Pescar siri e caranguejo no Rio Cubatão, atração também para pessoas de outros bairros
Um distrito industrial que cresce e se firma
Não tem dia e nem hora certa: a qualquer momento, um cheiro
estranho pode tomar conta do ar. Ou um pó fino cair sobre os telhados, as árvores, o asfalto negro das ruas.
Tudo porque na Alemoa está concentrado o maior parque industrial de Santos. Só há indústrias leves, tidas
como não poluentes. Mas quem suporta o cheiro de produtos químicos, que perturba, sufoca?
Os trabalhadores são obrigados a agüentar. Especialmente eles, porque a população da Alemoa é muito pequena e
está concentrada no Jardim Piratininga, que fica quase na divisa com Cubatão.
Apesar de dispor de uma área de 280 hectares - três vezes maior que a da Encruzilhada e quase seis vezes a do
Paquetá - vivem nos limites da Alemoa não mais que 2.100 pessoas. Seu índice populacional não se iguala nem ao do Paquetá, que além de bem menor
perdeu a característica de residencial: ainda assim, moram nesse bairro mais de quatro mil pessoas.
A área ocupada pelo Jardim Piratininga não corresponde nem a cinco por cento do total, mas é justamente nela que
vive a quase totalidade da população da Alemoa. No restante do bairro moram bem poucas famílias, espalhadas entre as indústrias, os armazéns e os
matagais.
Armazéns, tanques e bares onde se divide a tristeza - O que domina a paisagem, principalmente quando se
olha do alto do viaduto da Alemoa, inaugurado recentemente, são os enormes tanques prateados, brilhantes como eles só nos dias de sol. Tanques da
Mobil Oil, da Petrobrás, da União e muitas outras, carregados de produtos químicos perigosos. Nem dá para se imaginar a proporção da tragédia,
caso aconteça um acidente com algum deles.
Com as indústrias, vieram os caminhões
Além
desses tambores, chamam a atenção os enormes armazéns, de onde entram e saem caminhões velozes. Aliás, quem conhece a Alemoa sabe que é mais fácil
cruzar com dez caminhões em uma rua do que com um único carro de passeio.
E como não perceber que os bares multiplicam-se feito abelhas em uma colméia? Na Rua Augusto Escaraboto, ficam
grudados uns aos outros, convivendo sem maiores problemas, porque não falta freguesia em nenhum. Há sempre um trabalhador para tomar um gole de
cachaça, jogar uma partida de sinuca, comprar um pirulito ou uma bala para o filho que espera ansioso em casa.
São homens simples, de mãos calejadas e roupas toscas, bem parte daquele mundo peculiar determinado pelos
barracos de madeira, que parecem não resistir à próxima chuva forte. Nas prateleiras, as garrafas de pinga permanecem encobertas pelo pó e, no
balcão encardido, de madeira, corações desenhados, nomes de mulheres, declarações de amor.
Ah, como são folclóricos esses bares! Imaginem que, para chamar a atenção da freguesia, os donos escrevem com
giz, nas paredes, o prato do dia. As letras disformes, tortas, desalinhadas, cumprem a função de anunciar: "Hoje tem sarapaté", "quinta-feira,
aquela dobradinha", "Amanhã, carne-de-sol com farofa". E por aí vai.
No final das contas, esses bares representam mais do que um lugar onde os trabalhadores almoçam ou tomam um
trago: ali os homens reclamam do custo de vida, dividem suas mágoas e angústias.
Os pássaros resistem nas matas e no rio há peixe e caranguejo - O sossego que eles procuram não é aquele
sossego das áreas verdes da Alemoa. Quem observa o bairro de longe, quando passa na Via Anchieta ou na Imigrantes, talvez não saiba que resta
muito verde naquela imensidão. Não predomina nenhuma mata exuberante, dessas bonitas de se ver e sentir o cheiro, mas pelo menos tem muita
bananeira, goiabeira, coqueiro, capiá e mato rasteiro, cheio de preás.
A molecada de bairros vizinhos gosta de andar por lá. Some por alguns momentos entre as árvores e volta com três
ou quatro preás na mão, um cacho de coqueiro, uma borboleta escondida em uma caixa.
Passarinho tem em boa quantidade. E ninguém melhor para dizer isso do que o Jorge Ferreira da Costa, funcionário
de A Tribuna que mora na Alemoa, perto da torre de transmissão das rádios A Tribuna e Atlântica. Vive com a mãe, uma
benzedeira muito conhecida, e três filhos, e cuida para que as emissoras se mantenham no ar.
Nos momentos de folga, anda às voltas com os passarinhos. Para desespero dos ecologistas, mantém muitos deles em
gaiolas: coleirinha, sabiá, pixoxó e os lindíssimos cardeal e sangue-de-boi. Jorge cuida também nada menos que de oito cachorros e pretende colher
muita batata-doce e feijão na horta que está preparando. Espaço para plantar não falta: seu quintal não tem muros e o vizinho mais próximo mora a
muitos metros de distância, na beira do Rio Casqueiro.
"Vizinho? Eu não tenho vizinho", diz o Marcos Veiga. "E eu, o que sou?", pergunta o Jorge, e o primeiro
responde: "Ah, eu posso brigar em casa que você não escuta".
Pois esses vizinhos distantes gostam de coisas diferentes. O Jorge, como já sabemos, se diverte com os
passarinhos e cachorros, e o Marcos se delicia com uma boa pescaria. Parece mentira, mas o Rio Casqueiro, apesar de encardido e maltratado por
produtos químicos, ainda dá peixe. O Marcos já cansou de pescar tainha e robalo.
Caranguejo e siri também tem em boa quantidade, tanto que vem gente de bairros distantes da Zona Noroeste atrás
deles. Mais bonitos do que os peixes prateados e os caranguejos se remexendo no fundo de uma lata, só mesmo os colhereiros, pássaros avermelhados
que chegam com o verão e dão um pouco de colorido à cinzenta Alemoa.
Empresas chegam, outras se expandem e moradores partem para nunca mais - Pois é: tem muita gente dizendo
que a Alemoa se torna cada vez mais cinzenta e não presta para se morar. A cada dia chegam novas empresas, dispostas a crescer e ocupar todos os
espaços disponíveis.
Escolhem o bairro onde funciona a Usina de Asfalto da Prodesan (conhecida por aí afora, pois vende seu produto
para outros municípios, para a Dersa e o Departamento de Estradas de Rodagem - DER) e onde a Codesp mantém instalações especiais para líquidos a
granel. O chamado Terminal da Alemoa dispõe de um pier com 631 metros de comprimento, quinze tanques para depósito de produtos a granel e
dois galpões para inflamáveis embalados. Duas linhas de dutos interligam esse terminal com o da Ilha Barnabé.
Cada vez mais a Alemoa se consolida como um pólo industrial, e isso assusta muita gente. "Estamos vivendo aqui
de teimosos. Não dá mais", comenta Eronilde Silva Zwarg. Ela mora há 15 anos em uma das casas da Matarazzo e relembra com saudades o tempo do ar
puro, dos sítios e da granja enorme, onde se criava umas 50 mil galinhas. Hoje em dia, tem que conviver com o pó de carvão irrespirável que
caminhões lançam bem na sua porta.
Eronilde não vê a hora de ir embora, mas, em compensação, Alberto Santiago confessa que passa seus melhores
momentos na Alemoa. Trabalha lá e arranjou um canto para plantar milho e feijão. Gosta de cuidar da chacrinha: fica por lá e deixa o
apartamento onde mora de lado.
Dona Cecília, benzedeira desde os 11 anos
Dona Cecília, benzedeira desde os 11 anos de idade
O silêncio toma conta da pequena sala. Todos guardam com
respeito os momentos em que dona Cecília realiza seus rituais mágicos. Compenetrada e tranqüila ao mesmo tempo, movimenta as mãos, faz gestos
incompreensíveis, repete baixinho palavras que ninguém consegue decifrar. Reza, abençoa. É benzedeira.
Cecília da Costa Neves era apenas uma menina, mal entendia direito esse mundo quando um padre, tio de sua mãe,
entregou-lhe um livro de orações. Ao fazer isso, atribuiu-lhe uma missão que a acompanhará até o último dos seus dias: a missão de afastar coisas
ruins das crianças, acabando com a choradeira, a falta de apetite e de sono.
Nunca reclamou de largar o descanso ou adiar a conversa com os netos para atender quem chega. A mãe desesperada,
que vem em busca do alívio para o filho e para si, não pode esperar.
Lá vai dona Cecília, mais uma vez. Hoje, aos 80 anos de idade, já perdeu as contas de quantas crianças benzeu
nos últimos 69 anos. Milhares, com certeza, pois até hoje forma-se fila em frente à sua porta. Vem gente de todos os cantos de Santos, até de São
Paulo: uma média de 50 por dia.
"Não sou eu quem cura. É Deus", diz dona Cecília, com muita tranqüilidade.
Que mistério será esse que cerca as benzedeiras? Nem dona Cecília sabe. Só tem certeza de um a coisa: quando
estiver para morrer, vai ter um sinal. Então, ensinará as rezas para alguém.
E a tradição de se benzer crianças se perpetuará por novas gerações. |