Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0133o.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 11/16/05 11:34:06
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - AMARGO AÇÚCAR
A arquitetura dos engenhos brasileiros

Publicado na Revista USP nº 41 (de março a maio de 1999), editada pela Coordenadoria de Comunicação Social da Universidade de São Paulo, na capital paulista - acervo do historiador Waldir Rueda -, páginas 62 a 73:


Engenho dos Jesuítas em Cubatão. Desenho de M. Burchell, Museum Africa
Foto: publicada com a matéria

Os engenhos da Baixada Santista e os do Litoral Norte de São Paulo

Nestor Goulart Reis (*)

INTRODUÇÃO

Estudar os primeiros engenhos da Baixada Santista não é uma tarefa simples. Nenhum deles sobreviveu, para nos oferecer uma idéia de sua aparência. O assunto foi tratado por Gustavo Neves da Rocha Filho em um relatório interno da FAU-USP (Rocha, 1989) e em seu trabalho para o Condephaat - Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Rocha, 1982). Posteriormente, foi também objeto de uma pesquisa desenvolvida pelo arquiteto holandês Paul Meurs, que colaborou com a CPC - Comissão de Patrimônio Cultural da USP, no estudo do Engenho São Jorge (Meurs, 1995). São textos importantes, entre outros, que nos auxiliaram neste trabalho.

Mesmo assim, o estudo desses engenhos apresenta uma série de dificuldades. São poucos os vestígios materiais, sendo o principal deles o conjunto das ruínas de São Jorge dos Erasmos, que não oferece condições, até o momento, para formulação de hipóteses consistentes sobre sua forma original. Diferentemente de outras regiões, a Baixada Santista não conservou exemplares de suas casas rurais mais antigas. O empobrecimento ocorrido nas últimas décadas do século XVI, ainda em fase de formação da capitania, terá contribuído para um desaparecimento precoce dessas estruturas.

Dificuldades dessa ordem devem nos estimular a um uso mais intenso das informações disponíveis e a um exame atento das hipóteses e alternativas de interpretação, com maior empenho do que costuma ocorrer no que se refere aos remanescentes da arquitetura de regiões herdeiras de um patrimônio mais variado.

Este estudo se encaminha nesse sentido, procurando estabelecer comparações com a arquitetura da região do Litoral Norte de São Paulo, vizinha mais próxima, cuja colonização foi iniciada exatamente no período em que ocorria a precoce decadência da produção açucareira da Baixada Santista.


Antiga residência e instalações do Engenho Santana, São Sebastião/SP
Foto: publicada com a matéria

ENGENHOS DA CAPITANIA DE SÃO VICENTE

Os primeiros engenhos foram construídos por iniciativa de Martim Afonso de Souza e seus companheiros na fundação da Vila de São Vicente, primeiro núcleo institucionalizado em todo o território brasileiro.

Acredita-se que o mais antigo tenha sido o da Madre de Deus ou Nossa Senhora das Neves, construído em 1532 no Enguaguaçu, por iniciativa de Pero de Góes. Existiriam na Baixada pelo menos seis, na segunda metade do século XVI.

De 1533 é o Engenho São João, dos irmãos Adorno, instalado à margem do córrego de São Jerônimo, em área em que se encontra hoje o centro de Santos. O engenho de Jerônimo Leitão, um trapiche (movido a tração animal), foi construído no Tumiaru, em São Vicente, em frente à atual Ponte Pênsil. Mas havia outros.

A construção do Engenho do Governador ou de São Jorge foi iniciada em 1534. O local foi escolhido com cuidado, em um ponto praticamente no centro da ilha, de forma a estimular a ampliação da cultura da cana e a dinamização econômica dos colonizadores. Frei Gaspar informa que "para que os lavradores as pudessem moer, fabricou quase no meio da sobredita ilha um engenho d'água, com capela dedicada a São Jorge [...]" (Azevedo, 1953, p. 84).

O empreendimento tinha um caráter tipicamente mercantil. Martim Afonso e seu irmão Pero Lopes de Souza constituíram uma empresa para a construção desse e de um outro engenho, na Capitania de Itamaracá, concedida a Pero Lopes. A empresa tinha participação da família Schetz, que nessa época atuava em Antuérpia, na Bélgica (Meurs, 1995, p. 22).

Os flamengos mantinham um escritório em Lisboa, administrado por Johan van Hielst, conhecido entre os portugueses por João Veniste ou Julião Visnat. A administração se completava com a participação de Francisco Lobo e do piloto Vicente Gonçalves (Meurs, 1995).

Pouco posterior é a fundação de uma outra empresa comercial, conhecida como "Armadores do Trato", que deveria promover o comércio na capitania, muito provavelmente com sentido monopolista. Segundo frei Gaspar, os Armadores "importavam as drogas de Europa, que se haviam de vender aos portugueses e estes aos índios; o produto exportavam para o Reino, em gêneros da terra, principalmente em açúcar; o qual era a moeda corrente desse tempo" (Azevedo, 1953, p. 87).

A agroindústria açucareira, iniciada no século XV, com os engenhos da Ilha da Madeira. e consolidada no século XVI, com a produção no Brasil, não foi uma empresa constituída apenas por portugueses. Até 1580, envolveu uma participação intensa de europeus de outras regiões, em especial de genoveses e alemães, com destaque para os flamengos.

A produção portuguesa era em grande parte financiada por banqueiros genoveses, o que explica a presença de membros da família Adorno. Era beneficiada e distribuída no Norte da Europa, com a colaboração de comerciantes ligados à Hansa, em especial flamengos. Essa cooperação teve impulso especial no século XV, no sistema de produção e na administração das capitanias da Madeira. O mesmo esquema foi transferido para o Brasil, a partir de 1532, quando as condições do mercado internacional permitiram a ampliação da produção portuguesa. A família Schetz manteve comércio intenso com a Capitania de São Vicente, com uma linha de navegação entre o Brasil e a Europa (Meurs, 1955, p. 24).

Essa cooperação entrou em crise com as guerras dos Países Baixos, que levaram ao cerco e ao saque de Antuérpia, em 1576 e 1585, comprometendo irremediavelmente seu papel comercial (Lippmann, 1941, v. 2, p. 36). Em relação aos portugueses, a ruptura se acentuou com a união das coroas de Portugal e Espanha, em 1580, estabelecendo-se um período de dominação espanhola, até 1640.


Engenho em Pernambuco. Desenho de Franz Post
Foto: publicada com a matéria

A DECADÊNCIA DOS ENGENHOS DE SÃO VICENTE

Os autores são unânimes em reconhecer que exatamente nessa época a produção açucareira da Baixada Santista entrou em decadência. A área de colonização da capitania, que se expandia continuamente desde o início, apresentava uma dinâmica de outra ordem e apenas em parte acompanhou a decadência da produção açucareira.

A população da Baixada Santista se ampliava de forma mais ou menos contínua. Santos foi fundada em 1545. Em 1553 e 1554 foram fundadas as vilas do Planalto, Santo André da Borda do Campo e São Paulo. A agricultura e a pecuária no Planalto, com outro caráter, expandiam-se continuamente, de tal modo que no início do século XVII já começavam a ser fundadas outras vilas, como Mogi das Cruzes (1611) e Parnaíba (1625). Não seria portanto uma questão de decadência da capitania mas de uma das formas de atividade econômica dos portugueses, na região.

Há várias hipóteses sobre as causas do colapso da produção açucareira de São Vicente. Entre elas, destaca-se a de frei Gaspar da Madre de Deus, historiador santista, nascido no engenho cujo nome adotou como religioso (Engenho Madre de Deus). Segundo ele, a decadência teria sido uma conseqüência da decisão da mulher de Martim Afonso de Souza, d. Ana Pimentel, de suspender a proibição que havia sido estabelecida pelo donatário, impedindo que os colonos deixassem a Baixada para se dirigir ao Planalto. De fato, durante os primeiros anos o acesso ao Planalto foi controlado pelo grupo liderado por João Ramalho, que se dedicava ao tráfico de escravos indígenas, sem que fosse permitido aos demais o acesso à região.

A chegada dos jesuítas em 1553, acompanhando o governador Tomé de Souza, e seu deslocamento ao Planalto, em companhia do governador, levaram à instalação dos padres no local em que iria se fundar a Vila de São Paulo, em 1553, no mesmo ano da fundação de Santo André da Borda do Campo. A prosperidade de São Paulo, em local mais bem provido de alimentos, determinou a ocorrência de um outro exemplo de decadência, a de Santo André, cuja população se transferiu para junto do Colégio, no ano de 1560, inclusive com o pelourinho, símbolo do poder municipal.

Exemplos de decadência havia portanto vários, mas não seria esse o caso em 1553 ou em 1560, pois São Vicente e Santos continuavam prosperando na cultura da cana, no mesmo momento em que Santo André entrava em decadência.

A segunda linha de explicações tradicionais é a que alega uma qualidade inferior do açúcar produzido na Baixada, explicação que se combina com outra, que procura mostrar que a menor distância entre Bahia, Pernambuco e Portugal teria favorecido significativamente a produção do Nordeste, inviabilizando a produção vicentina. Gustavo Neves da Rocha, analisando os tipos de solo da Ilha de São Vicente, concluiu que as áreas adequadas para o cultivo da cana seriam pouco extensas, estabelecendo-se, em conseqüência, um sério limite para a expansão da produção (Rocha, 1989).

Em relação a algumas dessas teses, há questões que merecem ser explicitadas. A primeira delas é que a decadência da produção açucareira não significaria necessariamente a ausência de outras formas de produção ou a desativação econômica dessas propriedades rurais. De fato, algumas das propriedades, como o Engenho Madre de Deus, continuaram em atividade, com outras formas de produção, ao longo de todo o Período Colonial. Mais importante do que isso, é o fato de que os jesuítas construíram um engenho em sua fazenda, em Cubatão, que segundo as informações disponíveis seria do século XVII (Ferrez, 1981).

De fato, nessa como em outras regiões, a ausência de produção açucareira não significava necessariamente um afastamento total do setor canavieiro. Os engenhos eram adaptados para a produção de aguardente, que servia como moeda, no comércio de escambo da África, para a compra de escravos. Esse foi o caso de quase todas as propriedades rurais do Litoral Norte de São Paulo, do Sul da Capitania do Rio de Janeiro, em áreas como Parati e Angra dos Reis, bem como no recôncavo da Guanabara, onde a produção de aguardente foi quase sempre a atividade principal, pela inexistência de condições para a produção de açúcar. Nessas regiões, a mudança de produto não significou necessariamente a desativação e a destruição das edificações em que se instalavam os engenhos.

Em seus estudos sobre o Engenho São Jorge, Paul Meurs apresentou uma hipótese sugestiva, que merece um exame mais atento. Examinando as condições políticas nos centros flamengos de comercialização do açúcar, nas últimas décadas do século XVI, chama atenção para a coincidência de datas do cerco e saque de Antuérpia e o colapso do Engenho de São Jorge, que havia sido comprado pela família Schetz, quando passou a ser conhecido como São Jorge dos Erasmos, incorporando o prenome de um dos líderes da família.

A essa hipótese, que nos interessa de modo especial, devemos ajuntar algumas observações sobre as mudanças que aconteceram nesse período, na vizinha Capitania de Santo Amaro. Com o domínio espanhol, reforçou-se o empenho pelo controle da faixa litorânea, entre São Vicente e Rio de Janeiro, de modo a consolidar a expulsão dos franceses, que mantinham seus pontos de extração de madeira nessa região, com apoio dos tamoios.

Expulsos os competidores europeus, foi mais fácil vencer a resistência dos indígenas, abrindo condições para a colonização do Litoral Norte de São Paulo, que pertencia então à Capitania de Santo Amaro, até então inexplorada pelos portugueses, além da Bertioga.

À pacificação sucedeu uma fase de solicitação de posses de terra, no território dos atuais municípios de São Sebastião e Ubatuba, dando origem a uma exploração agrícola, de base canavieira, que justificou a criação das vilas de São Sebastião, em 1636, e Ubatuba, em 1637. No Planalto, essa expansão em direção ao Norte foi iniciada com a fundação de Mogi das Cruzes em 1611, nas cabeceiras do Rio Tietê.

No Litoral Norte, a produção de cana se destinaria muito provavelmente apenas à produção de aguardente, pois esse foi também o quadro da região da Guanabara, ao longo do século XVII, quando apresentava modesta estatística de exportação de açúcar. Mas não deixa de ser estranho que, no mesmo momento em que os engenhos da Baixada Santista entravam em decadência e, segundo alguns atores, ficavam completamente paralisados, iniciava-se a colonização do Litoral Norte com instalação de engenhos para a produção de aguardente.

Entre os autores que trataram da história desse desenvolvimento na faixa que era então a da Capitania de Santo Amaro, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista arquitetônico, constata-se uma quase completa omissão nas referências a esse processo de colonização, durante o século XVII. A região é sempre mencionada a propósito da produção canavieira no século XVIII, mas há um quase completo silêncio em relação ao século em que se inicia a sua colonização, sem esquecer que as primeiras datas de terra foram solicitadas na última década do século XVI, sendo provável que uma parte dos solicitantes fosse constituída por moradores de Santos e São Vicente.

Essa observação vem a propósito de uma informação que recolhemos por volta de 1960, em pesquisa na região de São Sebastião. Visitando o Engenho Santana, no bairro de São Francisco, foi-nos permitido copiar uma fotografia do primitivo engenho, com sua casa de moradia acoplada à unidade produtiva, que existia em uma das paredes da segunda sede, construída em meados do século XVIII.

Uma cópia da fotografia da casa, demolida em 1924, foi levada na ocasião ao então diretor do IPHAN, Luís Saia, que a publicou, como ilustração de seu livro Morada Paulista (Saia, 1972, p. 40).

Saia usou essa imagem com prudência, sem tentar datar o edifício, podendo supor que se tratasse de uma das casas rurais construídas no século XVIII, às quais estava se referindo no texto, pois não dispunha de outra informação. Mas, na ocasião, o dr. Nelson Manoel do Rego, cuja família era proprietária do engenho desde o século XVIII, nos informou que acreditava que a primitiva residência fosse do século XVII, pois existia uma imagem, retirada da capela daquela edificação, antes de sua demolição, na qual estava inscrita a data de 1672 [1].

De fato, as características da arquitetura dessa primitiva residência (principalmente a integração da moradia com as instalações do engenho propriamente dito) correspondiam aos padrões das edificações mais antigas do gênero em outras capitanias, que são de nosso conhecimento.

É o caso das que são registradas nos desenhos de Frans Post, entre 1637 e 1642, em Pernambuco, o que torna aceitável a datação lembrada pelo proprietário. A ser confirmada a hipótese, aquele seria o único documento disponível sobre as unidades produtivas dos colonizadores e suas moradias do Litoral Norte, no século XVII. Por isso mesmo, pode ser um elemento importante para compreensão da situação dos engenhos da Baixada Santista, no século anterior e ao longo de todo o Período Colonial.


Engenho em Pernambuco. Desenho de Franz Post
Foto: publicada com a matéria

SOBRE A ARQUITETURA DOS ENGENHOS

Ao dar início à colonização da Capitania de São Vicente, os portugueses formalmente transferiram para o Brasil a experiência de agroindústria açucareira, que haviam desenvolvido na Ilha da Madeira. Os modelos adotados na fase inicial deveriam corresponder portanto a unidades produtivas de porte médio e pequeno.

Como bem observou Luís Saia, nessas formas mais simples de instalação a habitação do proprietário ou seu preposto e o setor de produção eram acomodados em uma única edificação, com duas seções diversas. Aos poucos, com a ampliação da escala de produção, com a maior facilidade de obtenção de terras, no caso do Brasil, e com o desenvolvimento técnico, é que surgiram as unidades de maior porte, com pavilhões residenciais separados dos locais de trabalho, as chamadas casas-grandes.

No caso da Baixada Santista e do Litoral Norte, onde não era possível a instalação de propriedades mais extensas e um número significativo de cultivadores de cana, a serviço dos principais engenhos, as propriedades seriam em geral de porte médio. A proximidade da Serra do Mar, em relação ao Litoral, estabelecia algumas restrições à expansão das áreas produtivas, que seriam por cento semelhantes, dentro de certos limites às condições da Ilha da Madeira.

Devemos admitir portanto que havia condições para favorecer a manutenção dos padrões das unidades mais simples, que reuniam em um único edifício as residências e locais de trabalho. Essa tendência se manteve provavelmente durante os séculos XVII e XVIII, no Litoral Norte, pois uma parte expressiva de sua população, chegada no século XVIII, comprovadamente é constituída por antigos moradores das ilhas do Atlântico.

Com base nessas observações, é possível examinar, com algum proveito, as informações disponíveis sobre a arquitetura dos engenhos da Baixada.

As ruínas do Engenho de São Jorge, sem dúvida o documento de maior importância, permitem reconhecer a presença de duas ou três formas de disposição na paisagem, presentes em estabelecimentos de épocas posteriores, sobretudo no Litoral Norte.

A primeira delas é a presença de um curso d'água, que permitiu a existência de um engenho real, isto é, movido a energia hidráulica, com uma roda d'água, de eixo horizontal. A segunda característica é a instalação do engenho sobre uma plataforma do terreno, ampliada pela construção de muros de arrimo, que lhe permitiam uma posição de domínio sobre a paisagem à sua frente. O Morro de Nova Cintra, imediatamente à retaguarda do engenho, seria na época coberto de vegetação mais densa, impossibilitando o ataque desse lado, pelos índios, com suas flechas.

Uma terceira característica é a presença, pouco abaixo, de um pequeno curso d'água, que seria navegável por canoas indígenas à época de sua fundação, facilitando desse modo o transporte da cana.

No que se refere às edificações, as conclusões são bem mais limitadas, antes que se concluam escavações arqueológicas. De qualquer modo, as interpretações sobre a disposição dos espaços e dos remanescentes construídos são sempre relativizadas, uma vez que há registros de um incêndio no local e de sua utilização posterior como curtume, sempre se podendo errar, por interpretar as obras de um período como sendo de outro.

As paredes mais grossas, em pedra, poderiam corresponder às instalações mais antigas. Mas não devemos esquecer que os desenhos de Frans Post nos mostram em Pernambuco, mais de um século após a fundação de São Jorge, um número grande de edificações muito simples, feitas com terra e madeira. Essas eram, sem dúvida, as técnicas mais simples de serem aplicadas com o aproveitamento da mão-de-obra indígena.

Por outro lado, é possível que o engenho do donatário possa ter tido no início uma feição de quase fortaleza, como uma ponta-de-lança, em um território ainda não efetivamente dominado. As informações referentes às edificações em São Vicente, inclusive cartas de Tomé de Souza, fazem referência a um número significativo de casas construídas em pedra.

Em sua correspondência, o governador-geral informava que nessa época as casas estavam de tal modo espalhadas em São Vicente, que não lhe foi possível protegê-las com um muro, como havia feito com todas as outras povoações, ao Sul de Salvador, à exceção de Santos e da própria São Vicente. Mas ressalvava que o risco não seria grande, porque as construções eram em sua maioria de pedra. Com muito maior razão, o donatário determinaria o uso do mesmo material, na construção do engenho de sua empresa.

Os remanescentes desse edifício são estudados por outros autores, o que nos dispensa de repetições. Suas ruínas não conservam detalhes arquitetônicos, que nos permitam uma comparação mais eficiente com outras informações. As mais gerais, referentes à sua disposição na paisagem, acima mencionadas, correspondem às de outras unidades, instaladas na extremidade do maciço montanhoso, que ocupa a parte central da Ilha de São Vicente. Também nesse caso, há informações de que teria sido aproveitada a energia de alguns pequenos cursos d'água, à retaguarda da nova vila.

Um pouco diversa era a implantação do engenho dos jesuítas, mais tarde transformado em registro, para controle do caminho de São Paulo. O edifício foi construído à margem do Rio Cubatão, no local em que tinha início o chamado Caminho do Padre José, cuja execução é atribuída ao padre Anchieta, em meados do século XVI.

As informações disponíveis indicam que esse engenho foi construído mais tarde, já no século XVII (Ferrez, 1981). O local foi registrado em dois magníficos desenhos por William Burchell, botânico inglês, no início de 1827. Neles aparece também a ponte sobre o Rio Cubatão, construída por Bernardo de Lorena, que se ligava ao aterro inaugurado, pouco antes, pelo primeiro governador da Província de São Paulo, Lucas Antônio Monteiro de Barros. Na área do registro acumulavam-se as tropas de muares e o local funcionava como um grande pouso, para os que iam iniciar a subida da serra e para os que haviam concluído a descida.

O desenho mostra uma residência de grande porte, para o local e para a época, com extrema simplicidade em seus acabamentos. As características permitem acreditar que as instalações do engenho propriamente dito ficassem ou em outro edifício ou em alguma extensão, que teria sido alterada com o tempo, pois o que vemos é basicamente uma grande residência. Na face voltada para o rio, há uma varanda a meia altura, com peitoril formado por pequenas paredes e não pelos balaústres de madeira tão comuns em outras edificações.

Esta forma de simplicidade, tipicamente pioneira, lembra alguns desenhos do próprio Burchell, que mostram na mesma época algumas regiões no caminho de Minas Gerais, a partir do Rio de Janeiro, que começavam a ser colonizadas. São sempre formas construtivas simples, semelhantes também a outros desenhos de casas rurais e de casas em pequenas aglomerações, em formação, como as que revelam desenhos de Tomas Ender, na raiz da serra, a partir da Guanabara, como a Fazenda da Mandioca.

São sempre os mesmos modelos, aplicados pelos portugueses em suas construções rurais mais simples, reveladas no inventário executado por um grupo de brilhantes arquitetos portugueses, em meados do século XX (Sindicato, 1961). Há sempre beleza do conjunto mas extrema simplicidade na solução dos detalhes, tratados sob um ponto de vista utilitário, com a solidez possível e igual facilidade de execução.

O engenho dos jesuítas, como nos é mostrado no desenho, ficava a poucos metros de um contraforte da serra, que provavelmente poderia lhe oferecer condições para execução de um canal para adução da água, que moveria as máquinas e atenderia aos serviços da casa e poderia se complementar por pequeno aqueduto, como no caso do Engenho Santana e tantos outros no Litoral Norte de São Paulo e em outras regiões do Brasil.

Essa é a mesma simplicidade encontrada na casa antiga do Engenho de Santana, em São Sebastião. Nesse caso, temos um sobrado, com poucas aberturas, e uma grande varanda no andar superior, com balaústres de madeira, muito simples, mas com um desenho elegante.

Os balaústres poderiam ser trabalho posterior, com característica de mais refinamento, porque o edifício, no seu conjunto e no seu balcão, lembra uma construção semelhante, que existiu em Salvador, no Porto das Vacas, Gamboa de Baixo, à beira de um pequeno cais de pedra, como o registra uma fotografia de cerca de 1870 (Ferrez, 1988, p. 118).

Mesmo nos centros urbanos, em locais de maior destaque, eram comuns essas construções de caráter puramente utilitário, com balcões de madeira e janelas protegidas com esteiras de taquara, as chamadas urupemas, como nos mostra o desenho do Mercado de Santa Bárbara, conservado ainda hoje no Arquivo Municipal de Salvador (Smith, 1955).

As varandas eram a nota mais comum, para assegurar a proteção contra o sol tropical e permitir o controle do trabalho nas áreas vizinhas. As imagens mais antigas são sempre semelhantes, como as dos engenhos pernambucanos, que comparecem nas paisagens de Frans Post.

Por essas informações, podemos comprovar que esse era o padrão no segundo século da colonização e seria, muito provavelmente, o padrão adotado nos 68 anos que o antecederam, a partir da fundação de São Vicente. Mas esse é também o padrão que se encontra em áreas de colonização nova, segundo nos comprovam os documentos referentes ao século XVIII e à primeira metade do século XIX, em várias regiões do Brasil.

Com alguns requintes de elegância, era esse o padrão adotado na casa do Engenho de Passassunga, em Pernambuco, segundo desenho existente nos arquivos do IPHAN. Era também o padrão adotado em várias casas rurais da região de São Sebastião e Ilhabela, na segunda metade do século XVIII e no início do século XIX, como comprovam os registros remanescentes, existentes em meados do século XX, antes de sua demolição ou descaracterização (Saia, 1972).

Nesses casos, os elementos de acabamento de madeira e algumas colunas, bem como os arremates de janelas e portas, poderiam se beneficiar de algum refinamento dos detalhes, comuns naquele período. Mas os procedimentos construtivos básicos eram os mesmos e as soluções arquitetônicas, até onde se pode comprovar, responderiam àqueles padrões, comuns às várias regiões.

É muito provável que as construções mais antigas, repetindo modelos da Ilha da Madeira, fossem de formato mais compacto, adequado para as limitações à expansão da cultura canavieira, naquela possessão portuguesa. No Brasil, com a vastidão de terras a serem conquistadas aos indígenas, haveria sempre a possibilidade de ampliação das áreas de cultura da cana, possibilitando a instalação de unidades industriais de maior porte.

Mas não havia apenas grandes proprietários. Frei Vicente de Salvador afirmava que, para cada grande proprietário, havia sempre cerca de dez plantadores de cana, de pequeno e médio porte, que levavam sua produção para ser moída nos engenhos das proximidades, como certamente seria o caso de São Jorge.

Ao longo de todo o litoral, as construções eram quase sempre em pedra. As mais importantes em alvenaria, como algumas das paredes do Engenho de São Jorge. A maioria era de uma alvenaria mais elementar, com pequenas peças de pedra, unificadas com massa de areia e cal de ostras, freqüentemente entremeadas por peças de tijolos de maiores dimensões que os atuais mas com pouca altura, como grandes lâminas, capazes de ajustar o nível das paredes. Essas técnicas construtivas davam às obras um caráter de robustez, que se acentuava pelo número limitado de vãos e pela simplicidade de seu enquadramento.

No estágio atual dos conhecimentos, com base na documentação disponível, essas são provavelmente algumas das conclusões possíveis, sobre as características dos engenhos da Baixada Santista, utilizando sobretudo informações sobre obras do século XVII. Podemos supor que essas fossem também as características do século anterior, quando foram fundadas quase todas as unidades da Baixada Santista.


Antigos sobrados na Gamboa de Baixo, Salvador

(*) Nestor Goulart Reis é professor de História da Urbanização da FAU-USP e autor de Memória do Transporte Rodoviário: Desenvolvimento das Atividades Rodoviárias (CPA/Saci).


NOTA DE RODAPÉ

[1] A data foi guardada de memória, podendo haver pequeno engano, para mais ou para menos.

BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, Aroldo. A Baixada Santista, São Paulo, Edusp, 1965
AZEVEDO, Gaspar Teixeira de (Frei Gaspar da Madre de Deus). Memórias para a História da Capitania de São Vicente. São Paulo, Martins, 1953.
CORDEIRO, José Pedro Leite. Engenho de São Jorge dos Erasmos. São Paulo, Gráfica Bentivegna, 1949.
FERREZ, Gilberto. Bahia: Velhas Fotografias, 1858-1900. Rio de Janeiro, Kosmos, 1988.
________, O Brasil do Primeiro Reinado Visto pelo Botânico William John Burchell - 1825/1829. Rio de Janeiro. Fundação João Moreira Sales, 1981.
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Os Trinta e Dois Companheiros de Martim Afonso e a Cidade de São Paulo. Ensaios Paulistas. São Paulo, Anhembi, 1958.
FURTADO, Alcebíades. "Os Schetz da capitania de São Vicente", in Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. São Paulo, 18, 1942, pp. 5-11.
GILIOLI, Ubyrajara, Santos, Largo e Colégio dos Jesuítas. São Paulo, 1983. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP.
LIPPMANN, Edmund von. História do Açúcar. Rio de Janeiro, Instituto do Açúcar e do Álcool, 1941.
MEURS, Paul. "Engenho São Jorge dos Erasmos: Estudos de Preservação", in Cadernos de Pesquisa do IAP. São Paulo, nº 7, FAU-USP, julho-agosto de 1995.
PETRONE, Maria Teresa Schoerer. A Lavoura Canavieira em São Paulo. São Paulo. Difusão Européia do Livro, 1968.
ROCHA FILHO, Gustavo Neves da. Levantamento Sistemático Destinado a Inventariar Bens Culturais do Estado de São Paulo. São Paulo, CONDEPHAAT, 1982.
_________, Relatório de Prorrogação do Estágio Experimental do RDIDP. Original no arquivo da FAU-USP, 1989.
SAIA, Luís. Morada Paulista. São Paulo. Perspectiva, 1972.
SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos, 1532-1936. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1937.
SILVA SOBRINHO, Antônio José da Costa. Santos em Outros Tempos, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1953.
SINDICATO NACIONAL DOS ARQUITECTOS, Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa, 1961.
SMITH, Robert C. Bahia, Arquitetura Colonial. Salvador, Progresso Ed., 1955.
SOMER, F. "Os Schetz da Antuérpia de São Vicente", in Revista do Arquivo Municipal, 9, São Paulo, 1943, pp. 75-86.