Manifesto do Partido Republicano dirigido à Nação em 1870
O admirável documento com que se iniciou a propaganda republicana no Brasil, e no qual
se corporificou uma análise sincera e minuciosa do regime monárquico, denunciando os seus males e alvitrando a forma de corrigi-los por meio de uma
república democrática
O documento que aqui publicamos, nestas páginas
dedicadas à comemoração do Cinqüentenário da República, é o manifesto republicano de 1870, redigido na base da primitiva agremiação dos elementos
republicanos, até então dispersos.
Prestamos aqui uma homenagem ao grande jornalista Quintino Bocayuva, redator destas
páginas serenas e elevadas, com que o Partido Republicano deu início à sua campanha de propaganda das idéias republicanas.
É notável, para o tempo, um documento como este. Nele se inverte uma concepção
inteiriça da democracia, tendo em vista um sistema republicano para a sua época. Mesmo sem se fazer praça de saudosismo, há que ver nestas páginas,
densas de argumentação, um robusto pensamento político, cuja vitalidade não se estiolou, em muitos de seus variados aspectos, pela ação do tempo e
pela evolução das idéias.
Entregamos nesse documento, aos nossos leitores, um dos mais claros elementos com que
se pode atingir a plena compreensão dos imperativos políticos que determinaram o movimento republicano. É um dos mais patrióticos e vibrantes
estudos da realidade política brasileira no século passado (N.E.: século XIX), até a
República. Muitos de seus princípios, e muitas das suas verdades, não perderam a atualidade, acima dos tempos e dos regimes.
O manifesto foi publicado na A República, o primeiro órgão da propaganda, a 3
de dezembro de 1870. Era o resultado da obra do núcleo inicial de 15 elementos, que em meados desse ano fundara o primeiro clube republicano. Só
dois anos depois, em S. Paulo, seria fundada a mais importante célula da organização partidária republicana. Em abril de 1873 reúnem-se a Convenção
de Itu e um Congresso Republicano na capital do Estado.
"É a voz de um partido a que se alça hoje para falar ao país. E esse partido não
carece demonstrar a sua legitimidade. Desde que a reforma, a alteração ou revogação da carta outorgada em 1824, esta por ela mesma prevista e
autorizada, é legítima aspiração que hoje se manifesta para buscar em melhor origem o fundamento dos inauferíveis direitos da nação.
Só à opinião nacional cumpre acolher ou repudiar essa aspiração. Não reconhecendo nós
outra soberania mais do que a soberania do povo, para ela apelamos. Nenhum outro titular pode julgar-nos; nenhuma outra autoridade pode interpor-se
entre ela e nós.
Como homens livres e essencialmente subordinados aos interesses da nossa pátria, não é
nossa intenção convulsionar a sociedade em que vivemos. Nosso intuito é esclarecê-la.
Em um regime de compressão e violência, conspirar seria o nosso direito. Mas no regime
das ficções e da corrupção em que vivemos, discutir é o nosso dever.
As armas da discussão, os instrumentos pacíficos da liberdade, a revolução moral, os
amplos meios do direito postos ao serviço de uma convicção sincera bastam, no nosso entender, para a vitória da nossa causa, que é a causa do
progresso e da grandeza da nossa pátria.
A bandeira da democracia, que abriga todos os direitos, não repele por erros ou
convicções passadas, as adesões sinceras que se lhe manifestam. A nossa obra é uma obra de patriotismo e não de exclusivismo e aceitando a
co-participação de todo o concurso leal, repudiamos a solidariedade de todos os interesses ilegítimos.
Exposição de motivos - Uma longa e dolorosa experiência há doutrinado ao povo,
aos partidos e aos homens públicos em geral de nossa terra.
A imprevidência, as contradições, os erros e as usurpações governamentais, influindo
sobre os negócios internos e externos de nossa pátria, hão criado esta situação deplorável, em que as inteligências e os caracteres políticos
parecem fatalmente obliterados como por um funesto eclipse.
De todos os ângulos do país surgem as queixas, de todos os lados políticos surgem os
protestos e as revelações estranhas que denunciam a existência de um vício grave, o qual pôs em risco a sorte da liberdade, pela completa anulação
do elemento democrático.
O perigo está indicado e é manifesto. Sente-se a seção do mal e todos apontam a origem
dele. E quanto maior seja o empenho dos que buscam ocultar a causa na sombra de uma prerrogativa privilegiada e quase divina, tanto maior deve ser
nosso esforço para espancar essa sombra e fazer luz sobre o mistério que nos rodeia.
As condições da luta política hão variado completamente de certo tempo a esta parte.
Já não são mais os partidos regulares que pleiteiam, no terreno constitucional, as suas idéias e os seus sistemas. São todos os partidos que se
sentem anulados, reduzidos à impotência e expostos ao desdém da opinião pela influência permanente de um princípio corruptor e hostil à liberdade e
ao progresso de nossa pátria.
Os agentes reconhecidos pela lei fogem à censura pela alegação da força superior que
os avassala.
A seu turno, o elemento acusado retrai-se à sombra da responsabilidade dos agentes
gerais.
Em tais condições, e abandonando a questão dos nomes próprios, que é mesquinha ante a
grandeza do mal que nos assoberba, e ante a idéia que nos domina, apresentamo-nos nós, responsabilizando diretamente a nossa forma de governo, ao
nosso modo de administração, ao nosso sistema social e político.
Neste país, que se presume constitucional e onde só deverão ter ação poderes
delegados, responsáveis, acontece, por defeito do sistema, que só há um poder ativo omnimodo, onipotente, perpétuo, superior à lei, e à opinião, e
esse é justamente o poder sagrado, inviolável e irresponsável.
O privilégio, em todas as suas relações com a sociedade - tal é em síntese, a fórmula
social e política de nosso país - privilégio de religião, privilégio de raça, privilégio de sabedoria, privilégio de posição, isto é, todas as
distinções arbitrárias e odiosas que criam no seio da sociedade civil e política a monstruosa superioridade de um sobre todos ou de alguns sobre
muitos.
A esse desequilíbrio de forças, a essa pressão atrofiadora, deve o nosso país a sua
decadência moral, a sua desorganização administrativa e as perturbações econômicas que ameaçam devorar o futuro depois de haverem arruinado o
presente.
A sociedade brasileira, após meio século de existência, como coletividade nacional
independente, encontra-se hoje, apesar disso, em face do problema da sua organização política, como se agora surgisse do caos colonial.
As tradições do velho regime, aliadas aos funestos preconceitos de uma escola política
meticulosa e suspicaz, que só vê nas conquistas morais do progresso e da liberdade invasão perigosa, para quem cada vitória dos princípios
democráticos se afigura uma usurpação criminosa, hão por tal forma trabalhado o espírito nacional, confundindo todas as noções do direito moderno,
anarquizado todos os princípios tutelares da ordem social, transformado todas as consciências, corrompido todos os instrumentos do governo,
sofismado todas as garantias de liberdade civil e política, que o momento atual tem de ser forçosamente - ou a aurora da regeneração nacional ou o
ocaso total das liberdades públicas.
Processo histórico - Para bem apreciar as causas que hão concorrido para o
relaxamento moral que se observa, e conhecer-se até que ponto a idéia do direito foi desnaturada e pervertida, é necessário remontar à origem
histórica da fundação do Império.
Iniciado o pensamento da emancipação do Brasil, o despotismo colonial procurou desde
logo surpreender, em sua emboscada política, a revolução que surgia no horizonte da opinião. Disfarçar a forma mantendo a realidade do sistema que
se procurava abolir, tal foi o intuito da monarquia portuguesa.
Para isso, bastou-lhe uma ficção - substituir a pessoa, mantendo a mesma autoridade, a
quem faltava a legitimidade e o direito.
Nos espíritos, a independência estava feita pela influência das idéias revolucionárias
do tempo e pela tradição ensangüentada dos primeiros mártires brasileiros. Nos interesses e nas relações econômicas, na legislação e na
administração, estava ela também feita por influência dos acontecimentos que forçaram a abertura de nossos portos ao comércio dos pavilhões
estrangeiros e à desligação dos funcionários aqui estabelecidos.
A democracia pura, que procurava estabelecer-se em toda a plenitude de seus
princípios, a santidade de suas doutrinas, sentiu-se atraiçoada pelo consórcio falaz da realeza aventureira. Se ela triunfasse, como deveria ter
acontecido, resguardando ao mesmo tempo as garantias do presente e as aspirações do futuro, ficaria quebrada a perpetuidade da herança que o rei de
Portugal queria garantir à sua dinastia.
Entre a sorte do povo e a sorte da família, foram os interesses dinásticos os que
sobrepujaram os interesses do Brasil. O rei de Portugal, arreceando-se da soberania democrática, qualificando-a de invasora e aventureira, deu-se
pressa em lecionar o filho na teoria da traição.
O voto do povo foi dispensado. A fórmula da aclamação fictícia preteria a sanção da
soberania nacional, e a graça de Deus, impiamente aliada à vontade astuciosa do rei, impôs com o império o imperador que o devia substituir.
O artifício era grosseiro. Cumpria disfarçá-lo. A "unânime aclamação dos povos"
carecia de corroboração nacional; a voz de uma constituinte foi convocada.
A missão dessa primeira assembléia nacional era árdua e solene. Assomando no horizonte
político, tinha mais que uma nação para constituir, tinha um réu para julgar. A luta pronunciou-se, porque era inevitável. O intuito da realeza
sentiu-se burlado: o que ela pretendia era um ato de subserviência. A atitude da assembléia foi para ela uma surpresa.
Preexistindo a opinião, e havendo se constituído sem dependência do voto popular, não
lhe convinha mais do que a muda sanção da sua usurpação; e nunca a livre manifestação da vontade do país.
A Constituinte foi dissolvida à mão armada, os representantes do povo dispersos,
proscritos e encarcerados.
A espada vitoriosa da tirania cortou assim violentamente o único laço que a podia
prender à existência nacional, e envenenou a única fonte que lhe podia emprestar o batismo da legitimidade.
À consciência dos réprobos chega também a iluminação dos remorsos: o próprio receio,
se nem sempre traz o arrependimento, presta ao menos à intuição do perigo. Cumpria iludir a opinião indignada e dolorosamente surpreendida. As
idéias democráticas tinham já então bastante força para que fossem desdenhosamente postergadas. A dissimulação podia até certo ponto suavizar a
rudeza do golpe.
A força armada, já destra nas manobras do despotismo, tranqüilizava o ânimo do monarca
quanto à veemência das paixões que pudessem prorromper. A carta constitucional foi outorgada. E para que ainda um simulacro de opinião lhe
emprestasse a força moral, foram os agentes do despotismo os próprios encarregados de impô-la à soberania nacional, sob a forma de juramento
político.
Tal a lei que se diz fundamental. Com ela, formou-se o império. Mescla informe de
princípios heterogêneos e de poderes que todos se anulam diante da única vontade que sobre todos impera, é ela a base da monarquia temperada pela
graça de Deus que nos coube em sorte.
Há 48 anos que o grande crime foi cometido; é dessa data em diante que se pode contar
a hégira da liberdade entre nós, que começou também esse trabalho longo e doloroso que tem exaurido as forças nacionais, no empenho infrutífero de
conciliar os elementos contraditórios e irreconciliáveis sobre que repousa toda a nossa organização artificial.
A revolução de 7 de abril, que pôs termo ao primeiro reinado, pela nobreza de seus
intuitos, pela consciência dos males sofridos, pela experiência de desastres, que anularam, no exterior, o prestígio da nossa pátria e no interior
todas as garantias civis e políticas do cidadão, estava destinada a resgatar a liberdade, a desafrontar a democracia ultrajada e a repor sobre os
seus fundamentos naturais o edifício constitucional.
A legislação do período da regência, apesar de haver sido truncada, desnaturada ou
revogada, atesta ao mesmo tempo a elevação do pensamento democrático e o seu ardente zelo pela consolidação das liberdades públicas. Enquanto, fora
da influência da realeza, os governos se inspiraram na fonte da soberania nacional, os interesses da pátria e os direitos do cidadão pareceram achar
melhor garantia e resguardo.
Cidadãos eminentes, nobilíssimos caracteres, almas robustas e sinceramente devotadas à
causa do país, empregaram durante esse período grandes, nobres, mas infrutíferos esforços. Se o sistema contivesse em si a força que só a vontade
empresta, se a vontade dos homens pudesse ser eficaz contra a influência dos princípios falsos, a causa do país houvera sido salva.
A ineficácia da revolução comprova-se pelo vício orgânico das instituições deficientes
para garantir a democracia e unicamente eficazes para perpetuar o prestígio e a força do poder absoluto.
A demonstração oferece-a a própria reação efetuada de 1837 em diante.
A conspiração da maioridade, coincide com a obra de reação; procurou-se apagar da
legislação até os últimos vestígios do elemento democrático que tentara expandir-se. A lei de 3 de dezembro de 1841, que confiscou praticamente a
liberdade individual, é o corolário da lei de interpretação do ato adicional, a qual seqüestrou a liberdade política, destruindo por um ato
ordinário a deliberação do único poder constituído que tem existido no Brasil.
Assim, pois, anulada a soberania nacional, sofismadas as gloriosas conquistas que
pretenderam a revolução da independência em 1822 e a revolução da democracia em 1831, o mecanismo social e político, sem o eixo em que devia girar -
isto é, a vontade do povo, ficou girando em torno de um outro eixo - a vontade de um homem.
A liberdade aparente e o despotismo real, a forma dissimulando a substância, tais são
os característicos da nossa organização constitucional.
O primeiro como o segundo reinado são por isso semelhantes.
O sofisma em ação - O último presidente do conselho de ministros do
ex-imperador dos franceses, em carta aos seus eleitores, deixou escapar a seguinte sentença: "A perpetuidade do
soberano, embora unida à responsabilidade, é uma coisa absurda; mas a perpetuidade unida à irresponsabilidade é uma coisa monstruosa".
Nesta sentença se resume o processo do nosso sistema de governo.
Por ato próprio, o fundador do Império e chefe da dinastia reinante se consagrou
inviolável, sagrado e irresponsável. A infalibilidade do arbítrio pessoal substituiu assim a razão e a vontade coletiva do povo brasileiro.
Que outras condições, em diverso regime, constituem o despotismo?
Quando não fossem bastantes esses atributos de supremacia, as faculdades de que se
acha investido o soberano pela carta outorgada em 1824 bastavam para invalidar as prerrogativas aparentes com que essa carta simulou garantir as
liberdades públicas.
O poder intruso que se constituiu chave do sistema, regulador dos outros poderes,
ponderador do equilíbrio constitucional, avocou a si e concentrou em suas mãos toda a ação, toda a preponderância. Nenhuma só das pretendidas
garantias democráticas se encontram sem o corretivo ou a contradição que a desvirtua e nulifica.
Temos representação nacional?
Seria esta a primeira condição de um país constitucional, representativo. Uma questão
preliminar responde à interrogação. Não há, nem pode haver, representação nacional onde não há eleição livre, onde a vontade do cidadão e a sua
liberdade individual estão dependendo dos agentes imediatos do poder que dispõe da força pública.
Militarizada a nação, arregimentada ela no funcionalismo dependente, na Guarda
Nacional, pela ação do recrutamento ou pela ação da polícia, é ilusória a soberania, que só pode revelar-se sob a condição de ir sempre de acordo
com a vontade do poder.
Ainda quando não prevalecessem essas condições, ainda quando se presumisse a
independência e a liberdade na escolha dos mandatários do povo, ainda quando ao lado do poder que impõe pela força não existisse o poder que
corrompe pelo favoritismo, bastava a existência do poder moderador com as faculdades que lhe dá a carta, com o "veto" secundado pela dissolução,
para nulificar de fato o elemento democrático.
Uma câmara de deputados demissível à vontade do soberano, e um senado vitalício à
escolha do soberano, não podem constituir de nenhum modo a legítima representação do país.
A liberdade de consciência nulificada por uma igreja privilegiada, a liberdade
econômica suprimida por uma legislação restritiva, a liberdade da imprensa subordinada à jurisdição de funcionários do governo; a liberdade de
associação dependente do beneplácito do poder; a liberdade do ensino suprimida pela inspeção arbitrária do governo e pelo monopólio oficial; a
liberdade individual sujeita à prisão preventiva, ao recrutamento, à disciplina da guarda nacional, privada da própria garantia do "habeas-corpus",
pela limitação estabelecida, tais são, praticamente, as condições reais do atual sistema de governo.
O poder soberano, privativo, perpétuo e irresponsável, forma a seu jeito o poder
executivo, escolhendo os ministros, o poder legislativo, escolhendo os senadores e designando os deputados, e o poder judiciário, nomeando
magistrados, removendo-os, aposentando-os.
Tal é, em essência, o mecanismo político da carta de 1824, tais são os sofismas por
meio dos quais o imperador reina, governa e administra.
Deste modo, qual é a delegação nacional? Que poder representa? Como pode ser a lei a
representação da vontade do povo? Como podem coexistir com o poder absoluto que tudo domina, os poderes independentes de que fala a carta?
A realidade é que, se em relação à doutrina, as contradições sufocam o direito, em
relação à prática, só o poder pessoal impera, sem contestação nem corretivo.
Consenso unânime - À democracia acusam-na de intolerante, irritável, exagerada
e pessimista. Suspeita aos olhos da soberania, que pretende ser divina, os seus conceitos são inquinados de malevolência e prevenção. É justo em tão
melindrosa questão buscar em fontes insuspeitas as sentenças que apóiam as nossas convicções.
Para corroborá-las, temos o juízo severo de homens eminentes do país, de todas as
crenças e matizes políticos.
Nenhum estadista, nenhum cidadão que tenha estudado os negócios públicos, deixa de
compartilhar conosco a convicção que manifestamos sobre a influência perniciosa do poder pessoal.
Todos somos concordes em reconhecer e lamentar a prostração moral a que nos arrastou o
absolutismo prático, sob as vestes do liberalismo aparente.
Eusébio de Queiroz, monarquista extremado, chefe proeminente do Partido Conservador,
foi uma vez ministro, no atual reinado, e não mais consentiu em voltar a essa posição, apesar das circunstâncias e solicitações reiteradas do seu
partido. "Neste país, dizia ele, não se pode ser ministro
duas vezes".
Firmino Silva, dando conta da morte deste distinto brasileiro, escreveu no Correio
Mercantil, de 10 de maio de 1868, as seguintes palavras: "Inopinadamente deixou o ministério e se retirou 'isoladamente';
e sempre que se ofereceu ocasião de assumir a governação, se esquivava, 'com inquietação dos que o conheciam'. Há convicções tão inabaláveis
'que preferem o silêncio que sufoca ao desabafo que pode pôr em perigo um princípio'".
D. Manoel de Assis Mascarenhas, caráter severo e digno, manifestou no Senado o seu
profundo desgosto pelo que observava, nos seguintes termos: "Quando a inteligência, a virtude, os serviços, são
preteridos e postos de parte; quando os perversos são galardoados com empregos eminentes, pode-se afoitamente exclamar com Sêneca: 'Morreram os
costumes, o direito, a honra, a piedade, a fé e aquilo que nunca volta quando se perde - o pudor'".
Nabuco de Araújo, conhecido e prático no governo, disse na Câmara Vitalícia, por
ocasião da ascensão do gabinete de 16 de julho: "O poder moderador não tem o direito de despachar ministros como
despacha delegados e sub-delegados de polícia. Por sem dúvida, vós não podeis levar a tanto a atribuição que a Constituição confere à coroa de
nomear livremente os seus ministros; não podeis ir até o ponto de querer que nessa faculdade se envolva o direito de fazer política sem a
intervenção nacional, o direito de substituir situações como vos aprouver.
"Ora, dizei-me, não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiro absolutismo, no estado
em que se acham as eleições no país? Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo: - o poder moderador
pode chamar a quem quiser para organizar ministérios, esta pessoa faz a eleição por que há de fazê-la: esta eleição faz a maioria. Eis aí está o
sistema representativo do nosso país!".
Francisco Octaviano, quando redator do Correio Mercantil, por mais de uma vez
estigmatizou em termos enérgicos o poder pessoal que se ostenta e as inconveniências que de semelhante poder resultam à nação.
Sayão Lobato e o mesmo Firmino Silva escreveram no Correio Mercantil, cuja
redação estava a seu cargo, as verdades seguintes:
"Quem de longe examinar as instituições brasileiras pelos
efeitos da perspectiva, quem contentar-se em observar o majestoso frontispício do templo constitucional, suas inscrições pomposas, sua arquitetura
esplêndida, há de, sem dúvida, exclamar: 'Eis aqui um povo que possui a primeira das condições do progresso e da grandeza'".
Aquele, porém, que um dia estender o campo de observação até o interior do edifício,
na esperança de aí admirar a realização dos elementos de felicidade que as formas ostensivas do governo afiançam, e o regime de liberdade tem
desenvolvido, exclamará: "Que decepção!"
Sob a influência do visconde de Camaragibe, Pinto de Campos e outros monarquistas por
excelência, foi publicado em Pernambuco, no Constitucional, em 1868, o seguinte:
"O governo, a nefasta política do governo do imperador,
foi que criou esse estado desesperador em que nos achamos... política de proscrição, de corrupção, de venalidade e de cinismo... um tal governo não
é o da nação, é o governo do imperador pelo imperador...". "À proporção que o poder se une
nas mãos de um só, a nação se desune e divide".
O Diário do Rio de Janeiro, escrito sob as inspirações do barão de Cotegipe,
dizia no mesmo ano: "Tudo está estremecido: a ordem e a liberdade. Se o presente aflige, o futuro assusta".
O mesmo Diário, e sob a inspiração dos mesmos homens, dizia eloqüentemente em referência às insidiosas palavras "harmonia dos brasileiros":
"A harmonia imposta é a paz de Varsóvia ou a obediência
dos turcos. Não pode haver harmonia entre os usurpadores e usurpados, entre algozes e vítimas. Se os oprimidos suportam, chamai-os resignados. Se
não promovem a reivindicação, chamai-os covardes. Mas, em respeito a Deus, que tudo vê, não chamais harmonia dos brasileiros o desprezo das leis, a
ditadura disfarçada, a desgraça privada, o rebaixamento da dignidade nacional".
Silveira da Mota disse no Senado, em 1859:
"As práticas constitucionais enfraquecem-se todos os
dias; o regime representativo tem levado golpes tremendos, a depravação do sistema é profunda. No país o que há somente é a forma do governo
representativo: a substância desapareceu. Tente-se abrir essa chaga da nossa sociedade e ver-se-á que no Brasil o regime constitucional 'é mera
formalidade!'".
Ainda este ano, e nessa mesma casa do parlamento, acrescentou ele: "Cheguei
à convicção de que o vício não está nos homens, está nas instituições".
Francisco Octaviano, Joaquim Manoel de Macedo e outros, que em 1868 dirigiam o
Diário do Povo, publicaram um artigo editorial em que se lia o seguinte:
"São gravíssimas as circunstâncias do país. No exterior
arrasta-se uma guerra desastrada... No interior um espetáculo miserando. Fórmulas aparentes de um governo livre, 'última homenagem' que a
hipocrisia rende ainda à opinião do século: as grandes instituições políticas anuladas e a sua ação constitucional substituída por um arbítrio
disfarçado.
"Para nós há uma só causa capital, dominante... esta causa não é outra senão a 'cega
obstinação' com que desde anos 'ora às ocultas, ora às claras, se trabalha por extinguir os partidos legítimos sem cuja ação o sistema
representativo se transforma no pior dos despotismos, no despotismo simulado'. Chegadas as coisas a este ponto, está virada a pirâmide: 'o
movimento parte de cima; quem governa é a coroa...'".
Em 21 de julho do mesmo ano, dizia o mesmo jornal: "César
passou o Rubicon. Começa o período da franqueza... preferimos a franqueza à dissimulação. Tínhamos medo do absolutismo atraiçoador, que escondia as
garras no manto da constituição, absolutismo chato, burguês, deselegante. Mas o absolutismo que não teme a luz não nos mete medo".
A 24 de julho de 1867, o Diário de São Paulo, órgão do Partido Conservador
naquela província, sob a redação de João Mendes de Almeida, Antonio Prado, Duarte de Azevedo e Rodrigo Silva, sob o título "O baixo império",
escrevia o seguinte:
"Haverá ainda quem espere alguma coisa do sr. Pedro II?
Para o monarca brasileiro só há uma virtude, o servilismo. Para os homens independentes e sinceros, o ostracismo: para os lacaios e instrumentos de
sua grande política - os títulos e as condecorações!".
José de Alencar, antes de ser ministro, escrevia: "O que
resta do país? O povo inerte, os partidos extintos, o Parlamento decaído!". Depois que deixou o ministério e com a
experiência adquirida nos Conselhos da Coroa, disse:
"Há com efeito uma coisa que perturba em nosso país o
desenvolvimento do sistema representativo, fazendo-nos retrogradar além dos primeiros tempos da monarquia. É um princípio latente, conhecido apenas
por aqueles que penetraram os arcanos do poder: a opinião ignorava a existência desse princípio de desorganização. Por muito tempo duvidamos do
fato.
"Hoje, porém, ele está patente, o governo pessoal se ostenta a todo o instante, e nos
acontecimentos de cada dia. Parece que perdeu a timidez ou modéstia de outrora, quando se recatava com estudada reserva. Atualmente faz garbo de seu
poder; e se acaso a responsabilidade ministerial insiste em envolvê-lo no manto das conveniências, acha meio de romper o véu e mostrar-se a
descoberto. Como um pólipo monstruoso, o governo pessoal invade tudo, desde as transcendentes questões da alta política, até as nugas da pequena
administração".
Antonio Carlos, o velho, no primeiro ano do atual reinado, na discussão da lei de 3 de
dezembro, já dizia: "O princípio regulador de um povo livre, é governar-se por si mesmo; a nova organização judiciária
exclui o povo brasileiro do direito de concorrer à administração da justiça; tudo está perdido, senhores, abdicamos da liberdade para entrarmos na
senda dos povos possuídos!".
O próprio barão de São Lourenço teve a franqueza de dizer no Senado: "A
força e o prestígio que com tanto trabalho os partidos tinham ganho para o governo do país, estão mortos. As províncias perderam a fé no governo do
império".
Tal é a situação do país, tal é a opinião geral emitida no Parlamento, na imprensa,
por toda a parte.
A federação - No Brasil, antes ainda da idéia democrática, encarregou-se a
natureza de estabelecer o princípio federativo. A topografia do nosso território, as zonas diversas em que ele se divide, os climas vários, as
produções diferentes, as cordilheiras e as águas, estavam indicando a necessidade de modelar a administração e o governo local, acompanhando e
respeitando as próprias divisões criadas pela natureza física e impostas pela imensa superfície de nosso território.
Foi a necessidade que demonstrou desde a origem a eficácia do grande princípio que
embalde a força compressora do regime centralizador tem procurado contrafazer e destruir.
Enquanto colonial, nenhum receio salteava o ânimo da monarquia portuguesa, por assim
repartir o poder que delegava aos vassalos diletos ou preferidos. Longe disso, era esse o meio de manter, com a metrópole, a unidade severa do mundo
absoluto.
As rivalidades e conflitos que rebentavam entre os diferentes delegados do poder
central, enfraquecendo-se e impedindo a solidariedade moral quanto às idéias e a solidariedade administrativa, quanto aos interesses e as forças
disseminadas, eram outras tantas garantias de permanência e solidez para o princípio centralizador e despótico. A eficácia do método havia já sido
comprovada por ocasião do movimento revolucionário de 1787, denominado: "a inconfidência".
Nenhum interesse, portanto, tinha a monarquia portuguesa, quando se homiziou no
Brasil, para repudiar o sistema que lhe garantia, com a estrangulação dos patriotas revolucionários, a presa. A divisão política e administrativa
permaneceu, portanto, a mesma, na essência, apesar da transferência da sede da monarquia para as plagas brasileiras.
A independência proclamada oficialmente em 1822 achou e respeitou a forma da divisão
colonial.
A idéia democrática, representada pela primeira constituinte brasileira, tentou, é
certo, dar ao princípio federativo todo o desenvolvimento que ele comportava e de que carecia o país para marchar e progredir. Mas a dissolução da
Assembléia Nacional, sufocando as aspirações democráticas, cerceou o princípio, desnaturou-o, e a carta outorgada em 1824, mantendo o status quo
da divisão territorial, ampliou a esfera da centralização, pela dependência em que colocou as províncias e os seus administradores do poder intruso
e absorvente, chave do sistema que abafou todos os respiradouros da liberdade, enfeudando as províncias à corte, à sede do único poder soberano que
sobreviveu à ruína da democracia.
A revolução de 7 de abril de 1831, trazendo à superfície as idéias e as aspirações
sufocadas pela reação monárquica, deu novamente azo ao princípio federativo para manifestar-se e expandir-se.
A autonomia das províncias, a sua desvinculação da corte, a livre escolha dos seus
administradores, as suas garantias legislativas, por meio das assembléias provinciais, o alargamento da esfera das municipalidades, essa
representação resumida da família política, à livre gerência de seus negócios, em todas as relações morais e econômicas desse período de
reorganização social, claramente formuladas ou esboçadas nos projetos e nas leis que formaram o assunto das deliberações do governo e das
assembléias desse tempo.
A reação democrática não armou somente os espíritos para essa luta grandiosa.
A convicção de alguns e o desencanto de muitos, fazendo fermentar o levedo dos ódios
legados pela monarquia que se desnacionalizara, a ação irritante do partido restaurador desafiando a cólera dos oprimidos na véspera, armou também o
braço de muitos cidadãos e a revolução armada pronunciou-se em vários pontos do país, sob a bandeira das franquias provinciais.
Desde 1824 até 1848, desde a federação do Equador até a revolução de Pernambuco,
pode-se dizer que a corrente elétrica, que perpassou pelas províncias, abalando o organismo social, partiu de um só foco - o sentimento da
independência trocou a idéia da federação, o pensamento da autonomia provincial.
A obra da reação monárquica, triunfante em todos os combates, pode, até hoje, a favor
do instinto pacífico dos cidadãos, adormecer o elemento democrático, embalando-o sempre com a esperança de seu próximo resgate.
Mas ainda quando, por sinais tão evidentes, não se houvesse já demonstrado a exigência
das província quando é esse interesse superior, a ordem das coisas que prepondera não pode deixar de provocar o estigma de todos os patriotas
sinceros. A centralização, tal qual existe, representa o despotismo da força ao poder pessoal que avassala, estraga e corrompe os caracteres,
perverte e anarquiza os espíritos, comprime a liberdade, constrange os cidadãos, subordina o direito de todos ao arbítrio de um só poder, multiplica
de fato a soberania nacional, mata o estímulo do progresso local, suga a riqueza peculiar das províncias, constituindo-as satélites obrigados do
grande astro da corte - centro absorvente e compressor que tudo corrompe e tudo concentra em si - na ordem moral e política, como na ordem econômica
e administrativa.
O ato adicional, interpretando a lei de 3 de dezembro, o Conselho de Estado, criando,
com o regime da tutela severa, a instância superior e os instrumentos independentes que têm de cercear ou anular as deliberações dos parlamentos
provinciais, apesar de trancados; a dependência administrativa em que foram colocadas as províncias até para os atos mais triviais; o abuso do
efetivo seqüestro dos saldos dos orçamentos provinciais, para as despesas e as obras peculiares do município neutro; a restrição imposta ao
desenvolvimento dos legítimos interesses das províncias pela uniformidade obrigada, que forma o tipo da nossa absurda administração centralizadora,
tudo está demonstrando que posição precária ocupa o interesse propriamente nacional, confrontado com o interesse monárquico que é, de si mesmo, a
origem e a força de descentralização.
Tais condições, a história demonstra e o exemplo de nossos dias está patenteando, são
as mais próprias para, com a enervação anterior, expor a pátria às eventualidades e aos perigos da usurpação e da conquista.
O nosso estado é, em miniatura, o estado da França de Napoleão III. O desmantelamento
daquele país, que o mundo está presenciando com assombro, não teve outra origem, não tem outra causa explicativa.
E a própria guerra exterior que tivemos de manter por espaço de seis anos deixou ver,
com a ocupação de Mato Grosso e a invasão do Rio Grande do Sul, quanto é impotente e desastroso o regime da centralização para salvaguardar a honra
e a integridade nacional.
A autonomia das províncias é, pois, para nós, mais do que um interesse imposto pela
solidariedade dos direitos e das relações provinciais, é um princípio cardeal e solene que inscrevemos em nossa bandeira.
O regime da federação baseado, portanto, na independência recíproca das províncias,
elevando-as à categoria de Estados próprios, unicamente ligados pelo vínculo da mesma nacionalidade e da solidariedade dos grandes interesses da
representação da defesa exterior, é aquele que adotamos no nosso programa como sendo o único capaz de manter a comunhão da família brasileira.
Se carecêssemos de uma fórmula para assinalar, perante a consciência nacional, os
efeitos de um e outro regime, nós a resumiríamos assim - "Centralização - Desmembramento. - Descentralização - Unidade".
A verdade democrática - Posto de parte o vício insanável de origem da carta de
1824, imposta pelo príncipe do Brasil constituído sem constituinte, vejamos o que vale a monarquia temperada, ou monarquia constitucional
representativa.
Este sistema misto é uma utopia, porque é uma utopia ligar de modo sólido e perdurável
dois elementos heterogêneos, dois poderes diversos em sua origem, antinômicos e irreconciliáveis - a monarquia hereditária e a soberania nacional, o
poder pela graça de Deus e o poder pela vontade coletiva, livre e soberana de todos os cidadãos.
O consórcio dos dois princípios é tão absurdo quanto repugnante o seu equilíbrio.
Ainda quando, como sonhavam os doutores da monarquia temperada, nenhum dos dois
poderes preponderassem um sobre o outro, para que, caminhando paralelamente, mutuamente se auxiliassem e fiscalizassem, a conseqüência a tirar é que
seriam iguais.
Ora, admitir a igualdade do poder divino ao humano, é de difícil compreensão.
Mas admitir com o artigo 12 da carta de 1824, que todos os poderes são delegações da
nação, e aceitar o sistema misto como um sistema racional e exeqüível, é ultrapassar as raias do absurdo, porque é fazer preponderar o poder humano
sobre o poder divino.
A questão é clara e simples.
Ou o princípio, instrumento e órgão das leis provinciais, pela sua só origem e
predestinação, deve governar os demais homens, com os predicados essenciais da inviolabilidade, da irresponsabilidade, da hereditariedade, sem
contraste e sem fiscalização, porque o seu poder emana da onipotência infinitamente justa e infinitamente boa; ou a Divindade nada tem que ver na
vida do Estado, que é uma comunhão à parte e estranha a todo o interesse espiritual, e então a vontade dos governados é o único poder supremo e
supremo arbítrio dos governos.
Quando a teocracia asiática tinha um ungido do senhor, ou das hordas da média idade
aclamavam um rei, carregando-o triunfalmente depois de uma vitória, esse reconhecimento solene do direito da força era lógico; quando pelo mesmo
princípio a monarquia se unia a comunas, para derrocar o feudalismo, o despotismo monárquico era lógico também. Mas depois da emancipação dos povos
e da consagração da força do direito, o que é lógico é o desaparecimento de todo o princípio caduco.
A transação entre a verdade triunfante e o erro vencido, entre as conquistas da
civilização e os frutos do obscurantismo é que é inadmissível.
Atar ao carro do Estado dois locomotores que se dirigem para sentidos opostos, é
procurar - ou a imobilidade, se as forças propulsoras são iguais, ou a destruição de uma delas, se a outra lhe é superior.
É assim que as teorias dos sonhadores, que defendem o sistema misto, caem na prática.
Para que um governo seja representativo, todos os poderes devem ser delegados da
Nação, e não podendo haver um direito contra outro direito, segundo a expressão de Bossuet, a monarquia temperada é uma ficção sem realidade.
A soberania nacional só pode existir, só pode ser reconhecida e praticada em uma nação
cujo parlamento, eleito pela participação de todos os cidadãos, tem a suprema direção e pronuncie a última palavra nos públicos negócios.
Desde que existe, em qualquer constituição, um elemento de coação ao princípio da
liberdade democrática, a soberania nacional está violada, é uma coisa írrita e nula, incapaz dos salutares efeitos da moderna fórmula de governo - o
governo de todos por todos.
Outra condição indispensável na soberania nacional é ser inalienável e não poder
delegar mais do que o seu exercício. A prática do direito em si é o objeto do mandato.
Desta verdade resulta que, quando o povo cede uma parte da sua soberania, não
constitui um senhor, mas um servidor, isto é, um funcionário.
Ora, a conseqüência é que o funcionário tem de ser revocável, móvel, eletivo, criando
a fórmula complementar dos Estados modernos - a mobilidade nas pessoas e a perpetuidade nas funções - contra a qual se levantam, nos sistemas como o
que nos rege, os princípios da hereditariedade, da inviolabilidade, da irresponsabilidade.
Associar, uma a outra, duas opiniões ciosas de suas prerrogativas, com interesses
manifestadamente contrários, é, na frase de Gambetta, semear o germe de eternos conflitos, procurar neutralização das forças vivas da Nação, em um
duelo insensato, e aguardar irremediavelmente um dos dois resultados: ou que a liberdade de voto e a universalidade do direito sucumbam às
satisfações e aos desejos de um só, ou que o poder de um só desapareça, diante da maioria do direito popular.
Ainda mais, a soberania nacional não pode sequer estipular sobre a sua própria
alheação. Por que é a reunião, a coleção das vontades de um povo. E como as gerações se sucedem, e se substituem, fora iníquo que o contrato de hoje
obrigasse de antemão a vontade da geração futura, dispondo do que lhe não pertence, e instituindo uma tutela perene, que seria a primeira negação da
soberania nacional.
A manifestação da vontade da Nação de hoje pode não ser a manifestação da vontade da
Nação do amanhã, e daí resulta que, ante a vontade da democracia, as constituições não devem ser velhos marcos da senda política da nacionalidade,
assentados como a consagração e o símbolo de princípios imutáveis. As necessidade e os interesses de cada época têm de lhes imprimir o cunho de sua
individualidade.
Se houver, pois, sinceridade ao proclamar a soberania nacional, cumprirá reconhecer
sem reservas que tudo quanto ainda hoje pretende revestir-se de caráter permanente, hereditário, no poder, está eivado do vício da caducidade e que
o elemento monárquico não tem coexistência possível com o elemento democrático. É assim que o princípio dinástico e a vitaliciedade do Senado são
duas violações flagrantes da soberania nacional, e constituem o principal defeito da carta de 1824.
Em conclusão - Expostos os princípios gerais que servem de base à democracia
moderna, única que consulta e respeita o direito e a opinião dos povos, temos tornado conhecido o nosso pensamento.
Como nosso intuito deve ser satisfeito pela condição da preliminar estabelecida na
própria carta outorgada - a convocação de uma Assembléia Constituinte, com amplas faculdades para instaurar o novo regime, é necessidade cardeal.
As reformas a que aspiramos são complexas e abrangem todo o nosso mecanismo social.
Negá-las absolutamente fora uma obra ímpia, porque se provocaria a resistência.
Aprazá-las indefinidamente fora um artifício grosseiro e perigoso.
Fortalecidos, pois, pelo nosso direito e pela nossa consciência, apresentamo-nos
perante os nossos concidadãos, arvorando resolutamente a bandeira do partido republicano federativo.
Somos da América e queremos ser americanos.
A nossa forma de governo é, em sua essência e sua prática, antinômica e hostil ao
direito e aos interesses dos Estados americanos.
A permanência dessa forma tem de ser, forçosamente, além da origem da opressão, no
interior, a fonte perpétua da hostilidade e das guerras com os povos que nos rodeiam.
Perante a Europa, passamos por ser uma democracia monárquica, que não inspira simpatia
nem provoca adesões. Perante a América, passamos por ser uma democracia monarquizada, onde o instinto e a força do povo não podem preponderar ante o
arbítrio e a onipotência do soberano.
Em tais condições pode o Brasil considerar-se um país isolado, não só no seio da
América, como no seio do mundo.
O nosso esforço dirige-se a suprimir este estado de coisas, pondo-nos em contato
fraternal com todos os povos e em solidariedade democrática com o continente de que fazemos parte.
Dr. Joaquim Saldanha Marinho, advogado, ex-presidente de Minas e São Paulo,
ex-deputado por Pernambuco; dr. Aristides da Silveira Lobo, advogado, ex-deputado por Alagoas; Christiano Benedicto Ottoni, engenheiro, ex-deputado
por Minas; dr. Flávio Farnese, advogado e jornalista; dr. Pedro Antonio Ferreira Vianna, advogado e jornalista; dr. Lafayette Rodrigues Pereira,
advogado, ex-presidente do Ceará e Maranhão; dr. Bernardino Pamplona, fazendeiro; João de Almeida, jornalista; dr. Pedro Bandeira de Gouveia,
médico; dr. Fco. Rangel Pestana, advogado e jornalista; dr. Henrique Limpo de Abreu, advogado, ex-deputado por Minas; dr. Augusto César de Miranda
Azevedo, médico; Elias Antonio Freire, negociante; Joaquim Garcia Pires de Almeida, jornalista; Quintino Bocayuva, jornalista; dr. Joaquim Maurício
de Abreu, médico; dr. Miguel Vieira Ferreira, engenheiro; dr. Pedro Rodrigues Soares de Meirelles, advogado; dr. Júlio César de Freitas Coutinho,
advogado; Alfredo Moreira Pinto, professor; Carlos Americano Freire, engenheiro; Jerônymo Simões, negociante; José Ferreira Leitão, professor; João
Vicente de Brito Galvão; dr. José Maria de Albuquerque Mello, advogado, ex-deputado pelo Rio Grande do Norte; Gabriel José de Freitas, negociante;
Joaquim Heliodoro Gomes, empregado público; Francisco Antonio Castorino de Faria, empregado público; José Caetano de Moraes e Castro; Octaviano
Hudson, jornalista; dr. Ulysses de Sousa Araújo, médico; dr. José Baptista Laper, médico; dr. Antonio da Silva Netto, engenheiro; dr. Antonio José
de Oliveira Filho, advogado; dr. Francisco Peregrino Viriato de Medeiros, médico; dr. Antonio de Sousa Campos, médico; dr. Manoel Marques da Silva
Acauan, médico; Máximo Antonio da Silva; dr. Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, advogado, ex-deputado por Sergipe; dr. Salvador de Mendonça,
jornalista; Eduardo Baptista R. Franco; dr. Manoel Benício Fontenelle, advogado, ex-deputado pelo Maranhão; dr. Felix José da Costa e Sousa,
advogado; Paulo Emílio dos Santos Lobo; dr. José Lopes da Silva Trovão, médico; dr. Antonio Paulino Limpo de Abreu, engenheiro; Macedo Sodré,
negociante; Alfredo Gomes Braga, empregado público; Francisco C. de Brício; Manoel Marques de Freitas; Thomé Ignácio Botelho, capitalista; Eduardo
Carneiro de Mendonça; Júlio V. Gutierrez, negociante; Cândido Luís de Andrade, negociante; dr. José Jorge Paranhos da Silva, advogado; Emílio Rangel
Pestana, negociante; Antonio Nunes Galvão e dr. Galdino Emiliano das Neves." |