Ninguém pode negar que existem lugares muito mais conhecidos em Santos. Mas os morros do
Bufo, Fontana e Santa Casa não ficam devendo nada a nenhum deles em termos de passado rico de histórias e dia-a-dia de muita luta. Escondidos
entre o famoso Monte Serrate e o popular São Bento, começaram a ser ocupados entre o fim do século XIX e o início do século XX.
Não se sabe ao certo quais os limites de cada um e muita gente que mora nas imediações sequer ouviu
falar no Morro da Santa Casa. Ele existe oficialmente, mas abriga em suas encostas pouquíssimas casas e acaba formando um todo com aquele conjunto
de morros, que padece de sérios problemas e só consegue melhorias depois de muito reivindicar e insistir.
Em outros tempos, havia o lado bom das serenatas, dos bailinhos na casa do compadre ou da
vizinha, mas o pessoal passou maus bocados devido à falta de luz elétrica e água encanada.
E a luta daquela gente continua até hoje: a Prefeitura parece esquecer da existência desses
morros, pois faz tempo que não assenta um único tijolo por lá. Os caminhos e escadarias estão esburacados e cheios de mato e o Poder Público não
se interessa em providenciar o escoamento de águas pluviais e servidas. Devido à falta de coleta de lixo no alto do Bufo, os lixões proliferam e,
junto com eles, os ratos. E a estrada continua sendo um grande sonho.
Os moradores do alto do Morro do Bufo já se habituaram a conviver com os diversos lixões
Fontana, Bufo e Santa Casa
Noite alta, céu risonho
A quietude é quase um sonho
O luar cai sobre a mata
Qual uma chuva de prata
De raríssimo esplendor |
Os versos de Cândido das Neves, o Índio, que fizeram
sucesso na voz de Vicente Celestino, enchiam as noites enluaradas dos morros Bufo e Fontana. Todo fim-de-semana havia serenata sob a luz de um
lampião qualquer ou à beira das janelas das donzelas mais bonitas, que faziam os seresteiros suspirar madrugada afora.
De repente, elas apareciam, olhos úmidos de encanto, ao som de outra composição do mesmo Cândido das Neves:
Lua...
Hoje vivo sem carinho
Ao relento tão sozinho
Na esperança mais atroz
De que cantando em noite linda
Essa ingrata volte ainda
Escutando a minha voz |
As românticas serestas dos velhos tempos continuam presentes na memória de João Fernandes,
o João Careca, nascido no morro há 74 anos. Ele juntava sua voz à viola do Augusto, à sanfona do Constantino e aos instrumentos de tantos
outros e saía repetindo as canções que emocionaram o Brasil inteiro nas interpretações de Chico Alves, Orlando Silva e outros intérpretes de
vozeirões inesquecíveis.
Muitas histórias nos 74 anos de morro
E
não havia perigo de levar um balde de água na cabeça por parte de um pai mais ciumento e zeloso? Lógico que não, pois o pessoal do morro parecia
uma grande família: todos se conheciam e se visitavam nas tardes de domingo, as mulheres trocavam receitas de bolo, os homens se ajudavam quando
precisavam trocar uma telha ou arrumar o forro da cozinha e as crianças iam juntas para a escola.
Num lado a casa de dona Mariquinha, em outro a de dona Barbina, adiante o salão do
barbeiro Brilhante, que ganhou esse apelido porque gostava de andar com o cabelo cheio de brilhantina, tão melado que nem o vento Noroeste
conseguia tirar um único fio do lugar.
E como esquecer o Salão do Norte, do valentão Pedro Araújo? Quantas e quantas vezes seu
João Fernandes não ouviu a mãe repetir, quando sentava de cara emburrada na cadeira: "Raspa tudo". O barbeiro não tinha pena, metia a máquina,
deixava a zero, carequinha de tudo. Muitas mães faziam questão de deixar os filhos carecas, para não vê-los de cabelos embaraçados ou duros de
poeira. Os moleques nem ousavam reclamar, porque a palavra dos pais era lei e castigos pesados esperavam os desobedientes ou malcriados.
Diversão certa em brincadeiras de infância e bailes - Que ninguém pense que os
pais, antigamente, mais pareciam carrascos. A criançada tinha liberdade para brincar solta, contanto que estivesse em casa na hora da comida, da
escola, e se prontificasse a comprar um quilo de açúcar ou arroz num momento de precisão.
Sobrava muito tempo para jogar bola, rodar pião e empinar papagaio. Os papagaios eram a
grande sensação no verão, na época do vento. Os meninos caprichavam, montavam alguns enormes e depois disputavam para ver quem conseguia pô-los
mais longe ou mais no alto. Davam linha e mais linha, e não raro a pipa ia parar perto da torre da Bolsa do Café. Volta e meia um saía para
averiguar: "O de fulano está mais longe", voltava dizendo, e outros tratavam de melhorar e tentar tomar a dianteira.
Em junho e julho, o pessoal se divertia vendo o céu salpicado de balões. Os garotos não
viam a hora de chegar as férias de meio de ano para terem mais tempo de fazer os balões e soltá-los nas noites claras, sob os olhares atentos (e
ansiosos) da vizinhança inteira.
Tão gostoso quanto ver o balão se perder nas alturas era se embrenhar nos matos à procura
de passarinhos como o pixoxó, coleirinha, pintassilgo e tantos outros que só faltavam estourar o peito de tanto cantar nos fins de tarde. Os
pardais, mais comuns, vez ou outra paravam na frigideira, mas certamente não é por isso que eles praticamente desapareciam de Santos. A questão
faz parte de uma outra história que envolve o crescimento da população, a ocupação dos espaços e a chegada das indústrias.
Nesse tempo em que os passarinhos viviam sobrevoando os céus, ninguém do morro freqüentava
clubes. Os próprios moradores cuidavam de organizar bailinhos e convidar os amigos: "Vou dar um baile tal dia", repetia o compadre de porta em
porta, e na data fixada todos compareciam, dispostos a varar a noite dançando e cantando. Tudo com o respeito que a época exigia e a ocasião
requeria.
Por ser uma comunidade tão unida, que desconhecia violências, de sábado para domingo os
rapazes se juntavam para conversar no Largo do Camacho, ao lado da venda do falecido seu Olímpio, e dormiam por ali mesmo, deitados sobre
sacos vazios. Os pais não tinham o que temer, pois sabiam muito bem que os filhos estavam por perto.
Uma história de luta pela água, pela luz e abertura de caminhos - Mas as
recordações de gente como seu João Fernandes, dona Mariquinha, dona Barbina, seu Antônio de Faria e sua esposa Maria Nóbrega Faria,
seu João Pereira e tantos outros não se resumem a coisas boas. Quando se mudaram para lá, não tinha água e nem luz elétrica, tinham que se
valer de lampiões e nascentes ou torneiras públicas.
Houve uma época em que o Caminho Santa Marina era o único acesso ao alto e não passava de
um "caminho de cabra", íngreme, escorregadio e inseguro.
Os morros de Santos começaram a ser efetivamente ocupados em fins do século XIX. Quando do
primeiro surto do progresso de Santos, imigrantes ibéricos começaram a colaborar nas obras dos cais, dos armazéns de café, em construções civis.
A maioria vinha das ilhas atlânticas, onde habitações em morros são tradicionais; passaram
a ocupar encostas voltadas para o centro comercial, entre elas a dos morros Fontana-Bufo. Puseram aterro onde precisava, implantaram sistemas de
escoamento de águas pluviais, construíram escadarias de pedra e muros de arrimo.
Até a década de 1930, portugueses e espanhóis predominaram. Com a entrada dos anos 1940,
verificou-se uma completa modificação na população dos morros, não só em termos numéricos como de tipos humanos.
É a vez dos imigrantes nordestinos enfrentarem maus bocados, tendo que carregar madeira,
cimento e areia nas costas para construir as casas. Abriram novas picadas, derramaram muito suor pelo caminho e se uniram aos primeiros moradores
para construir caixas d'água, reivindicar iluminação e outras melhorias necessárias. Nunca se recusaram a fazer obras que seriam competência dos
órgãos públicos: pediam apenas que fosse fornecido o material.
Só mesmo essa vida de luta e sacrifício explica o apego que muita gente sente pelo
lugar onde vive. A história das pessoas e do morro praticamente se misturam, daí se ouvir frases como a de seu João Fernandes: "Só saio
daqui para o Saboó" (N.E.: cemitério da Filosofia, no bairro do Saboó).
Seu João, uma vida inteira no morro. E feliz, apesar de tudo.
No Largo do Camacho, ponto de partida para diferentes lugares, o bar mais antigo
|