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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CIDADE VERMELHA
Recordando a Nova Moscou (1)

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Cidade portuária e cosmopolita, antenada com as tendências mundiais e bastante politizada, Santos vivia intensamente, às vésperas da Revolução de 1964, toda a agitação política e social que caracterizava esse período no Brasil.

A ampla organização sindical, a quantidade expressiva de greves dos trabalhadores, com inúmeras bandeiras vermelhas e o símbolo da foice e do martelo nas manifestações dos grevistas, ademais, contribuíram muito para que a cidade ganhasse, nessa década, o epíteto de Nova Moscou, significando com isso a afirmação de que seria um dos pontos de grande efervescência do comunismo fora da então União Soviética - grupo de países sob regime comunista que girava em torno da capital russa, Moscou, ainda por trinta anos mais.

A cidade pagou caro por esse apelido, na forma de forte repressão política, declaração de zona de segurança nacional e conseqüente cassação da autonomia para escolha de seu prefeito por quase duas décadas. É a essa época que Nelson Salasar Marques se refere, neste artigo publicado na edição de 29 de novembro de 1995 do jornal santista A Tribuna:

IMAGENS DE UM MUNDO SUBMERSO
Santos, o Comunismo e o Português

Nelson Salasar Marques (*)
Colaborador

Santos sempre foi cidade difícil. Ao contrário de cidade do Interior, onde as pessoas se apascentam na modorra daquele cotidiano sem grandeza, Santos sempre pareceu aos meus olhos se debater no fogo de suas contradições. Foi a cidade mais vermelhamente comunista do Brasil. E também a mais indomável. Santos chegou até a assustar os generais da revolução de 64 que, não tendo condições para entender o fenômeno, transformaram a cidade em praça de guerra.

Mas, que fenômeno era aquele que transformava uma cidade nitidamente portuguesa num paiol de pólvora prestes a explodir? Como, do bojo de uma cidade de procissões, padres, de terços puxados dentro da noite que varavam madrugadas, de cantorias louvando a Virgem Maria nas vozes ardentes de congregados marianos e de filhas de Maria, de noites perfumadas pelo incenso dos coroinhas nas rezas das igrejas do Valongo, do Embaré, do Rosário? Como, de um universo de aparentes harmonias celestiais, poderiam ter surgido aquelas ondas alternantes e alternadoras de sombras e de luz que envolviam a Cidade e eram o espanto do País?

Santista, quando saía por aí afora, era geralmente tratado por comunista. Tratado fui eu assim muita vez lá em São Paulo, no Bairro da Água Rasa, diante da italianada amiga de meu tio Bernardo que lia Jaurés e o poeta Guerra Junqueiro. "Ah, então você é de Santos, seu comunistinha..." As pessoas pareciam me olhar com temor e eu crescia em importância. A palavra comunista àquela altura assustava. Poucos sabiam o que era. Usavam-na sem saber o que era, mas assustava.

Muita vez me detive diante desse fenômeno, buscando explicação que me satisfizesse. Não ouvi de ninguém explicação razoável do fenômeno. Nem de historiador. Nem de escritor. Alguns chegaram a se aventurar em interpretações várias, mas desassistidas de fundamentos maiores que o de uma imaginação fértil atirando em todas as direções, atribuindo a anomalia à presença do porto.

Meu Deus! Porto, mar, navios, praias, marinheiros não são sementeira para trombar idéias fortes nem acolher atitudes de enfrentamento. Porto, mar, praias geram amenidades. O Rio de Janeiro nunca foi esquerdista, maciçamente esquerdista. Adubo forte para comunismo estava nas tecelagens da Moóca, em São Paulo, onde operários definhavam em regime de trabalho escravo naquelas fábricas sombrias e úmidas semelhantes a presídios. Muito pensei sobre isso e então as respostas me pareceram chegar com a clara nitidez da luz da manhã.

Morro do Pacheco, reduto português em Santos (foto: A Tribuna, 1982)

Morro do Pacheco, reduto português em Santos (foto: 'A Tribuna', 1982)A resposta a esse enigma me vem da lembrança que guardo daquela Santos das décadas de 1930 e 40. Aquelas levas de portugueses que aqui aportavam logo se estabeleciam no comércio de vendas, trocas e de serviços. Via-os eu, carvoeiros, subindo o morro do Pacheco com enormes sacos à cabeça, ou caldeireiros, vergados ao peso de panelas e bacias velhas batendo as ruas de Santos com os seus passos cansados. Via-os eu, em bares e padarias, varando a noite, e a primeira luz da manhã já os pegando de pé à espera dos fregueses, sempre com a cara fresca e alegre.

Em pouco tempo, prosperavam e se punham a comprar imóveis. Aquela gente acreditava na força do trabalho e não atravessara o oceano para brincar. Mas essa prosperidade súbita contrastava com a estagnação dos chamados donos da terra, dos brasileiros que, mal chegados do trabalho, buscavam os bares e diante de um copo de pinga passavam a noite falando de futebol e de mulheres. Criado no meio de famílias portuguesas, eu já notava o tratamento desdenhoso da colônia lusitana para com os brasileiros da cidade. Eu ouvia dizer lá em casa, a meu pai e a meu tio: "Em vez de pensar no trabalho, essa gente só pensa em beber pinga e jogar bola".

E então, por ocasião dos discursos de Getúlio Vargas, o meu tio, que amava fados e bacalhau e detestava água e sabonete, pedia a nossa atenção e dizia que o próprio Getúlio já fazia a distinção entre brasileiros e portugueses. E quando Getúlio dizia: "Brasileiros...", meu tio arrematava: "Ele está falando com vocês", e apontava para nós. E Getúlio continuava: "Trabalhadores do Brasil...", e o meu tio estufando o peito cheio de orgulho: "Agora ele está falando conosco".

Vista hoje à distância, essa questão perde a sua força de tensão e se dilui no tempo transcorrido, mas o relacionamento luso-brasileiro naqueles tempos não era nada amistoso. Então o brasileiro, tratado com desdém pelo imigrante recém-chegado que lhe vinha dar ordens e que se lhe apresentava em condições econômicas superiores, rebelava-se.

E como rebelava-se o brasileiro? Criando termos usados com força depreciativa como portuga, ilhéu, cutruco, zé mané e dando curso rápido a piadas em que o português aparecia sempre como otário e burro. Muitas vezes ao longo de minha vida, em ocasiões várias, ouvi pessoas dizerem que esse tratamento abusado por parte dos brasileiros em relação ao português era maneira carinhosa de expressar sentimento. Nada mais falso. A prosperidade portuguesa em Santos incomodava brasileiro e porque ele não podia se rebelar abertamente contra o senhor luso economicamente poderoso, então partia para a perfídia das palavras onde massageava o seu ego ferido.

Mas esse fenômeno singular, que já está a pedir um estudo aprofundado dos estudiosos, só aconteceu em Santos, porque só em Santos houve uma concentração maciça da colônia portuguesa num espaço reduzido. São Paulo girava ao redor de outras realidades, com os italianos no centro das decisões. A colônia portuguesa em São Paulo era um tecido esgarçado, entremeado de malhas de outras raças. O Rio de Janeiro, capital federal e centro nervoso do País, embora fosse constituído de população predominantemente portuguesa, diluía no seu esplendor e nos seus vastos espaços atritos e discriminações. Santos era o grande enclave português no Brasil e a disputa renhida pelo domínio econômico de seus espaços era inevitável. O português venceu. E isso trouxe recalques, ressentimentos.

O melhor exemplo que posso oferecer, para dizer que esta minha teoria coabita com a verdade, é extraído da eleição para presidente do Brasil em 1946 em que o general Dutra foi eleito. O candidato das esquerdas brasileiras era Yedo Fiúza. Fiúza teve em Santos, proporcionalmente, a maior votação do Brasil. E tenho a certeza de que muitos se lembrarão ainda dos conturbados momentos que antecederam aquela eleição. Parecia que Santos se havia transformado um posto avançado do comunismo e os portugueses eram os alvos preferidos. Eu ouvi muita vez meu pai ser atacado por palavras duras à nossa passagem pela Rua Benjamin Constant, em tons velados, mas nem por isso menos ameaçadores.

Eles diziam "ó português, das tuas casas agora uma vai ser minha". Nas ruas e nos bondes, o tom era agressivo e os portugueses de Santos se encolheram. Minha mãe vivia assustada e quando vinha da padaria de manhã cedo fazia o relato do que ouvia na rua. "Vai cuidando bem das tuas casas que uma vai ser minha", diziam as vozes agressivas. Colocado em posição de inferioridade pelo imigrante que chegara à sua cidade, ele agora se vingava. Havia o desrecalque, a explosão interna que ele guardara ao longo dos anos.

Esse antagonismo acirrado inexistente em outras cidades brasileiras criou em Santos a tendência contestatória que acabaria por favorecer por estas bandas as esquerdas e os seus candidatos. É extraordinário observarmos como a cidade de Santos se desviou da linha política das cidades do interior de São Paulo: ela vota geralmente em direção diametralmente oposta.

(*) Nelson Salasar Marques é escritor, professor de línguas estrangeiras e membro da Academia Santista de Letras. A série de artigos Imagens de um Mundo Submerso deu origem a vários livros de sua autoria.

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