Entre as indústrias do bairro, destaque para os moinhos Santista e Paulista:
na foto, parte do primeiro, que foi construído em 1905
Nem só de Boca vive esse lugar
Uma risada escandalosa abafa a música: na certa, aquela
mulher de cabelos espichados à base de alisantes ouviu uma piada picante do marinheiro metido a galã que está a seu lado. A poucos metros dali,
uma senhora robusta acaricia os cabelos de um japonês bem mais novo. Poderia ser seu filho. O bar encontra-se quase vazio, mas nas ruas o
movimento começa a crescer. Cai a noite no Paquetá.
Tudo fica mais colorido: os letreiros das ruas General Câmara, João Otávio, Aguiar de Andrade e Travessa Dona
Adelina proporcionam um espetáculo feérico. Amsterdam, Chave de Ouro, Swomi Bar, Scandinavia e tantos outros. Nomes que se sucedem. Promessa de
emoções diferentes.
Dois homens passam abraçados: estão bêbados, tentam apoiar-se um no outro, várias vezes ensaiam cair. Procuram
desviar dos carrinhos onde se vende milho cozido, frutas e churrasquinho (de gato?), mas nem sempre conseguem. Acabam com a cara enfiada dentro de
uma poça de água.
Meninos de sete, oito anos de idade passam oferecendo chicletes, pipoca, amendoim. De repente, são atraídos pela
cena que se desenvolve na calçada oposta: duas mulheres rolam pelo chão, dizendo palavrões, unhando-se e rasgando-se. Uma multidão assiste
passivamente. Até que a polícia leva as duas.
Agora as atenções se voltam para uma mulata bonita de saltos altos, roupa agarrada ao corpo, maquilagem
carregada. Por trás de tudo aquilo estão escondidos o rosto e o corpo de uma menina de 15 anos. É nova por ali, parece deslocada e foge de uma
lésbica que caminha em sua direção.
A noite avança e os bares e boates ficam cheios. Norte-americanos, loiros escandinavos, japoneses, chineses,
negros e mulatos debruçam-se sobre o balcão, deixando à mostra musculosos braços, cheios de tatuagens. Garçonetes desfilam entre as mesas. Uma
delas pede mais um chope para os travestis que conversam delicadamente entre si, agitando bastante os longos cílios postiços e ajeitando os
cabelos a cada instante.
De repente, pára a música alta. Começa um show de strip-tease.
Coisas como essas são apenas alguns fragmentos do que acontece na Boca. Mas o Paquetá não é só isso:
trata-se de um bairro de comércio diversificado, com indústrias do porte do Moinho Santista e do Moinho Paulista, e muitas famílias ocupando as
casas deixadas pela aristocracia.
É certo que mesmo de dia o bairro lembra a vida noturna que leva. Caminhando por suas ruas, sempre se depara com
pessoas que fazem a noite: cantores, bailarinas, travestis, bêbados que não conseguem se levantar do meio da rua, prostitutas escondidas atrás de
meia folha de porta. Mas por essas mesmas ruas passam os trabalhadores portuários, crianças que moram por perto, comerciários e tantos mais. Nem
sempre convivem pacificamente.
Tudo muito abandonado e crianças pela rua, sem terem onde brincar - Regiane percorre o corredor escuro
contando as famílias que moram na casa: nove, só no porão, outras cinco no pavimento superior. Um único cômodo serve como sala, cozinha, quarto. O
banheiro é coletivo. A umidade está presente em cada vão.
À noite, letreiros luminosos colorem o ambiente
As
crianças não têm outra alternativa se não brincarem na rua. Não há áreas de lazer ou praças. Nem creche ou telefone público. Supermercados só em
bairros distantes. Posto de atendimento médico também.
Muitos dos pequenos ficam confinados nos porões enquanto os pais trabalham. O trânsito assusta, o ambiente não é
dos melhores. Vez ou outra se vê alguma mãe desesperada, querendo entregar o filho para o primeiro que aparecer.
As calçadas estão esburacadas, lodo escuro e malcheiroso acumula-se nas sarjetas. Quando chove a água sobe,
demora para escoar. Carros velozes espirram água por todos os lados.
Por quê a Prefeitura não transforma algum terreno baldio em área de lazer? Por quê não desobstrui as galerias de
águas pluviais? Ou cria creches para essas famílias tão necessitadas desse tipo de atendimento? Ninguém sabe a resposta.
E não custa nada barato morar no Paquetá. O aluguel de um cômodo com pouco mais de dois metros quadrados custa
Cr$ 500,00 por dia (a maioria dos locatários fixa taxas diárias e não mensais, como é rotina) e, um maiorzinho, não menos de Cr$ 1 mil por dia.
Além de tudo, as pessoas sofrem as conseqüências de viverem em um bairro considerado não residencial. Hélio dos Santos, baterista do conjunto
Os Invejados há vários anos, queixa-se que o lugar é muito ingrato: "Às vezes a polícia breca a gente na porta de casa. Sou um
trabalhador, por que tenho que passar por isso?"
Luís Dias Pimenta confessa que gostaria de já ter se mudado do Paquetá. Mas quem aluga casas ou apartamentos
para casais com muitos filhos?
Pois é. Ninguém vive em condições precárias porque quer. O China das Crianças, que já foi um menor
abandonado e passou parte de sua infância feito capitão de areia, dormindo aqui e ali, sabe bem disso. Esteve em um lugar que chamavam "casa de
recuperação", ficou mais revoltado ainda. Hoje, aos 26 anos, depois de enfrentar muitas situações adversas, está trabalhando. É sozinho no mundo,
seus melhores amigos são as crianças e sonha em ganhar uma televisão (sabe que tão cedo não poderá comprar uma).
Tem gente que esquece, mas essa gente pobre do Paquetá sonha. Faz planos, quer melhorar. Quer ver seu bairro
mais habitável.
Casas comerciais e indústrias ao lado de salões e hotéis - Muito pouco restou do bairro aristocrático de
outrora. Entre os estabelecimentos comerciais que resistiram às mudanças podem ser citados a Casa Minerva, o Açougue Imperial e o Salão de
Barbeiro Estrela, as padarias Francesa e Estrela. Agora, estão cercados por vários salões de beleza, hotéis e moradias mal cuidadas, quase todas
com plaquetas afixadas na porta, anunciando: "Vagas para moças. Vagas para rapazes".
Os moinhos Santista e Paulista estão no bairro desde os primeiros anos do século XX. Fazem parte da sua
paisagem. O Santista, construído em 1905, só fez crescer nesses anos todos de existência. Seu forte são as farinhas, mas fabrica também produtos
na linha de gelatina, mistura para bolo, pudins, flãs e fermento. O Moinho Paulista ocupou, na década de 1920, a área onde funcionava o primeiro
hospital da Beneficência Portuguesa. Nasceu como filial do Moinho Inglês, do Rio de Janeiro, e em suas instalações faz a moagem do trigo e fabrica
farinha para abastecer vários mercados.
O Paquetá é também sede do Sindicato dos Estivadores, da Sucam e do Serviço de Saúde do Porto, além de abrigar
trecho desse que é o maior porto da América do Sul. E na loja de lembranças da Rua General Câmara, 403/423, Cleide Oliveira Pires desenvolve uma
atividade que muita gente desconhece: é borboletista. Ou seja, monta quadros, pratos de parede, mesas e tantos outros enfeites com borboletas
mortas ou suas asas. Depois de 33 anos de profissão, acaba confessando: prefere ver borboletas voando do que confinadas sob vidros, só para
turista olhar com ar de admiração. |