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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
A estranha última visita do 'Al Johffa' a Santos

Em 1996, violenta tempestade causou o encalhe, na entrada da Baía de Santos, do cargueiro panamenho Al Johffa (ex-Santa Maya em 1971 e Santa Maja em 1976). A embarcação de 141 metros de comprimento e 20,5 m de boca pertencia à armadora Ruypin Int. Co. e havia sido construída em 1972, viajando à velocidade de 14 nós. Declarada perda construtiva total, foi desencalhada tendo como destino algum estaleiro especializado em demolição.

Porém, um mistério cercaria o final do navio: em vez disso, ele foi levado para alto mar e afundado, numa operação que a imprensa foi impedida de acompanhar (as fotos desta página foram distribuídas pela empresa Titan Maritime, responsável pelo desencalhe). Anos depois, ainda persiste um certo mistério: por quê o cargueiro sinistrado não foi levado para um local que permitisse a demolição, em vez de se optar por seu afundamento?

Em 25/3/1996, o cargueiro foi afundado a 120 milhas (220 km) da costa paulista,

em local com 1.200 metros de profundidade

Foto publicada com a matéria

Al Johffa

José Carlos Rossini (*)

O aparecimento de uma nova geração de navios de desenho standard (N.E.: padrão) deu-se na década de sessenta (N.E.: 1961/70) com a necessidade, por parte dos operadores, de substituir a tonelagem envelhecida dos navios do tipo Liberty produzidos durante a Segunda Guerra Mundial.

Um dos produtos dessa nova geração de cargueiros standards foi a versão SD-14 de navios desenhados e construídos pelos estaleiros Austin & Pickersgill, em Sunderland, no Reino Unido, dos quais foram lançadas diversas centenas de unidades.

O desastre - A saga do navio cargueiro do tipo SD-14 - MK IV, Al Johffa, em Santos, iniciou-se numa segunda-feira, 12 de fevereiro de 1996, com a chegada de uma frente atmosférica de baixa pressão no litoral do Estado de São Paulo, frente fria essa que naturalmente provinha do Sul do continente.

O Al Johffa, procedente de Mombasa, no Quênia, havia chegado a Santos na sexta-feira, dia 9, com seus porões vazios, pois deveria embarcar um carregamento de 15.000 toneladas de açúcar. Os ventos de Sul-Sudeste que acompanharam a frente de instabilidade chegaram à região na manhã do dia 12, à velocidade de 60 quilômetros horários e com rajadas atingindo pontas de 80 a 90 km/h. O céu fechou-se por completo e o mar encapelou-se com ondas de quatro metros.

Por volta das 11h00, o Al Johffa, que se encontrava fundeado no limite da boca da barra (24º05'04" S e 46º19'09" W), com o mar grosso perdeu uma de suas duas âncoras (a de boreste) e a restante (a de bombordo), embora arriada, não foi suficiente para segurar o navio.

O cargueiro foi então desgarrado e, estando sem peso, foi levado facilmente pelo vento e mar em direção ao costão Norte da baía. O comandante Kashyapa ordenou no entretempo que os motores fossem ligados, mas estes, estando imobilizados há vários dias, não puderam ser acionados em tempo, e assim o Al Johffa foi arrastado de popa durante cerca de uma hora, até encalhar nas pedras do Morro da Barra, a cerca de cem metros da ponta Sudeste da Ilha das Palmas.

Sua tripulação de 32 homens nada sofreu, mas, em conseqüência do choque com as lajes e pedras submersas, o navio teve seu costado de bombordo aberto numa brecha de quase 15 metros, o que provocou inundações nos porões de números 1, 2 e 3. A praça de máquinas à popa não sofreu danos ou infiltrações d'água. A Polícia Naval da Capitania dos Portos do Estado de São Paulo imediatamente abriu inquérito sobre o ocorrido e ordenou a inspeção do navio.

Desencalhe - Entre as providências solicitadas pelas autoridades, à companhia armadora e ao representante do pool de seguradoras, a mais importante foi a retirada de 440 t de óleo combustível que se encontrava num dos tanques de popa. Tal medida visava evitar qualquer forma de poluição futura com danos ambientais. Contemporaneamente aos trabalhos de retirada do óleo do navio, foram elaborados os primeiros planos de desencalhe, com vistorias submarinas de seu casco.

No dia 1º de março, a armadora proprietária, considerando a idade avançada do cargueiro, os custos de reflutuação e reparos, decidiu declarar o Al Johffa como perda construtiva total, decisão que alterou o quadro jurídico da questão. Sua propriedade passou então às companhias seguradoras, que decidiram resgatar o navio de sua posição de encalhe e posteriormente vendê-lo para demolição ou afundamento.

Após licitação aberta pela Capitania dos Portos, foram apresentados três projetos de resgate por empresas especializadas em salvamento marítimo. Estudos se seguiram e, ao término dos mesmos, a tarefa foi atribuída à Titan Maritime Ind., firma norte-americana.

Uma vez assinados os contratos, a Titan passou, a partir de 8 de março, à realização dos trabalhos preliminares nas obras mortas do cargueiro, iniciando-se pela vedação dos conveses intermediários com chapas de aço reforçadas por vigas. Trinta e sete dias depois do encalhe e onze após o início dos trabalhos preparativos, na tarde de terça-feira, 20 de março, com tempo encoberto e mar de pequenas vagas, o Al Johffa foi finalmente liberado das pedras pela ação dos rebocadores Phoenix e Bellatrix.

Viagem final - O resgate aconteceu com o Bellatrix puxando de popa (a parte do navio que ficara mais fora d'água) ao mesmo tempo em que se injetava ar comprimido nos porões 1 e 2, a fim de expulsar os bolsões de água.

A cena foi assistida por um pequeno número de pessoas presentes na Ilha das Palmas e em diversas embarcações. Na lancha da Capitania dos Portos, dirigindo a operação, encontrava-se o capitão-de-mar-e-guerra Gilberto Roque Carneiro, representante da Marinha em Santos. A bordo do Al Johffa, além dos técnicos da Titan, encontravam-se dois práticos de Santos e um oficial da Capitania.

Safado das pedras após duas horas de esforços, o cargueiro foi fundeado nas proximidades da Ilha da Moela, onde permaneceu por cinco dias. Foram então retirados de bordo os equipamentos que serviram aos trabalhos de resgate e algumas peças de náutica.

No domingo de manhã, 24 de março, o Al Johffa iniciou sua última viagem, levado a reboque pelo Phoenix. O SD-14 encontrou sua derradeira posição no fundo do mar, ao ser afundado propositadamente na tarde de segunda-feira, a cerca de 110 milhas da costa do Estado de São Paulo.

(*) José Carlos Rossini é pesquisador de assuntos marítimos, residente em Genebra (Suíça), e autor, entre outros livros, de "Sinistros Marítimos - Costa do Estado de São Paulo - 1900-1999", edição do autor, 1999, de onde foi transcrito este relato.

Em 25/3/1996, o cargueiro foi afundado a 120 milhas (220 km) da costa paulista,

em local com 1.200 metros de profundidade

Foto publicada com a matéria

Artigo publicado no jornal santista A Tribuna em 5 de abril de 1996:

Ilustração de Seri, publicada com a matéria

ESCRITOS

Adeus Al Johffa

Narciso de Andrade (*)

Colaborador

Mexe com a sensibilidade da gente esse negócio de afundar, de propósito, um navio. Não sei como explicar, mas os navios transcendem ao simples espaço utilitário de meio de transporte marítimo. Há neles uma sugestão de velas infladas por ventos generosos, como acontecia no tempo das navegações em rotas desconhecidas no exercício exemplar da descoberta dos mundos além do discurso corriqueiro dos mapas. É preciso não esquecer que descendemos de um povo de sonhadores marítimos em diálogo constante com infinitas distâncias até conseguir confirmar o mundo maior onde habitamos.

Esta marca de origem, embora diluída no correr dos anos, é inapagável: por isso, esta paixão pelo mar, suas coisas, sua gente, seus mistérios. Por isso, sabemos sentir, assim como sentem outros povos saídos do mar pela mão dos antepassados, a dor mais aguda da tristeza de um naufrágio. De uma certa forma, quem comanda um navio está repetindo o gesto do descobridor e os aparelhos sofisticados dos nossos dias, no fim da rota traçada, repetem sempre a mesma mensagem: "terra à vista".

O Al Johffa tinha vinte e quatro anos de navegação quando fundeou na Barra de Santos. Era o dia 9 de fevereiro, sopravam fortes ventos e o cargueiro foi arrastado, encalhado perto da Ilha das Palmas. Isso se dá entre as 22 horas do dia 9 de fevereiro e as doze horas do dia 12.

É muito triste o cenário de um navio encalhado na inércia que contraria seu destino natural de ave itinerante, n'ave. E tudo é feito, tudo é tentado para conseguir libertá-lo dos tentáculos de lama e pedra, seja lá o que for, que o aprisionam. Dias durou a luta mas o Al Johffa estava condenado a não sair com vida dali, daquele trecho de mar a emoldurar a beleza perene e tranqüila da Ilha das Palmas. Mas o navio foi libertado. Tiveram êxito as operações de salvamento. Já era tarde, a ordem foi para rebocá-lo até alto-mar e, no local escolhido, afundá-lo.

A cobertura deste jornal aos acontecimentos deste naufrágio premeditado foi de uma fidelidade comovedora. Textos enxutos de absoluta objetividade, sem qualquer pieguice; por isso, mesmo antes, conseguindo transmitir toda a dramaticidade daquilo que estava acontecendo em águas santistas. O comandante do rebocador Phoenix, encarregado da dolorosa operação, disse que o navio afundou de proa "em um espetáculo comovente e triste, ao mesmo tempo".

Várias pessoas com quem conversei, alguns ligados às coisas da vida marítima, outros não, foram unânimes em confessar um sentimento inexplicável, frustração, desencanto por ter sido afundado o navio depois de salvo do encalhe em operação demorada e difícil... Qualquer coisa de inexplicável, de irrisório, de absurdo. Não sei qual a palavra mais certa para definir o sentimento da gente. Na verdade, nem tudo pode ser explicado quando estamos diante do insólito.

Fico imaginando o que não faria Francisco De Marchi com um material como esse, ele que era o grande contista do insólito. E a análise contundente e ao mesmo tempo plena de lirismo de meu grande poetirmão, Roldão Mendes Rosa. Há detalhes de melancolia, de inconformação, de desencanto, sei lá, a toldarem a nitidez dos fatos. Parece um crime premeditado essa história de afundar um navio friamente, só porque não mais proporcionaria rendimento justificável à sua recuperação e operação. Sinal dos tempos, inexorável sinal dos tempos.

Falei da objetividade dos textos narrativos da odisséia final do Al Johffa. Mas há uma traição do subconsciente de quem elaborou o dia-a-dia das ocorrências (26-2-96).

O Al Johffa afunda, deixando de ser visível na superfície do mar. Ele repousa a 120 milhas (220 km) da costa, a uma profundidade de 1.000 metros.

Repousar foi o verbo escolhido, dando um toque de humanidade ao relato. Só resta acrescentar a unção antiga do Latim Litúrgico: Requiescat in pace. (N.E.: significando: Descanse em paz).

(*) Narciso de Andrade é poeta e advogado

Primeira página de A Tribuninha, suplemento infantil semanal de A Tribuna, de 6 de abril de 1996

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