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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - AMARGO AÇÚCAR
Enganos históricos

O texto a seguir estava disponível, em 1996, em página Web do Centro de Estudos de História do Atlântico (Ceha), na Ilha da Madeira. Essa página não está mais acessível na Internet, mas foi arquivada por Novo Milênio, que resgata assim para o meio digital este estudo de Alberto Vieira:

O engenho de açúcar: alguns equívocos

Desde que em 1960 Frédéric Mauro publicou o desenho de um engenho brasileiro de dois cilindros ficou estabelecido que este seria o protótipo daquele para aí levado pelos madeirenses, sendo, por conseqüência, o usado na Madeira. Hoje é conhecido e sabido, na comunidade científica internacional, que este tipo de engenho, que se generalizou a partir do século dezasseis, é fruto de uma aportação da tecnologia chinesa, certamente transmitida por via dos portugueses. Até lá o Ocidente adoptou o sistema utilizado para a moagem da azeitona. E foi este sistema que chegou à Madeira no séc. XV, sendo retratado de modo evidente em 1539 por Giulio Landi.

Desde finais do século dezanove, com o estudo de Ed. von Lippmann (1890), foi defendido que o primeiro engenho de dois cilindros foi inventado pelo siciliano Pietro Speciale em 1449, tendo-se expandido por todo o Ocidente. Todavia esta tese resulta de um equívoco do autor, que interpretou incorrectamente os textos de Pietro Ranzano (1471) e Gaspar Panebianco (1826), como nos esclarece Moacyr Soares Pereira (1955). Mesmo assim persiste uma corrente de opinião que aponta a expansão do engenho de dois cilindros a partir do Mediterrâneo, sendo aquele construído por Diogo Teive em 1452 associado a esta tradição.

Moenda chinesa em ilustração de 1637

Estudos recentes vêm confirmar que o sistema de cilindros é originário da China, onde foi utilizado, primeiro no fabrico de algodão e só depois se generalizou à cana sacarina. Jock Galloway é um dos actuais especialistas da temática, que mais defende esta aportação chinesa ao Ocidente, por via dos portugueses, a partir do século dezasseis. Mais recente é o estudo de John Daniels (publicado em "Technology and Culture", 1988) onde o autor coloca à nossa disposição todas as teorias sobre a origem e evolução do engenho de açúcar. Segundo ele ao engenho de dois cilindros são apontada várias origens: ilhas atlânticas (Madeira e Canárias), Hispaniola, Marrrocos, Itália (Leonardo da Vinci) e, åsia.

Na China o engenho de dois cilindros foi utilizado, desde o século XII, no fabrico de açúcar: no começo a disposição dos cilindros de moagem era vertical movidos pela tracção animal, surgindo, a partir do século XVI, horizontal para ser adaptado à força motriz da água. O primeiro sistema foi também utilizado no Norte da Índia na cultura do algodão, tendo chegado depois ao Sul, a Goa, por exemplo. Foi este último protótipo que chegou aos canaviais do atlântico, a partir de princípios do século dezasseis. O primeiro está documentado em 1534 no México.

A partir daqui surgiram as grandes inovações nesta estrutura, que proporcionaram um maior aproveitamento do suco da cana e uma mais rápida realização das tarefas da moenda. O aparecimento do sistema de três cilindros (primeiro na China em 1590 e, depois no Peru e México desde 1600, tendo os jesuítas como possíveis difusores) foi a resposta desejada para o avanço desta indústria.

Lamentavelmente na Madeira e Canárias não existe qualquer desenho ou descrição que testemunhe, com clareza, como eram os engenhos de açúcar nos séculos XV e XVI. Todavia por alguns dados soltos da documentação é possível concluir que eles seguiram a tradição mediterrânica. Giulio Landi que, aquando da sua visita à Madeira, cerca de 1530, tomou contacto com os engenhos funchalenses em laboração, é o mais importante testemunho. É dele também a mais antiga e pormenorizada descrição sobre o fabrico do açúcar no espaço atlântico. Ao contrário do que se possa pensar, Giulio Landi não refere o engenho de cilindros, mas sim o sistema da mó olearia: "as canas... poem-nas debaixo de uma MÓ movida a água, a qual, triturando e esmagando as canas, extrai-lhes todo o suco".

David F. Gouveia, em estudo recente, refere que na Madeira foram usados três tipos de engenhos: alçapremas, trapiches e engenhos de água. Todavia vimos sempre os dois últimos associados às alçapremas ou prensas, pois era aí que o bagaço era espremido para deitar a última gota de garapa. Aliás os árabes definiam o engenho por dois componentes: "massara" (prensa) e "hajar" (pedra da moenda). O mesmo autor afirma (sem sabermos como, uma vez que não se conhece qualquer descrição) que o primeiro engenho de cilindros movido a água teria sido o de Diogo de Teive.

Cilindros verticais usados na China em 1637 já eram conhecidos na Índia desde 1590
FONTE: J. Nedham, Science & Civilisation in China, 1996
Se considerarmos a descrição de Landi como um testemunho fidedigno será difícil de questionar as referências avulsas da documentação que atestam o uso de eixos nos engenhos a partir de 1485. Mas será mesmo eixo sinónimo de cilindro nesta época? Esta não é uma questão pacífica, pois tem gerado algum debate por John Daniels e Jean-Pierre Berthe (1959). O primeiro a identificar eixos com cilindros foi Moacir Soares Pereira, baseando-se no texto clássico de Antonil, datado de 1711.

Quanto à combinação da prensa com o engenho, é de salientar que ela se manteve na ilha e foi levada para o Novo Mundo, sendo depois relegada para segundo plano com a plena afirmação do engenho de cilindros. Este, com apenas dois cilindros, ou três, conseguia retirar até à última gota da garapa apenas com uma ou duas moendas. Na Madeira, dos poucos engenhos que temos notícia com a descrição das peças - Rui Dias de Aguiar (1545) e António Teixeira (1535) - esta situação está documentada.

O engenho de cilindros surgiu na nossa ilha, por via da China ou do Brasil, mercê dos contactos assíduos com estes destinos. Mas ele só será útil aquando do novo surto da economia açucareira na primeira metade do século XVII.

Novo Milênio promoveu uma revisão do texto, notadamente ajustando a pontuação e a divisão em parágrafos, mantendo quanto possível a forma lusitana de grafia do original.