A miséria e a fome levam dezenas de pessoas a revirarem diariamente o lixão
e catarem restos para poderem sobreviver
Gente e bicho na disputa pelo lixo
De longe, parecem bichos. Quem há de imaginar que são homens
aquelas sombras perdidas na imensidão do lixo, revirando, remexendo, disputando imundícies com os ratos e urubus?
I - Fim de tarde, mais de 30 pessoas aguardam a oportunidade de poder entrar
no lixão da Alemoa, onde é despejado todo o lixo de Santos. Crianças, mulheres grávidas, jovens e velhos. Ninguém usa luva, alguns calçam
botas. Carregam sacolas, carrinhos, uma história de sofrimentos e a esperança de dias melhores.
II - Maria sai com uma lata cheia na cabeça. Lavagem para os porcos. Os
porcos são a certeza de não morrer de fome. O marido, alcoólatra, faz quebra-quebra em casa, espanca ela e os filhos. Promete matá-la. Maria passa
noites em claro, com medo. Ele é capaz de qualquer coisa e já provou isso uma vez: despejou água fervendo em seu ouvido, enquanto dormia. Ficou
entre a vida e a morte, não escuta quase nada com aquele ouvido e ostenta uma enorme cicatriz no rosto e no pescoço. Já tentou mandá-lo embora,
mas ele se recusa, sempre volta. Para ir de vez, pede uma recompensa em dólares. Maria conta essa última parte da estória rindo: seus olhos se
iluminam por instantes, joga a cabeça para atrás num gesto de alegria e a gengiva desdentada fica à mostra.
III - Até hoje Das Dores não se conforma como aquilo pôde acontecer bem em
frente da sua porta. Os tiros soaram, quebrando o silêncio da noite, e o corpo caiu estremecendo, o sangue juntando-se à lama. Morria o filho mais
velho da vizinha, o que estudara com sacrifício, conseguira um emprego num escritório e garantia a sobrevivência da família. Desde então, Das
Dores tem mais uma companheira para catar restos.
IV - Francisco Pereira está desempregado há um ano. Não consegue nem mesmo
empregos temporários. Pesca siri no mangue, mata preá para comer. Recolhe alumínio e cobre no lixão para vender: em dia de sorte, consegue fazer
Cr$ 500,00. Às vezes, retorna ao barraco de mãos vazias. Como encarar os filhos de dois anos, um ano e quatro meses de idade?
V - Histórias que se ouve no lixão. Nunca exatamente iguais, mas
todas marcadas pelo desespero, revolta, conformismo e miséria.
Até crianças em meio aos dejetos e detritos
O lixão e a poluição do Estuário
O mesmo lixão que livra muita gente de morrer de fome
é tido como um dos focos poluidores das praias de Santos. Embora compactados, os detritos escorregam pelo mangue até o leito do Rio Cubatão e, a
partir dele e de seus afluentes, atingem o mar.
O pior é que não apenas um, mas dois lixões contribuem com as más condições das praias. Como se não
bastasse aquele onde a Prodesan descarrega o lixo de Santos, há um outro, pegado, de uso da Codesp: nele joga-se desde madeira até produtos
químicos dos mais variados, numa mistura perigosa e de conseqüências imprevisíveis para a ecologia.
Ninguém pode negar que o problema se configura como bem grave, pois, em 1981, o capitão dos Portos, Adhemar
Soutinho, não hesitou em mencionar o lixão e as condições do Rio Cubatão como diretamente vinculados a um exame que fez sobre as condições do
Estuário e das praias de Santos.
Quem se dispõe a tomar providências?
A família vive em uma ilhota tranqüila, cheia de árvores
Na Ilha dos Limões, ainda se toma banho num córrego
Por incrível que pareça, em Santos ainda há gente que toma
banho e lava roupa num córrego, como nos velhos tempos em que ninguém tinha água encanada em casa.
Isso acontece na Ilha do Limão, uma ilhota dessas que só se vê em filmes e gibis, cheia de árvores que se
remexem ao sabor do vento e com uma única casa bem no meio. Fica nos fundos das instalações da Cortez e está ligada a Alemoa (da qual é
considerada parte) por uma pinguela de uns dois metros de comprimento.
Nesse reduto onde ainda não chegou eletricidade e nem água encanada, Maria de Lourdes da Silva Souza vive há 35
anos. Primeiro em companhia do avô e dos pais; agora com o marido e os filhos. Sempre gostou daquilo ali, acostumou-se a tomar banho e lavar roupa
no córrego. Mas como manter junto a si os filhos, encantados que andam com o mundo cá de fora?
Segundo Maria de Lourdes, o avô aforou aquele pedaço de terra e deu-lhe o nome de Ilha do Limão, devido à grande
quantidade de limoeiros. O pai construiu o barraco, que continua de pé. Só que, num dia de vento e chuva forte, a cozinha desabou, deixando à
mostra o fogão de lenha, arredondado, raríssimo hoje em dia.
A casa bem que precisa de uma reforma, mas Maria de Lourdes está com medo: aparecem pessoas ligadas a uma
empresa, se dizendo donas da terra e dispostas a impedi-la de fixar um único prego no barraco. As ameaças estão lhe tirando o sono, principalmente
porque não tem documentos para provar que mora ali todos esses anos.
Não sabe o que fazer, nem a quem apelar, e fica imaginando uma saída enquanto caminha entre a jaqueira, os
chapéus-de-sol e os coqueiros plantados por seu avô. |