça já estava completamente à vontade e não se cansava de dizer aos rapazes que jamais pensara em encontrar um padre tão "boa praça" como aquele padre Juca...

***

Deixei São Paulo cerca da meia noite de um sábado. Vestido de padre, num automóvel particular, fácil foi atravessar as estradas até chegar a Presidente Alves, onde estive na fazenda de um amigo. Dali, rumei em automóvel para Porto Epitácio e subi para Guaíra num barco que faz o transporte de madeira no Rio Paraná. Era minha intenção esconder-me numa fazenda de propriedade do sr. Adhemar de Barros, onde jamais pensariam em me procurar. Para isso, consegui uma carta apresentando-me aos responsáveis pela fazenda como pessoa ligada ao governador de São Paulo...

Estive alguns dias em Guaíra e dali rumei para Umuarama onde, ao almoçar com um amigo, fui reconhecido por alguns vendedores de terras do Norte do Paraná. Resolvi deixar rapidamente a região, mas não consegui avião, em virtude da chuva. Os ônibus, igualmente, haviam deixado de correr. Não houve outra alternativa senão o amigo conduzir-me de jipe até a cidade de Londrina, onde tomei um táxi, dirigindo-me outra vez para Presidente Alves, no interior de São Paulo.

Por onde passava, era a mesma tristeza, o mesmo terror policial: médicos, advogados e sacerdotes presos e torturados em masmorras policiais. Por vezes, nas pequenas cidades, a onda de violências era bem maior do que nos principais centros do país.

Ao sair de Umuarama, comprei dois jornais numa banca da rodoviária. Num deles, o Diário da Noite, li a transcrição de uma carta firmada pelo general Albuquerque Puertas, na qual ele dava a verdadeira versão dos acontecimentos na Telefônica e assumia a responsabilidade pelo que ali ocorrera. No outro, um exemplar bastante atrasado do Globo, datado de 27 de abril, li um relatório do Departamento de Ordem Política e Social, no qual eu era apontado como chefe de uma revolução comunista que deveria eclodir em São Paulo no dia 1º de maio, após o comício a ser feito pelo presidente da República!...

Um amigo que encontrei no Norte do Paraná deu-me uma notícia triste e chocante: Daltro da Silva Lima, por denúncia da própria esposa, fora preso pelo Dops! O jovem jornalista e oficial de Justiça discutira com a esposa - Clementina Montebello - e esta, por vingança, denunciou-o à Polícia. Lamentei a sorte de Daltro mas intimamente reprovei sua leviandade em narrar à esposa o episódio em que estivera envolvido na noite de 31 de março, principalmente sendo ela funcionária da Secretaria de Segurança Pública.

Durante mais de dois meses estive fora de São Paulo. Quando retornei à Capital, permaneci escondido num apartamento central, na Rua Conde Sarzedas, enquanto o advogado João Bernardes da Silva acertava minha apresentação ao juiz auditor de Guerra da II Região Militar.

Noventa e sete dias depois da "revolução", vestido de padre, preparei-me para a apresentação. Felizmente, não precisei usar as vestes sacerdotais mais uma vez, pois o próprio juiz Tinoco Barreto, para evitar violências por parte da Polícia, que formava cerco em torno da Auditoria de Guerra para minha prisão - queria a todo custo ter o gosto de prender-me - foi me buscar em seu automóvel.

Entrei na Auditoria de Guerra sob os flashes dos fotógrafos e cinegrafistas de São Paulo e Rio de Janeiro.

Não prestei depoimento. Apenas fui qualificado nos autos. O juiz auditor informou que nos próximos dias eu seria intimado para depor no Dops, para onde iria enviar os autos. Entrementes, para que pudesse circular livremente, concedeu-me um salvo-conduto, em papel timbrado do II Exército, vazado nos seguintes termos:

"SALVO CONDUTO

"O exmo. sr. dr. José Tinoco Barreto, juiz auditor, em exercício na 2ª Auditoria, da 2ª Região Militar, usando das atribuições de seu cargo, etc.

FAZ SABER, às autoridades civis e militares do país, ou quem suas vezes fizer, que mandou expedir o presente Salvo-Conduto em favor de NELSON GIBELLO GATTO, filho de João Gibello Gatto e de da. Aracy de Almeida Gatto, nascido em 30/12/1927, solteiro, jornalista, residente à Rua Campo Bom, nº 80, na Cidade Vargas, nesta capital, para que o mesmo tenha liberdade de ir e vir em todo o território do Estado de São Paulo, isento de quaisquer constrangimentos, por força do despacho que abaixo se transcreve e de acordo com o art. 2 da Lei nº 1.802, de 5/1/53: 'Defiro o requerido pelo indiciado sr. Nelson Gibello Gato. Determino que o mesmo compareça a esta Auditoria, todas as sextas-feiras, às 13 horas. Determino que não se afaste do território do Estado de São Paulo. Determino que no auto de apresentação declare sua residência e local de trabalho. Apesar de não se fazer necessário justificar a presente decisão, cumpre-me salientar que a prisão do indiciado não se faz necessária por motivos óbvios; a autoridade policial deu por encerrado o inquérito sem ouvi-lo, logo, desde que o mesmo venha a ser ouvido, é de se supor que apenas esclarecerá a sua conduta nos fatos e fixará ou não, com maior nitidez, a participação dos demais implicados. Determino, finalmente, que os autos sejam baixados à autoridade policial para que seja em dia e hora previamente designados ouvido o acusado e se proceda se necessário for a novas investigações. Determino, finalmente, seja oficiado aos Diários Associados sobre a decisão tomada. Lavre-se o auto de apresentação e expeça-se Salvo-Conduto com as restrições estabelecidas no início desta Decisão'.

"Cumpram-se as disposições deste Salvo-Conduto.

"Dado e passado nesta cidade e capital do Estado de São Paulo, na sede da 2ª Auditoria da 2ª Região Militar, aos sete dias do mês de julho do ano de mil novecentos e sessenta e quatro. Eu, escrivão Glaucio Gracindo Fernandes, que a datilografei e assino.

Dr. José Tinoco Barreto

Juiz auditor".

Da Auditoria de Guerra, rumei para o jornal, onde fui recebido festivamente pelos colegas, a maioria dos quais não via desde a eclosão do movimento de 31 de março.

Comecei a trabalhar normalmente. Dias depois, o juiz auditor de Guerra informava-me que eu deveria depor no Dops, numa manhã. Não entendi bem o horário e estive na Polícia à tarde, em companhia do criminalista João Bernardes da Silva e do médico Pedro Augusto de Azevedo Marques, vereador em São José do Rio Preto e filho de meu companheiro de redação Corifeu de Azevedo Marques. Almocei com o advogado e com o médico vereador, que fora processado e tivera seus direitos políticos cassados por ter denunciado, da tribuna da Câmara, bandalheiras de alguns elementos de influência em sua cidade.

Durante o almoço, o médico narrou um fato degradante. Em sua cidade, uma senhora, professora assistente da Faculdade de Medicina, fora presa por ter sido apontada, por um "dedo-duro" qualquer, como sendo de tendências esquerdistas. Antes mesmo de ser ouvida, enviaram-na para Cravinhos, encarcerando-a num presídio destinado a receber prostitutas da região!...

Não fui ouvido, nessa tarde, no Dops. Meu interrogatório foi marcado para as 9 horas da manhã seguinte.

Recebeu-me o delegado Ruy de Ulhôa canto, adjunto de Ordem Política, que solicitara, anteriormente, minha prisão preventiva. Ao contrário do que esperava, não houve equipe de interrogadores. O delegado conduziu-me a uma sala e proibiu a entrada de representantes da imprensa e até mesmo de meu advogado. Durante seis horas e meia fui submetido a interrogatório. Vez ou outra, entrava na sala uma jovem servindo café. A certa altura, o delegado, já meio tonto de tanto café, disse que jamais fora servido tantas vezes em tão pouco tempo. O que ele não sabia é que, logo após a primeira xícara ser servida, enfiei uma nota de mil cruzeiros no bolso da moça que, em agradecimento, retornava de quinze em quinze minutos com novo café.

O delegado fez uma série enorme de perguntas. Começou com a clássica:

"Qual foi sua atuação na noite da revolução?

"Revolução? Qual revolução?"

"A de primeiro de abril, é claro..."

"Ah, o senhor se refere ao golpe militar..."

"Golpe militar não, revolução..."

"Revolução? Revolução sem tiros? Sem a participação do povo? Sem uma mudança radical na fisionomia política e administrativa do país? Não, dr. Isso foi golpe militar, uma simples quartelada..."

"Bem, o senhor chame como bem entender..."

"Como bem entender não, senhor delegado. Chamo como deve ser chamado, como qualquer dicionário define o movimento de 31 de março..."

"Bem, isso não interessa. Como é que o senhor quer que fique consignado nos autos? Golpe militar ou quartelada?"

"Quero que fique consignado conforme vou ditar: que na noite em que eclodiu o movimento armado que culminou com a mudança de governo no país, o depoente..."

O delegado sorriu e redigiu - ele mesmo fazia as vezes de escrivão - o que eu ditava. De repente, parou, começou a suar, tirou do bolso interno do paletó uma bombinha, abriu a boca e bombou várias vezes. Percebi de pronto que ele sofria terrivelmente de asma.

A certa altura, perguntou de chofre se eu era favorável às reformas de base anunciadas pelo sr. João Goulart.

"Como todo bom brasileiro - respondi - aplaudi e festejei as reformas anunciadas. Qual o patriota que não quer a emancipação política e econômica de seu país? O senhor, que é um delegado moço, que passou há bem pouco tempo pelos bancos de uma Universidade, não é favorável à emancipação nacional?"

O delegado, constrangido, não soube o que responder. Ante minha insistência, esbravejou:

"Mas, afinal, quem está sendo interrogado não sou eu mas sim o senhor..."

Eu já prestava depoimento há mais de cinco horas sobre os fatos da Telefônica. Vez ou outra, o delegado Ruy Ulhôa Canto parava de escrever, tirava a bombinha do bolso, abria a boca e fazia inalações. Foi ao fim de uma dessas operações que perguntou por onde havíamos fugido do prédio da Telefônica.

"Fugido? Mas nós não fugimos da Telefônica. Depois de ouvir pelo rádio o manifesto do general Amaury Kruel, constatamos que nada mais restava a fazer e resolvemos nos retirar, utilizando uma saída que não é usada costumeiramente pelos funcionários da CTB..."

O delegado pigarreou, consignou minhas declarações nos autos e perguntou, de chofre, adotando uma atitude inquisitorial que não se enquadrava ao seu tipo físico:

"E sobre o videotape gravado pelo sr. Adhemar de Barros, ahn? O que me diz do videotape com as palavras do governador que deveria ir para o ar pelas emissoras de televisão e que o senhor subtraiu na noite do dia 31 de março do canal 9?"

"Não digo nada. E não digo nada por não ter havido qualquer subtração. Eu poderia fazer apreensão e nunca subtração. Mas nem isso foi preciso, uma vez que os dirigentes do canal 9 concordaram, prontamente, em acatar a determinação do governo federal. Não houve qualquer violência."

"Mas o senhor usaria de violência?"

"Para fazer cumprir a lei, claro, caso fosse necessário..."

"O senhor estava armado?"

"E muito bem armado. Mas sempre dentro da lei: meu cargo, no Departamento Federal de Segurança Pública, autorizava-me a portar arma. E se isso não bastasse, ainda estava munido de um porte de arma fornecido pelo Dops de São Paulo, válido por um ano, e que fora expedido meses antes de minha nomeação".

Exibi o porte de arma fornecido pelo Dops, fui ouvido mais algum tempo e, finalmente, dispensado, retornando ao Diário da Noite já à noitinha.

[*] N. E.: o título original, por erro tipográfico, era [Aprentação e prisão]

Imagem: reprodução parcial da página 5 do jornal paulistano Folha de São Paulo de quarta-feira, 8 de julho de 1964