Tsuru, ou grou, é um pássaro sagrado no Japão. No inverno, quando a temperatura
cai e o alimento rareia, os grous migram para lugares de clima mais ameno, à procura de melhores condições.
Nesse aspecto, Arata Kami é como os grous. Em boa parte dos seus 90 anos de vida, completados em março, o inverno
chegou amiúde e Kami migrou. A primeira e mais longa de todas as migrações foi logo aos 11 anos. Em agosto de 1933, deixou a cidade natal, Nogata, e
rumou para Kobe – à época, uma viagem de 17 horas. No porto, um navio o levaria ao distante Brasil.
Arata não estava só: rumava com os pais. Mas, na última hora, pegou uma inflamação ocular e não o deixaram
embarcar no navio. Os pais foram de imediato; Arata seguiu 15 dias depois, na companhia de um primo de seu pai.
"Tinha estudado sete anos na escola. Aprendi um pouco, em Geografia, o que era o Brasil", diz. Naquela época, para
um imigrante japonês, o Brasil poderia ser resumido em uma palavra: café.
Hoje, acomodado à mesa da sala de jantar de sua casa, no Embaré, Arata já carrega consigo muitas outras palavras
para descrever este País imenso chamado Brasil. Se tem de enumerá-las, surgem de sua boca em um sotaque carregado – simbiose entre dois mundos. Pois
Arata foi, sobretudo, uma ponte entre dois povos. Ou melhor, entre Santos e o Japão.
Durante 25 anos, de 1978 a 2003, presidiu a Associação Japonesa de Santos. No cargo, foi o responsável pelo
monumento em homenagem à imigração japonesa, hoje no Parque Municipal Roberto Mário Santini, no José Menino; é comissário de intercâmbio entre as
cidades-irmãs de Santos no Japão, Nagasaki e Shimonoseki; e foi um dos mais tenazes lutadores para reaver a sede da Associação Japonesa, confiscada
por decreto do então presidente, Eurico Gaspar Dutra, em 1946 – ainda uma consequência da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
A SANTOS NIPÔNICA - Arata Kami, 90 anos. Com o brilho do sol nascente
Foto: Alberto Marques, publicada com a
matéria, na página 1
Café, o princípio – Na estante atrás dele estão os vestígios materiais dessa
ponte entre dois mundos. Lado a lado, as honrarias se sucedem, sendo a mais marcante a comenda Ordem do Sol Nascente, que recebeu do próprio
imperador do Japão, Akihito, em 1993, pelo consulado japonês em São Paulo.
Mas tudo começou mesmo pelo café. Quando desembarcou, a família – pai, mãe, Arata e mais dois irmãos – foi direto
para a cidade de Cafelândia, no Interior de São Paulo. O nome dispensa apresentações.
Como muitos outros, foi trabalhar em uma fazenda de café. A maioria eram japoneses. Mas havia alguns italianos.
Não importava: todos tinham uma casa modesta. "Mas fazendeiro era outra coisa, né?", sorri, referindo-se à casa-grande. "Sonhava em ser fazendeiro
de café".
Arata foi muitas coisas – menos fazendeiro de café. A primeira mudança veio depois de quatro anos. A família
conseguiu arrendar uma terra em Cafelândia mesmo e deixou a fazenda. "Aí, o preço do café estava baixo". A saída foi plantar algodão, arroz, milho e
feijão. E, quando as coisas começavam a entrar nos eixos, veio a maleita (infecção causada por parasitas). Atingiu toda a família e levou seu pai.
Mais uma vez, a família migrou: deixou Cafelândia e o arrendamento por dez alqueires na cidade de Bastos, perto de
Tupã, comprados a vantajosas prestações. "Valia mais a pena. Pagava até menos por mês por algo que seria deles", conta a filha Saioko, que já
escreveu um livro sobre a saga do pai.
Em Bastos, concentraram suas forças na criação do bicho-da-seda – "dava mais dinheiro", diz Arata. Construíram um
galpão grande e contratavam mão de obra avulsa sempre que o trabalho apertava.
Se Arata não era o fazendeiro com que sonhara ser, ao menos a vida estava um pouco melhor. E assim foi, até
estourar a 2ª Guerra. Por ela, o destino teceria mais uma mudança em sua jornada.
Em agosto de 1933, o menino Arata partiu de sua terra natal para o Brasil. Foi a maior de todas as suas
migrações. Numa delas, conheceu a esposa, Kynoko, companheira de toda a vida e com quem mora no Embaré
Fotos: arquivo pessoal e Carlos Nogueira,
publicadas com a matéria
Largaram tudo – "Os italianos, alemães e japoneses (oriundos dos países do
Eixo, contrários à posição do Brasil na guerra) não podiam mais ficar em Santos. Tiveram que largar tudo e ir para o Interior". Dentre os que
tiveram de deixar Santos às pressas, estava um cunhado de Arata, que trabalhava com pescados. O cunhado foi para Lins, onde abriu um bar e
sorveteria.,
Finda a guerra, o cunhado voltou para seus peixes em Santos. E Arata viu uma boa chance de migrar outra vez. Ele
comprou do cunhado o bar e a sorveteria e deixou os bichos-da-seda para trás. "Queria mudar de vida, de ramo", justifica.
Foi em Lins que Arata conheceu a mulher que ficou a seu lado, à mesa, durante boa parte desta entrevista: Kynoko
Kami, de 83 anos. Sua história de vida é bem diferente da do marido. Ao contrário de Arata, ela era fazendeira de café. Ou melhor, sua família tinha
uma fazenda. Casaram-se, mas Arata não quis realizar o sonho de ser fazendeiro. Em vez disso, em sociedade com o irmão, abriu restaurante em Lins.
"Ele é muito orgulhoso (para aceitar algo maior do sogro)", entrega a filha Saioko.
As duas famílias moravam em uma mesma casa. Embora tivesse três quartos, não foi suficiente para abrigar os cinco
filhos do irmão, mais as duas meninas ainda bebês, de Arata. "Não dava. Fomos seguir a vida", resume Kynoko. E, como os grous, migraram mais uma
vez. A última.
O comendador Arata Kami presidiu a Associação Japonesa de Santos entre 1978 e 1993
Foto: arquivo pessoal, publicada com a
matéria
Migração definitiva – Chegaram a Santos em 1956. Quatro anos depois, Arata já
era chefe de vendas na antiga Cooperativa Agrícola Sul-Brasil (chegaria a gerente).
Com o sustento da família nos eixos, olhou para além de sua porta. "Todo japonês que chegava sujo, sem ter para
onde ir, ele levava para casa", rememora Saioko. As reuniões da Associação Japonesa de Santos, quando Arata era o presidente, também aconteciam em
sua casa. "Era tudo lá", resume a filha.
Há um ditado famoso: "Atrás de um grande homem…". Pois bem, certa vez, Fausto Figueira, chefe de gabinete da então
prefeita Telma de Souza (1989-1992), visitou a família antes de uma viagem ao Japão. Perguntou se havia alguma recomendação a ser feita. Kynoko, a
esposa de Arata, talvez cansada de tanto servir café em infindáveis reuniões em sua casa, foi categórica. "O sonho do meu marido é conseguir de
volta a sede da associação".
Figueira levou o caso à prefeita e a família reconhece que, a partir dali, as coisas começaram a acontecer. Mesmo
assim, a cessão do imóvel, na Rua Paraná, 129, na Vila Mathias, só sairia quase 20 anos depois, em 2006 – quando Arata já havia deixado a
presidência da associação.
Mas, em meio ao trabalho e a essa batalha pela recuperação da sede, Arata ainda encontrou tempo para introduzir em
Santos o gatebol (esporte com taco e bola, originário da ilha de Hokkaido) e o rádio taisso, espécie de ginástica rítmica, popular na
terceira idade.
Ele só não teve tempo de voltar ao Japão, para uma visita. "Ele não queria deixar o trabalho, era muito caxias",
brinca Saioko. Nem precisaria: afinal, o Japão nunca deixou de estar dentro dele.
Realizado |
Arata Kami não realizou o sonho de ser fazendeiro, mas conseguiu a concretização de
outro: a devolução do prédio da Associação Japonesa de Santos, tomado pelo Governo Federal após o término da Segunda Guerra Mundial. Confiscado
em 1946, foi restituído somente em 2006, seis décadas depois. |
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Tamanha dedicação à causa lhe rendeu homenagens
Foto: arquivo pessoal, publicada com a
matéria