Além dos sentidos humanos
Adelto Gonçalves (*)
Algumas vezes, à noite, quando deixo o jornal, agrada-me dar uma volta pelo Paquetá. Vou de
carro como um bom pequeno-burguês em que me transformei. Mas, não raro, desço para dar alguns passos, aspirar o ar que vem do estuário, o cheiro das
flores que, às vezes, ainda se vendem nas portas das boates hoje tão decadentes. E andar, andar. Como aquelas aves migratórias que voam em círculos
no Atlântico porque, antes, ali havia uma ilha, um local de pouso e referência para as longas travessias.
Gosto também de olhar por fora a casa em que nasci. Já quase não a reconheço, tão diferente.
Morávamos aqui, eu e minha família, porque, como tantas outras famílias remediadas, não tínhamos conseguido acompanhar a fuga da burguesia em
direção às praias. Tanto melhor. Se assim não fosse, talvez eu não tivesse escrito um romance sobre o Paquetá. Seria outro homem. Teria
provavelmente enveredado por outros caminhos que não o das letras. Seria um técnico em contabilidade, um administrador de empresas e andaria
regurgitando em alguma repartição. Ou, quem sabe, poderia ser até um bem sucedido burocrata com trânsito nos salões em que se movimenta a nossa tão
insensível classe dirigente.
Mas eu não estou aqui para falar de mim. E sim do Paquetá, embora seja difícil não ser
repetitivo depois que se escreve um livro sobre o assunto. Eu poderia repetir a história que Nego Orlando me contou, um pouco antes de
morrer, sobre a rebelião na Ilha Anchieta. Mas já não sinto ânimo.
Ou dizer de Knud Gregersen, Tatoo Lucky, o dinamarquês que preferiu trocar o Paquetá
pelo mar de Itanhaém porque a Boca há muito tempo perdeu aquele código de honra invisível que fazia o malandro respeitar malandro e,
principalmente, o morador do lugar, fosse lá quem fosse. Em seus últimos dias de Paquetá, o Tatuador já havia sido assaltado três vezes em seu
atelier por pivetes armados. Não agüentou mais e foi embora.
Afinal, Tatoo era respeitado até em Marselha - onde ninguém é respeitado. Foi lá que
ele se estabeleceu durante um bom tempo, depois que o pai lhe ensinou a tatuar, a arte das linhas e das sombras descoberta há quase dois séculos
pelo Capitão Cook entre os nativos da Polinésia. Pois se o Tatuador, que era um homem que amava o Paquetá como ninguém, foi embora, o que dizer
mais?
Poderia lembrar do Bola Sete, que era um negro cantor e pianista que, um dia, foi
transformado em tela pelo Tatuador. Poderia recordar as brigas famosas do Paquetá, os acertos de contas entre contrabandistas ou uma grande arruaça
entre marujos japoneses e filipinos. Poderia falar da decoração belle époque do antigo Restaurante Chave de Ouro (Golden Key), dos quadros
com imagens do cais que ficavam pendurados na parede do antigo Bar ABC, ali na esquina das ruas João Otávio e General Câmara.
Poderia lembrar ainda de outros personagens da noite, como o Pescadinha, bailarino
exímio de quem diziam que era capaz de dançar um tango em cima de um tijolo; ou o velho Bahia, que era o zelador do Sindicato dos Foguistas e que me
inspirou a figura do velho Marambaia, o personagem principal do meu romance sobre o cais de Santos. Poderia falar do Golfo, uma região que não
existe no mapa de Santos, mas só na memória das pessoas - lugar de morte certa para os bêbados, os sonhadores, onde nem os homenzarrões da Polícia
Marítima tinham coragem de entrar.
Agora, quando ando às voltas com outro romance que não sei se ainda terminarei - porque só
os loucos ainda querem ser escritores num país em que se trabalha tanto e ninguém lê nada - o Paquetá tem rondado outra vez a minha cabeça. Mas é um
Paquetá bem diferente desse daí de cima. É aquele Paquetá de que fala Ribeiro Couto, um Paquetá que deixa no sangue da gente o instinto da partida,
o amor dos estrangeiros e das nações, o Paquetá da greve nas Docas de 1919, quando o poeta Martins Fontes andava pela Cidade a fazer palestras sobre
o anarquismo e o delegado Ibrahim Nobre caçava trabalhadores como um capitão-do-mato negros fugitivos.
Esse foi um outro Paquetá, que, com paciência, podemos descobrir nas páginas amarelecidas
desta mesma A Tribuna e ficar sabendo, por exemplo, que o bonde da linha 11 saía da Praça Mauá e subia a Rua General Câmara em direção
contrária ao fluxo de tráfego de hoje. Um Paquetá de muito heroísmo que reunia os trabalhadores que sustentaram sob a mais feroz repressão uma greve
de mais de 30 dias, que levou ao desemprego cerca de dois mil operários das Docas, numa cidade que não tinha mais do que 30 mil habitantes.
Algumas vezes, lendo Ranulpho Prata, outro que há muitos anos escreveu sobre o Paquetá e
seus trabalhadores, num livro chamado Navios Iluminados, tendo pensado sobre o que tanto atrai nesse pedaço de terra. E, enfim, sem êxito.
Talvez porque o Paquetá está mais além dos sentidos humanos.
(*) Adelto Gonçalves é jornalista de
A Tribuna e autor do livro Os Vira-latas da Madrugada, que tem como cenário o Bairro
do Paquetá. |