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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
1862: estradas intransitáveis com as chuvas

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A péssima condição das estradas paulistas, particularmente na comunicação entre as cidades de Santos e São Paulo, era tema diário na imprensa, nos primeiros dias de 1862, como se verifica na edição 1.703/ano IX do jornal Correio Paulistano, da capital paulista, na quarta-feira, 8 de janeiro de 1862, página 2 e página 3 (acervo Memória/Biblioteca Nacional - ortografia atualizada nesta transcrição - acesso: 26/10/2014):

Imagem: cabeçalho da página 1 do Correio Paulistano de 8/1/1862

CORREIO PAULISTANO

S. Paulo 7 de janeiro de 1862

Dando hoje inserção em nossas colunas ao comunicado assinado - G - relativo ao estado atual, e ao sistema, que se tem seguido entre nós, na feitura das estradas, julgamos dever emitir nossa opinião sobre este assunto.

Temos constantemente reclamado contra o sistema adotado para a construção e reparos das estradas, por julgarmo-lo inteiramente inútil. Foi sempre nossa mofina esse meio de dividir centenas de contos por todas as estradas, porque o resultado de há muito que se estava manifestando - evapora-se o dinheiro mas as estradas nãos se faziam. Daqui os incessantes reclamos do comércio, da lavoura, de todos em geral, que viam o dinheiro se escoar e as estradas continuarem intransitáveis.

Os reclamos são justos, porque o povo que confia em seus legisladores, e que todos os anos lê a lei do orçamento com o costumado e rotineiro calendário de estradas todas contempladas com alguns centos de mil réis, não quer saber se dinheiro é suficiente, se o sistema é o melhor; o que ele quer é estradas; a única solução possível para as suas necessidades. O único meio de fazer cessar os reclamos, e as censuras, que sem critério vai fazendo aos governos, aos administradores e encarregados, é dar-lhe estradas - seja como for.

O espírito de tacanhismo porém que predomina em S. Paulo, aliado com o interesse de certos políticos, que pretendem criar proselitismo nos diversos pontos da província, à custa de seus cofres, nunca consentiu que se tratasse da questão de estradas sob o seu verdadeiro ponto de vista; a divisão das cotas, e designação das estradas que deviam ser dotadas com elas, nunca se fez senão no sentido de alimentar clientela.

Eis aqui por que temos gasto até hoje milhares de contos e não temos sequer uma estrada na província que na estação das águas não fique literalmente intransitável.

O comunicante - G - discute belamente esta questão, e nós, não agora, porém de longa data temos abundado em sua opinião; cumpre porém não ser tão absoluto querendo tirar de sobre algumas administrações de estradas as censuras que porventura tenham aparecido de desleixo e malversação; o próprio sistema, que ambos condenamos, a isto favorece.

Não nos referimos à atualidade, porque nem conhecemos o pessoal encarregado da administração das estradas, mas ao passado de que são conhecidas as crônicas.

É aqui ocasião oportuna para dizermos alguma coisa relativamente ao reclamo que fez a redação do Mosaico de 29 de dezembro último, a respeito do estado em que se acha a estrada que comunica os municípios do Norte com o de Ubatuba.

O contemporâneo foi injusto em dois pontos. A censura, ou responsabilidade que pretende fazer pesar sobre o governo provincial pelo mau estado dessa estrada, não é bem cabida, nem pode se sustentar um só momento em relação à administração do excelentíssimo senhor doutor Jacintho de Mendonça. Vejamos;

A lei do orçamento seguinte subiu à sanção do governo em princípio de agosto, e já em 21 de setembro mandava sua excelência pôr em arrematação os trabalhos dessa estrada; arrematação para a qual não apareceram concorrentes, findo o prazo, e por cuja razão em 4 de novembro foram autorizadas as câmaras de Taubaté, S. Luiz e Ubatuba a contratar esses trabalhos, cada uma na parte do terreno que lhes é relativo.

Vê-se portanto que o excelentíssimo senhor doutor Jacintho de Mendonça, solícito como todos o reconhecem pelos negócios públicos, apenas se demorou na execução desta parte da lei do orçamento o tempo que lhe era absolutamente indispensável para orientar-se nas suas diversas disposições.

Assim, pois, pelo que respeita a estradas, o interesse e atividade que tem desenvolvido sua excelência não podem ser contestados com vantagem nem mesmo pelos seus adversários.

O outro ponto em que o contemporâneo foi igualmente injusto é quando supõe que tem havido mais atenção para os interesses do Sul da província do que para o Norte. As administrações e as diversas legislaturas nunca incorreram nessas censuras, porque revelaria muita inépcia essa preferência, que não podia deixar de trazer consequências muito prejudiciais para todos.

CHUVAS - Choveu com intensidade e sem interrupção desde as 10 horas da noite de 4 do corrente até a madrugada do dia 6. Somos informados que por motivo deste acontecimento caíra uma parte do puxado da casa em que funciona a secretaria da polícia, e parte do sótão da em que reside o sr. Francisco de Salles Ayres. Além disso, como acontece todos os anos por este tempo, desmoronaram alguns muros nos subúrbios da cidade.

Imagem: reprodução parcial da página 2 do Correio Paulistano de 8/1/1862

COMUNICADOS

Estradas

A importância do melhoramento das vias de comunicação, como principal meio de engrandecer um país, é matéria de sobejo discutida.

Nos limitaremos portanto a fazer algumas reflexões no sentido somente de chamar a atenção do corpo legislativo e do governo, para algumas verdades que nunca devemos esquecer, a fim de que possamos dotar nossa província com boas estradas.

Cumpre fazer lembrar que as nossas vias de comunicação têm quase tocado o último pondo de degradação, em cujo estado não podem por certo permanecer, sem que o preço das conduções esmague nossa lavoura já tão acabrunhada pela escassez e alto preço de seus braços.

O meio de sair deste estado calamitoso não é, sem dúvida, esperar a estação chuvosa para fazer na assembleia e pelos jornais discursos sobre bestas mortas e lamaçais, pronunciados contra o governo e os administradores de estradas. Tais acusações seriam muito justas, se lhes tivessem dado todos os meios, e eles, por negligência ou ineptidão não os empregassem. O que se tem feito no intuito de melhorar nossas vias de comunicação?

Uma quantia que apenas bastaria para construção de uma ou duas léguas de boa estrada reparte-se por todos os caminhos da província!

Não pretendemos com isto dizer que não se dê meios de melhorar as vias de comunicação menos importantes; pelo contrário, entendemos que o melhoramento de todas seria da maior economia.

Se a pequenez da produção de uma localidade fosse um justo motivo para excluí-la do número das beneficiadas, elas nunca progrediriam, seriam completamente aniquiladas.

O que lastimamos é que, com tal partilha, sejam os dinheiros públicos mal gastos; visto que as obras mal acabadas não têm duração, e nem, enquanto existem, prestam bom serviço.

Nos Estados Unidos fizeram vias férreas de centenas de léguas, pelo meio de sertões inóspitos, no intuito somente de desafiar a emigração, que logo tiveram na maior escala que se tem visto! Não hesitaram em contrair para isso dívida de muitos milhões, cuja maior parte já pagaram, ficando-lhes ainda uma enorme riqueza.

A nossa província tem elementos da prosperidade na maior escala, e crédito, por isso não menor que o daquele país para empresas gigantescas. Deixemos pois a indolência, se não queremos ser indignos de um país como este. É só ela que nos tem retardado imensos gozos.

Estabeleça o corpo legislativo bases sobre as quais o governo possa incorporar companhias que se encarreguem da construção das estradas.

Estamos convictos de que os nossos fazendeiros muito nos auxiliarão nestas empresas, e que mesmo não se negarão a tomá-las todas sobre seus ombros. Quando porém, contra toda a expectativa, eles nada queiram fazer, preferindo rotinalmente pagar conduções por alto preço, somente pelo prazer de ver bestas cobertas de feridas e a sua produção toda avariada por água e por lama; então busque-se o estrangeiro - porque este não se recusará, e nos virá mostrar como se deve amar o trabalho.

A Câmara dos Deputados por sua parte que decida do modo mais conveniente as questões relativas ao casamento civil.

Que projete e aprove a lei da reforma de nossa magistratura, fazendo-a inteiramente livre das pressões do governo, e pondo-a ao abrigo das tentações da miséria, or meio de bons ordenados.

A necessidade que temos também de liberdade de religião é palpitante. Cada um que vá para o céu pelo caminho que quiser.

Basta de ser deputado só para tratar de eleições com o fim de ser outra vez deputado, para tornar a ser deputado, e assim perpetuamente.

O país tem necessidades a satisfazer, e não poderá por muito tempo mais tolerar tantos abusos.

E as medidas que acabamos de indicar tonam-se hoje tanto mais urgentes quanto é certo que os grandes frutos da estrada de ferro, que brevemente teremos, não serão bem aproveitados, se, desde já, não cuidarmos dos meios de melhorar as nossas vias de comunicação que têm de conduzir para as estações, e de fazer tudo quanto for tendente a atrair o estrangeiro.

A fim de que não se recue diante da despesa que necessitamos fazer para obter estradas, vamos dizer alguma coisa acerca do seu preço, com o fim de fazer com que todos fiquemos familiarizados com esse enorme algarismo.

O sistema de construção que convém adotar para nossas estradas é o de Mac-Adam (N. E.: macadame, na grafia atualizada), modificado segundo as circunstâncias de cada lugar; empregando-se os trilhos de ferro para a rodagem, sempre que o terreno não for de natureza tal que, para obter-se brandas declividades, sejam necessárias grandes obras.

Somos informados por pessoa profissional e experimentada que as estradas nesta província, mesmo para bestas de tropas, não custarão menos de 200 a 300 contos por légua, e que o seu gasto de entretenimento nunca será menor de 3 por cento anualmente do capital empregado na construção, isto nas estradas de maior trânsito de bestas e de carros.

Quando falamos em carros, fica bem entendido que não nos referimos aos de eixo móvel, que trabalham atualmente em nossos caminhos. A esses, que exercitam mais as funções do arado volvendo a terra, do que as de um instrumento de rodagem, não há construção que resista.

Sendo necessário, como fica dito, de 200 a 300 contos por légua para a construção das nossas estradas, e 3 por cento desta quantia anualmente para o entretenimento das mesmas, claro fica que as quantias consignadas no orçamento para conservação de nossas vias de comunicação, mesmo as mais favorecidas, longe estão de ser suficientes para conservá-las, quando mesmo tenham já sido solidamente construídas. Sendo isto uma verdade, da qual só duvidará quem não tiver ideia alguma desta matéria; quanto é estúpido o clamor que no tempo das chuvas se levanta contra o estado de nossos caminhos! O que com razão nos deve admirar, é que eles deem trânsito, por mau que seja!

À primeira vista é assustadora a despesa que necessitamos fazer para obter boas vias de comunicação, porém com alguma atenção vê-se que se a província fizesse tais obras, dentro de pouco tempo seria indenizada e teria grandes lucros.

Comparando-se o preço das conduções nos países que fizeram boas estradas, com o que se passa aqui, vê-se que a prática das medidas que indicamos traria baixa no preço das conduções provavelmente de 1$000 a 1$200 réis por arroba; mas supondo mesmo que só baixasse 500 réis em arroba, porque sobre isto não há dúvida, teria a província, só pelo porto de Santos, mais mil contos anualmente de rendimento, visto que só por ali passam todos os anos 2.000.000 de arrobas pelo menos.

E um acréscimo semelhante em rendas, sem dúvida bastaria para amortização em pouco tempo da dívida que contraíssemos para construção ao menos de nossas principais estradas; e além de que tal lucro continuaria, ficaríamos nós com as demais vantagens sempre resultantes da posse de boas estradas.

-- G --

(Continua)

Imagem: reprodução parcial da página 2 do Correio Paulistano de 8/1/1862

No mesmo jornal Correio Paulistano, da capital paulista, edição 1704/ano IX, de quinta-feira, 9 de janeiro de 1862, página 1 (acervo Memória/Biblioteca Nacional - ortografia atualizada nesta transcrição - acesso: 26/10/2014):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do Correio Paulistano de 9/1/1862

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor - Em resposta à portaria em que vossa excelência ordena que declaremos se são ou não exatas as notícias que aqui têm chegado de que o caminho de Santos está quase intransitável, desde as Caveiras até o alto da Serra, e no caso afirmativo que digamos o motivo por que não temos feito prontamente os necessários reparos, conforme vossa excelência nos tem ordenado, temos a honra de informar:

Que não é exato estar o caminho quase intransitável em ponto algum. É verdade que as chuvas copiosas que temos tido fizeram estragos imensos, abrindo covas e desmanchando empedramentos, pelo que o trânsito é hoje muito incômodo, mas é igualmente certo que os poucos lugares em que as chuvas têm feito lamaçais mais profundos, são o mais prontamente possível reparados, e ainda nem um deles chegou ao ponto de prender um animal sequer. Tal fato porém não se deve atribuir ao desvelo com que na verdade temos trabalhado, se não à Providência somente, visto como as chuvas têm sido tais que não deixam trabalhar geralmente mais de 2 dias por semana.

Tentamos a princípio fazer trabalhar os jornaleiros mesmo com chuva, mas alguns caíram em consequência doentes, e outros fugiram, como aconteceu com todos os que tínhamos de Itapecerica, em lugar dos quais Pedro Travassos nos cedeu 10 de seus bons jornaleiros.

Temos sempre de 40 a 50 bons trabalhadores e 9 carros dobrados, ocupados no serviço do caminho, tendo sempre à sua testa bons feitores. Deles arrancamos a maior soma de obras que é possível.

Quando o caminho ameaçar corte de comunicação, nós seremos os primeiros a dar a vossa excelência tão desagradável notícia.

Não esperamos que tal aconteça, salvo se houver algum grande desmoronamento da serra, por que semelhante mal está muito além de nossos recursos. Nem com 1 ou 2 mil trabalhadores, ali empregados todo o ano, poderão tirar as grandes massas que muito naturalmente podiam desmoronar no tempo das águas, e porque isto nunca aconteceu, com probabilidade supomos que não acontecerá.

Deus guarde a vossa excelência. São Paulo, 5 de janeiro de 1862.

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor doutor João Jacintho de Mendonça, digníssimo presidente da província.

Francisco Gonçalves Gomide.

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor - Com o maior pesar, comunico a vossa excelência que o último temporal fez encher o Rio Grande de modo nunca visto. A água subiu 3 palmos acima da maior enchente conhecida, donde resultou corte de comunicação. Esperamos porém que dentro de poucas horas ou quando mito até amanhã, o trânsito estará restabelecido. Infelizmente mais não podemos fazer do que esperar o escoamento das águas, e devemos presumir que ele se efetue em pouco tempo, porque as chuvas cessaram e a vazante já é bem sensível.

Estamos entretanto com trabalhadores ali a fim de, logo que se possa, fazer-se os reparos dos lugares em que o aterrado tenha sido porventura cortado.

Vossa excelência se dignará de desculpar a maneira ligeira por que é feita esta comunicação. O rancho em que estamos não permite outra coisa.

Deus guarde a vossa excelência. Viúvas, 7 de janeiro de 1862.

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor doutor João Jacintho de Mendonça, digníssimo presidente da província.

Francisco Gonçalves Gomide.

Ainda no Correio Paulistano, edição 1705/Ano IX, de sexta-feira, 10 de janeiro de 1862, página 1 (acervo Memória/Biblioteca Nacional - ortografia atualizada nesta transcrição - acesso: 26/10/2014 e 17/10/2015):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do Correio Paulistano de 10/1/1862

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor - Hoje por um próprio damos a vossa excelência a terrível notícia do corte que sofreu a comunicação por esta estrada, em consequência da monstruosa enchente do Rio Grande. Tal acontecimento foi absolutamente impossível de evitar-se, porque não se podia prever. A velha ponte nunca foi tocada por enchente alguma; entretanto, por muita prudência, construímos a ponte atual em 3 palmos mais de altura; e mesmo assim as águas estão fazendo empuxos sobre o pavimento! Como a vazante vai sendo um tanto vagarosa, tomamos a resolução de construir balsas com barris, e por este meio contamos amanhã dar passagem ao menos para as cargas principais, como sejam malas etc. A estrada nada sofreu, e antes está algum[as ...] melhor segundo as últimas notícias. Deus guarde a vossa excelência. São Bernardo, 7 de janeiro de 1862.

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor doutor João Jacintho de Mendonça, digníssimo presidente da província.

Francisco Gonçalves Gomide.

Na página 2 do mesmo jornal (acesso: 17/10/2015):
Inundação e destroços - Somos agora informados que as chuvas abundantes que caíram pelo fim da semana passada e começo da presente causaram consideráveis prejuízos na estrada desta capital à cidade de Santos. Foram inundados diversos pontos da estrada, impedindo o trânsito; a serra sofreu alguns desmoronamentos; a ponte da estrada de ferro perdeu-se; morreram muitos animais de tropas que estavam de passagem na estrada, perdendo-se não poucas cargas de sal, e avariando-se outros carregamentos. A um passageiro ouvimos dizer que virá uma tropa de 40 bestas reduzidas a 15 pela mortalidade. Informam-nos mais que apenas se pode transitar pela serra velha, e isso com grande dificuldade, bem como que haviam sido arrebatados pela força das águas no Rio Cubatão dois indivíduos trabalhadores da estrada de ferro.

Na parte competente publicamos o ofício do engenheiro Gomide, que dá conta dos acontecimentos somente da parte em que se acha, bem como no expediente do governo a portaria em que o exmo. sr. dr. Mendonça o autoriza a tomar as providências necessárias para a pronta remoção dos embaraços do trânsito.

Imagem: reprodução parcial da página 2 do Correio Paulistano de 10/1/1862

O mesmo Correio Paulistano, edição 1707/Ano IX, de domingo, 12 de janeiro de 1862, página 1 (acervo Memória/Biblioteca Nacional - ortografia atualizada nesta transcrição - acesso: 26/10/2014):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do Correio Paulistano de 12/1/1862

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor - O temporal de 4 do corrente não se limitou a cortar a comunicação, com a inundação do Rio Grande; mas fez estragos horríveis na estrada da Serra. Imensos desmoronamentos de enorme tamanho lançaram ao vale, em alguns pontos, o plano viável, fazendo abismos de natureza tal que a não ser o rumo que conservamos de memória e pelas plantas levantadas, ninguém saberia o lugar da estrada em alguns pontos, principalmente na Volta Grande.

À vista de tantos e tamanhos estragos, dificílimos de reparar, só cuidamos com o maior esforço de dar trânsito, embora o pior possível, pois que a comunicação estava absolutamente cortada.

Neste propósito, concentramos todas as nossas forças na Serra, e com o auxílio de muitos tropeiros conseguimos dar passagem até pouco abaixo da Boa Vista, passando-se pela estrada velha desde aí até o Cubatão; ficando assim livre o trânsito para tropas, cavaleiros e banguês, desde ontem à tarde.

A comunicação assim restabelecida é feita: a metade pela estrada chamada Nova e o resto pela velha.

Qualquer imaginará um caminho horrível, quando souber que nele entra uma porção da estrada velha; mas isto é um completo engano. É verdade que a estrada ali é estreita e de aspérrima declividade; porém não é menos verdadeiro que por ali nunca passou carro algum e nem cachoeira, que são os maiores elementos de destruição de estradas conhecidos. Tal era o prejuízo que sofriam os tropeiros com encontros de carros, de que estão hoje livres, que ficamos em dúvida se eles perderão ou não com a necessidade que hoje temos de uma porção de estrada velha, não obstante a sua estreitura e ingremidade.

Não podemos ainda avaliar os estragos feitos à estrada pelo temporal, porque a maior parte das ruínas, soltas como estão, ainda não suportam o menor movimento. É necessário algum tempo para aquelas massas se consolidarem pelo seu próprio peso. Antes disto, nada se pode fazer, sem o perigo de, com a maior probabilidade, perderem-se as obras e muitas vidas de trabalhadores; e mesmo esse tempo servirá para bem se julgar da conveniência de restabelecer o trânsito pela estrada Nova, senão até o ponto somente em que hoje está servindo muito mal.

Desde já estamos mandando roçar em derredor das ruínas, nos lugares em que isto é possível, para obtermos melhores orçamentos.

A inundação do Rio Cubatão, produzida pelo mesmo temporal, causou inauditos prejuízos aos tropeiros e aos habitantes daquela povoação.

Cerca de 300 bestas foram mortas, umas carregadas pela enchente, e outras entanguidas. A água subiu 4 palmos acima da maior enchente de que há notícia, estragando assim algumas casas e tudo quanto elas continham.

Uma grande parte dos habitantes de Cubatão, que esteve em eminente perigo de vida, foi salva pela dedicação com que algumas pessoas ocuparam-se em andar com canoas dando socorro; tendo-se a lamentar a morte de dois destes bravos que sucumbiram em tão nobre serviço.

Só agora é que posso ter a honra de fazer a vossa excelência esta comunicação por que: primeiro, tudo ignorávamos por causa do corte da estrada feito pelo Rio Grande, e depois porque estivemos no serviço da Serra.

Deus guarde a vossa excelência. Rio Pequeno, 9 de janeiro de 1862.

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor doutor João Jacintho de Mendonça, digníssimo presidente da província.

Francisco Gonsalves Gomide.

Dias depois, na edição 1708/Ano IX, de domingo, 14 de janeiro de 1862, página 1 e página 2 do Correio Paulistano (acervo Memória/Biblioteca Nacional - ortografia atualizada nesta transcrição - acesso: 26/10/2014):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do Correio Paulistano de 14/1/1862

Estrada de Santos - Chamamos a atenção dos nossos leitores para a notícia detalhada, que abaixo publicamos, acerca do estado em que ficou a estrada de Santos por ocasião do temporal dos dias 5 e 6 do corrente. É escrito por testemunha ocular, e pessoa de todo o critério.

Notícia detalhada

Em tempo de guerra, mentira como terra: bem poucas vezes um anexim de nossos avós tem tão imediata e verdadeira aplicação como na quadra presente. Tem sido tão adulteradas as notícias que chegam a esta cidade relativas aos estragos e prejuízos causados pelas copiosas chuvas que caíram nos dia 4 e 5 do corrente nesta cidade, em Santos e em toda a extensão da estrada que as une, que, testemunhas presenciais das cenas produzidas nesses dias no Cubatão, e mesmo do estado da estrada antes e depois desse verdadeiro dilúvio parcial, julgamos de algum interesse a narração, se não enfeitada e poética, ao menos exata e detalhada, de tudo que presenciamos.

Chamados por um dever à cidade de Santos, chegamos ao Cubatão pelas 6 horas da tarde de sábado 4 do corrente; e bastante contrariados pelo mau estado da estrada na serra, e mesmo na porção do caminho compreendida entre o ponto das Caveiras e Rio das Pedras, lugares onde as águas exercem com maior intensidade os seus efeitos erosivos, aí passamos em consequência do mau tempo a noite de sábado, o dia e noite de domingo, e parte da manhã de segunda-feira.

Já ao descermos a serra pelas 4 horas do dia 4 a chuva caía copiosamente, e assim continuou sem interrupção ou modificação alguma até duas ou três horas da manhã de segunda-feira 6, acompanhada sempre de forte vento sudeste.

Grande e majestoso era o espetáculo que apresentava na manhã de domingo o rio junto à ponte no Cubatão, e suas margens adjacentes; a essa ponte, que mais esta vez atestou a perícia e verdadeiro conhecimento prático de seu construtor, cujo nome sentimos ignorar, para contentes e respeitosos aqui mencionarmos; essa obra, que faz honra à nossa província, não só lutou e resistiu à velocidade da correnteza d'água durante mais de trinta horas, como triunfou a inúmeros choques de madeiros de dimensões gigantescas, que, arrancados das cabeceiras e margens desse furioso rio, e animados de uma força viva prodigiosa, abalroavam-se de encontro a seus pegões; os menores passavam e rapidamente desapareciam carregados pela corrente, cuja velocidade era extraordinária; os maiores, e já quando o nível d'água se achava mui próximo ao pavimento, aí ficaram até quarta-feira 8 e, como verdadeiras alavancas, atuavam ora sobre os pegões de pedra e cal, ora sobre o assoalho e gradeamento da ponte, a ponto de curvar e mesmo arrancar alguns de seus pranchões; foram essas mesmas árvores que passavam pela velha ponte de madeira, e onde já haviam perdido a sua máxima força de impulsão, que, na mesma noite de sábado, e não portanto no auge da força da enchente, derribaram a ponte de ferro pertencente à estrada de ferro e assentada sobre o mesmo rio a 1/4 de légua talvez da outra.

A três causas atribuímos a pouca resistência dessa construção; a não se achar definitivamente concluída, o que diminuiria necessariamente sua potência à resistência; a conterem um grande número de vãos, pois segundo fomos informados seus pegões são em número de cinco formados cada um por quatro colunas de ferro, o que dá seis vãos, e portanto menores que os da ponte de madeira que são em número de quatro, esses vãos mui pequenos tenderiam evidentemente a dificultar a passagem dos mencionados madeiros, circunstância esta que hoje não deve ser desprezada para novo assentamento da outra ponte, e que nos parece o foi no da primeira; finalmente, a sua pouca elevação acima das máximas águas conhecidas.

Na manhã de terça-feira 7, a curiosidade nos levou a visitar essa ponte, e ainda causou-nos admiração a força de que é suscetível o elemento dos antigos, ao considerarmos o peso enorme dessa jangada formada de grandes barras de ferro, e que com tanta facilidade havia sido tirada de seus fundamentos. Não foi este o único prejuízo que experimentou a empresa da via férrea, consta-nos que nas obras da serra de Mogi um grande armazém também de ferro e aí construído para fornecimento dos seus trabalhadores ficara por terra também, e que nessa mesma localidade dois casos de morte se deram.

Nas vizinhanças do Cubatão não ficou uma só casa que não fosse literalmente inundada; os pastos completamente cheios d'água obrigaram aos animais a se refugiarem junto à ponte, e a passarem aí sem coisa alguma para se alimentar durante mais de trinta horas, em consequência do que grande número deles sucumbiram, subindo esse número conhecido até quarta-feira a mais de 120, a perda de sal e ouros gêneros que existiam nos diversos ranchos foi também considerável; a um pobre tropeiro ouvimos nós lamentar o prejuízo que havia sofrido, pois além de 10 bestas que já havia encontrado mortas, vira dissolver-se sem poder salvar 40 alqueires de sal. Na manhã de domingo as canoas se cruzavam no Cubatão em lugares onde na véspera ainda se viam pastos sofríveis cobertos de arbustos, e que então era um verdadeiro mar; nos galhos de muitas árvores mais próximas às habitações viam-se mulheres e crianças desoladas à espera que chegasse sua vez de serem salvas, pelos canoeiros que, intrépidos, arrostavam a impetuosidade das águas de pequenos riachos, e que com a enchente se haviam transformado em caudalosos rios.

Um outro espetáculo não menos digno de admiração era o que apresentava o aterrado entre as pontes do Cubatão e Casqueiro na manhã de segunda-feira em que o atravessamos em direção a Santos; além do grande número de enormes árvores que sobre ele existiam, trazidas para aí pelas águas, e que pelo seu número e dimensões mais parecia um bosque arrancado e para aí transplantado, as águas que então já muito tinham baixado ainda formavam uma extensa e verdadeira cachoeira de um para outro lado da estrada, a qual em sua queda sobre o leito da estrada de ferro, cujo nível é em geral mais baixo que o da outra, produzia um rumor tal que, a pequena distância, nada mais se ouvia.

Da cidade de Santos avistamos sobre as florestas da serra grandes sulcos formados pelos desmoronamentos que provavelmente foram os que, entulhando a estrada, interceptaram aí a passagem por ela, constrangendo os viajantes a transitarem nestes dias pela antiga estrada da serra: em nosso regresso a esta cidade apenas encontramos algum perigo na passagem das vizinhanças da ponte do Rio Grande, onde as águas, subindo consideravelmente, haviam causado grandes escavações, e onde existia ainda uma correnteza extraordinária.

Sobre a estrada na serra nova, vimos apenas um desmoronamento que se formou por grandes massas de terras, pedras e árvores, e que obstruía o trânsito; fomos aí entretanto informados que existiam mais alguns, e que não obstante necessitar muitos dias para removê-los em sua totalidade, poderiam ser trabalhados de maneira a dar passagem em poucos dias, o que não seria pequena vantagem, porquanto entendemos que o trânsito pela velha, além de impraticável por carros e iguais meios de transporte, é um verdadeiro purgatório para os animais; visto que praticada quase pela linha de máxima inclinação da montanha, conserva um declive sempre crescente que muito os fatiga e maltrata.

Julgamos conveniente insistir nos seguintes fatos: a enchente do Rio Cubatão, que desta vez foi maior que todas as conhecidas, segundo atestaram os moradores antigos do lugar, não chegou a cobrir, como se tem espalhado, o pavimento da ponte, o nível d'água chegou à extremidade dos pegões, e daí ao pavimento ainda vão alguns palmos; quanto aos estragos que essa ponte sofreu, só podemos examinar na quarta-feira os seguintes: os causados sobre um de seus encontros que foi algum tanto solapado inferiormente, perdendo algumas de suas pedras; o destravamento de algumas vigotas e pranchões do pavimento. As águas sobre o Rio Grande cresceram sobre o pavimento da ponte, que é, segundo fomos informados por pessoa profissional, três palmos acima das máximas águas conhecidas.

Resumiremos esta notícia anunciando que o estado da estrada que no dia 8 atravessamos em toda a sua extensão, era sofrível; o ardente sol que reinou durante todo o dia 7 e que era uma consequência mesmo da extraordinária tormenta dos dias passados, foi suficiente para enxugá-la; o aterrado entre o Cubatão e Santos, que nas vésperas apresentava uma cena triste, bem pode se avançar que estava excelente; nele encontramos alguns trabalhadores da estrada de ferro que, em diferentes lugares, o reparavam com estivas, satisfazendo assim a empresa uma das cláusulas do contrato em virtude do qual lhe foi cedida uma parte do leito desse aterrado, e enquanto privada de locomotivas, não pode proceder a obras mais duradouras.

S. Paulo 11 de janeiro de 1862.

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