IMAGENS DE UM MUNDO SUBMERSO
Santos, o Comunismo e o Português
Nelson Salasar Marques (*)
Colaborador
Santos sempre foi cidade difícil. Ao contrário de cidade do
Interior, onde as pessoas se apascentam na modorra daquele cotidiano sem grandeza, Santos sempre pareceu aos meus olhos se debater no fogo de suas
contradições. Foi a cidade mais vermelhamente comunista do Brasil. E também a mais indomável. Santos chegou até a assustar os generais da revolução
de 64 que, não tendo condições para entender o fenômeno, transformaram a cidade em praça de guerra.
Mas, que fenômeno era aquele que transformava uma cidade nitidamente portuguesa num paiol de
pólvora prestes a explodir? Como, do bojo de uma cidade de procissões, padres, de terços puxados dentro da noite que varavam madrugadas, de
cantorias louvando a Virgem Maria nas vozes ardentes de congregados marianos e de filhas de Maria, de noites perfumadas pelo incenso dos coroinhas
nas rezas das igrejas do Valongo, do Embaré, do Rosário? Como, de um universo de aparentes harmonias celestiais, poderiam ter surgido aquelas ondas
alternantes e alternadoras de sombras e de luz que envolviam a Cidade e eram o espanto do País?
Santista, quando saía por aí afora, era geralmente tratado por comunista. Tratado fui eu
assim muita vez lá em São Paulo, no Bairro da Água Rasa, diante da italianada amiga de meu tio Bernardo que lia Jaurés e o poeta Guerra Junqueiro.
"Ah, então você é de Santos, seu comunistinha..." As pessoas pareciam me olhar com temor e eu crescia em importância. A palavra comunista àquela
altura assustava. Poucos sabiam o que era. Usavam-na sem saber o que era, mas assustava.
Muita vez me detive diante desse fenômeno, buscando explicação que me satisfizesse. Não ouvi
de ninguém explicação razoável do fenômeno. Nem de historiador. Nem de escritor. Alguns chegaram a se aventurar em interpretações várias, mas
desassistidas de fundamentos maiores que o de uma imaginação fértil atirando em todas as direções, atribuindo a anomalia à presença do porto.
Meu Deus! Porto, mar, navios, praias, marinheiros não são sementeira para trombar idéias
fortes nem acolher atitudes de enfrentamento. Porto, mar, praias geram amenidades. O Rio de Janeiro nunca foi esquerdista, maciçamente esquerdista.
Adubo forte para comunismo estava nas tecelagens da Moóca, em São Paulo, onde operários definhavam em regime de trabalho escravo naquelas fábricas
sombrias e úmidas semelhantes a presídios. Muito pensei sobre isso e então as respostas me pareceram chegar com a clara nitidez da luz da manhã.
Morro do Pacheco, reduto português em Santos (foto: A Tribuna, 1982)
A
resposta a esse enigma me vem da lembrança que guardo daquela Santos das décadas de 1930 e 40. Aquelas levas de portugueses que aqui aportavam logo
se estabeleciam no comércio de vendas, trocas e de serviços. Via-os eu, carvoeiros, subindo o morro do Pacheco com
enormes sacos à cabeça, ou caldeireiros, vergados ao peso de panelas e bacias velhas batendo as ruas de Santos com os seus passos cansados. Via-os
eu, em bares e padarias, varando a noite, e a primeira luz da manhã já os pegando de pé à espera dos fregueses, sempre com a cara fresca e alegre.
Em pouco tempo, prosperavam e se punham a comprar imóveis. Aquela gente acreditava na força do
trabalho e não atravessara o oceano para brincar. Mas essa prosperidade súbita contrastava com a estagnação dos chamados donos da terra, dos
brasileiros que, mal chegados do trabalho, buscavam os bares e diante de um copo de pinga passavam a noite falando de futebol e de mulheres. Criado
no meio de famílias portuguesas, eu já notava o tratamento desdenhoso da colônia lusitana para com os brasileiros da cidade. Eu ouvia dizer lá em
casa, a meu pai e a meu tio: "Em vez de pensar no trabalho, essa gente só pensa em beber pinga e jogar bola".
E então, por ocasião dos discursos de Getúlio Vargas, o meu tio, que amava fados e bacalhau
e detestava água e sabonete, pedia a nossa atenção e dizia que o próprio Getúlio já fazia a distinção entre brasileiros e portugueses. E quando
Getúlio dizia: "Brasileiros...", meu tio arrematava: "Ele está falando com vocês", e apontava para nós. E Getúlio continuava: "Trabalhadores do
Brasil...", e o meu tio estufando o peito cheio de orgulho: "Agora ele está falando conosco".
Vista hoje à distância, essa questão perde a sua força de tensão e se dilui no tempo
transcorrido, mas o relacionamento luso-brasileiro naqueles tempos não era nada amistoso. Então o brasileiro, tratado com desdém pelo imigrante
recém-chegado que lhe vinha dar ordens e que se lhe apresentava em condições econômicas superiores, rebelava-se.
E como rebelava-se o brasileiro? Criando termos usados com força depreciativa como
portuga, ilhéu, cutruco, zé mané e dando curso rápido a piadas em que o português aparecia sempre como otário e burro.
Muitas vezes ao longo de minha vida, em ocasiões várias, ouvi pessoas dizerem que esse tratamento abusado por parte dos brasileiros em relação ao
português era maneira carinhosa de expressar sentimento. Nada mais falso. A prosperidade portuguesa em Santos incomodava brasileiro e porque ele não
podia se rebelar abertamente contra o senhor luso economicamente poderoso, então partia para a perfídia das palavras onde massageava o seu ego
ferido.
Mas esse fenômeno singular, que já está a pedir um estudo aprofundado dos estudiosos, só
aconteceu em Santos, porque só em Santos houve uma concentração maciça da colônia portuguesa num espaço reduzido. São Paulo girava ao redor de
outras realidades, com os italianos no centro das decisões. A colônia portuguesa em São Paulo era um tecido esgarçado, entremeado de malhas de
outras raças. O Rio de Janeiro, capital federal e centro nervoso do País, embora fosse constituído de população predominantemente portuguesa, diluía
no seu esplendor e nos seus vastos espaços atritos e discriminações. Santos era o grande enclave português no Brasil e a disputa renhida pelo
domínio econômico de seus espaços era inevitável. O português venceu. E isso trouxe recalques, ressentimentos.
O melhor exemplo que posso oferecer, para dizer que esta minha teoria coabita com a verdade,
é extraído da eleição para presidente do Brasil em 1946 em que o general Dutra foi eleito. O candidato das esquerdas brasileiras era Yedo Fiúza.
Fiúza teve em Santos, proporcionalmente, a maior votação do Brasil. E tenho a certeza de que muitos se lembrarão ainda dos conturbados momentos que
antecederam aquela eleição. Parecia que Santos se havia transformado um posto avançado do comunismo e os portugueses eram os alvos preferidos. Eu
ouvi muita vez meu pai ser atacado por palavras duras à nossa passagem pela Rua Benjamin Constant, em tons velados, mas nem por isso menos
ameaçadores.
Eles diziam "ó português, das tuas casas agora uma vai ser minha". Nas ruas e nos bondes, o
tom era agressivo e os portugueses de Santos se encolheram. Minha mãe vivia assustada e quando vinha da padaria de manhã cedo fazia o relato do que
ouvia na rua. "Vai cuidando bem das tuas casas que uma vai ser minha", diziam as vozes agressivas. Colocado em posição de inferioridade pelo
imigrante que chegara à sua cidade, ele agora se vingava. Havia o desrecalque, a explosão interna que ele guardara ao longo dos anos.
Esse antagonismo acirrado inexistente em outras cidades brasileiras criou em Santos a
tendência contestatória que acabaria por favorecer por estas bandas as esquerdas e os seus candidatos. É extraordinário observarmos como a cidade de
Santos se desviou da linha política das cidades do interior de São Paulo: ela vota geralmente em direção diametralmente oposta.
(*) Nelson Salasar Marques é escritor, professor de
línguas estrangeiras e membro da Academia Santista de Letras. A série de artigos
Imagens de um Mundo Submerso deu origem a vários livros de sua autoria. |