PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
III - O verdadeiro histórico da questão
O artigo segundo da série é consagrado
pelo seu autor ao histórico da questão, e à sua razão de ser. Entende o sr. Saturnino de Brito que "quem houver de projetar os esgotos tem por dever
projetar as ruas futuras, se não houver na ocasião um plano geral, organizado pelo poder competente, que é a Municipalidade".
Desde, pois, que, na opinião de s.s., na época de executar-se o serviço de esgotos, que é
municipal, a Câmara, por qualquer motivo, deixa que outro agente projete e execute aquele serviço, de sua alçada exclusiva, abre mão de sua
competência e de sua autonomia, que passam a ficar subordinadas ao outro agente que, no caso em discussão, é o Governo Estadual, representado pela
Comissão de Saneamento.
Ora, para discutir-se lealmente este ponto, é necessário remontarmos a mais longe o histórico da
questão, cujo início o sr. Saturnino de Brito faz partir erroneamente da época em que se deu começo prático à execução das obras de saneamento em
Santos.
É certo que a Lei Orgânica atribui às Câmaras Municipais a competência de providenciar sobre o
serviço de esgotos; e a Lei n. 240, de 4 de setembro de 1913, dá-lhes ainda a atribuição de tratar do saneamento local, em todos os seus detalhes,
podendo o governo subvencionar aquelas que demonstrarem insuficiência de meios para as despesas respectivas.
O art. 5º da Lei n. 240 dispõe, outrossim, que, enquanto não estiverem definitivamente organizados
os serviços de higiene municipal, e em épocas excepcionais, poderá o Governo do Estado chamar a si os encargos e atribuições que são da competência
das municipalidades.
O que se deu com a cidade de Santos, ao tempo em que ficou resolvido saneá-la, foi exatamente o
que prevê o artigo acima citado: os serviços de higiene não se achavam organizados, e atravessávamos uma época excepcional, a braços com o
irrompimento de uma nova e terrível epidemia de febre amarela.
Foi então que o Governo do Estado, tendo em vista o descrédito crescente em que soçobrava a
reputação de nosso porto principal, resolveu enfrentar, enérgica e decisivamente, o problema de seu saneamento definitivo. O que influiu no espírito
da alta administração estadual não foi meramente o propósito cavalheiresco e generoso de dar a Santos as condições normais de salubridade, que lhe
faltavam; o que o levou a essa patriótica resolução foi o interesse da segurança do Estado.
A febre amarela já não se limitava mais ao território santista; tinha galgado a serra, invadido a
capital e estabelecido seu campo de ação nas férteis zonas do chamado Oeste. Campinas, Jaú, Descalvado, Limeira e outras muitas localidades
importantes, núcleos de imigração e de trabalho agrícola, tinham sofrido a invasão da epidemia.
Sanear Santos era, pois, defender a integridade do território do Estado, a vida dos habitantes do
interior, os seus vastos campos de lavoura; era atrair a corrente imigratória, indispensável à exploração dos produtos do solo paulista; era chamar
de novo, ao nosso porto, os navios das nações com quem tínhamos relações comerciais e que daqui se afastavam, comprometendo gravemente os mais
respeitáveis interesses de nossa vida econômica.
"É preciso, à custa de todos os sacrifícios, sanear a cidade de Santos", escrevia ao presidente de
então, em caráter oficial, o dr. Vicente de Carvalho, secretário do Interior, a quem coube a glória de dar o primeiro impulso ao problema, chamando
para estudá-lo um especialista afamado da Norte-América, o engenheiro dr. Fuertes.
Assim, pois, o que forçou o Governo do Estado a projetar o saneamento de Santos não foi nenhum
motivo de ordem local: foi a defesa geral do território paulista e do nosso futuro econômico que se encontrava em perigo. Se a questão da
salubridade de Santos interessasse apenas à vida local, é possível que o seu saneamento fosse feito aos poucos, à proporção dos nossos próprios
recursos, e sob a responsabilidade exclusiva das administrações municipais.
Reconhecido, porém, que o saneamento de nosso porto e cidade era uma questão vital para os
interesses primordiais do Estado, o governo paulista não podia obrigar nem exigir que a Câmara, com os seus escassos rendimentos orçamentais,
mandasse executar uma obra que importaria, pelo menos, em soma equivalente a mais de 20 anos da totalidade de nossa arrecadação.
Desde que se tratava da defesa do Estado, era a este que cabia, logicamente, assumir as
responsabilidades e encargos de obras tão complexas e tão custosas. A Municipalidade, portanto, não abriu mão de sua competência no assunto, como se
afigura ao sr. Saturnino de Brito. Sendo do interesse dos dois poderes as obras executar-se, e dispondo o Estado de recursos financeiros para
dar começo aos trabalhos e levá-los a cabo, incumbiu-se deles, cabendo, todavia, à Municipalidade reembolsá-lo de todas as despesas feitas.
Quem lê o que o sr. Saturnino de Brito escreve, enaltecendo o Governo Estadual, pensa que este
entregou Santos saneada à respectiva Municipalidade, sem exigir dela o menor sacrifício, o que é uma pura ilusão. A taxa de esgotos, que pertence ao
Município, está sendo arrecadada pelo Estado, até completa indenização dos gastos operados.
O que o governo fez, levado, aliás, por uma necessidade urgente de salvação pública, foi dirigir
as obras e adiantar ao Município de Santos o preço de seu custeio. Era natural, entretanto, que, sendo a obra levada a efeito no interesse da defesa
geral do Estado, este, a quem ela aproveitou grandemente, contribuísse, dentro dos seus orçamentos, para a sua execução, não se limitando apenas a
adiantar, como fez, as quantias de que se vai cobrando regularmente todos os anos.
Uma vez, portanto, que o Estado não fez o saneamento de Santos senão dominado pelas mais prementes
circunstâncias de ordem geral, e que assim mesmo não contribuiu comum ceitil de suas rendas para essas obras, tão imperiosamente exigidas, mas
apenas adiantou aos cofres do Município as quantias necessárias à realização delas, não se pode afirmar, de boa fé, que a nossa Municipalidade tenha
declinado de sua competência e fugido à responsabilidade de seus encargos legais, que vai suportando até agora e suportará por longos anos ainda.
O que é fora de dúvida é que a Administração Municipal faria mais tarde o saneamento, como tem
feito outras obras, à medida que os seus recursos, aumentados com a renda dos esgotos, que é paga ao Estado, o permitissem, e realizando, mesmo, as
operações de crédito indispensáveis à grandeza da obra.
Mas, o que o Município de Santos não podia, mormente naquela época, era atender ao aflitivo apelo
do Estado, que precisava, a todo o transe, defender seu território, seus habitantes válidos, seu comércio, sua economia, contra os incalculáveis
prejuízos que lhe acarretavam, no momento, as assolações epidêmicas da febre amarela. O que ele pôde fazer, fez, entretanto, com o mais denodado
desprendimento, assumindo, sozinho, por dilatados anos, a responsabilidade dos compromissos tomados em favor dos interesses de todos.
É, pois, desse início que deve partir o histórico da questão, que o sr. Saturnino de Brito se
propôs narrar, para conhecimento do público.
Prosseguindo nas suas considerações, o ilustre engenheiro aprofunda-se em cogitações respeitantes
ao conceito jurídico de autonomia municipal e prerrogativas que desta decorrem.
A Constituição Federal, em artigo simples, conciso,
categórico e claro, prescreve apenas que "Os Estados organizar-se-ão de forma que fique
assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeita ao seu peculiar interesse".
O afamado sanitarista, por uma sutil interpretação, que lhe assegura os créditos de jurisconsulto
art-nouveau, entende que as "Câmaras, para gozarem da autonomia que a Constituição
define para as administrações capazes de se governarem autonomamente, será preciso que elas cuidem de fazer todos os trabalhos reclamados
urgentemente, como de salvação pública".
Pondo de lado a redação gramatical desse período, que, sobre deselegante, é péssima, quedemo-nos,
embasbacados, diante da sapiência jurídica deste constitucionalista de repica-ponto.
A Constituição manda que a autonomia dos municípios seja assegurada pelos Estados, simplesmente e
nitidamente. O sr. Saturnino, porém, exige uma condição preliminar para essa autonomia: que as administrações sejam capazes de se governar
autonomamente. Sem que essa condição exigida por Brito seja cabalmente preenchida - ponhamos de lado as nossas veleidades autonômicas.
Mas, a prova de que as administrações são capazes de se reger autonomamente, em que consiste?
Responde-nos Brito, no período acima transcrito na íntegra: é preciso que cuidem de fazer urgentemente todos os trabalhos reclamados. Com tal
exigência, é evidente que não poderia existir no Brasil nenhum só município autônomo, porque não há um só que seja capaz de fazer urgentemente todos
os trabalhos reclamados pelas necessidades locais.
O saneamento de Santos está se fazendo há longos vinte anos, e ainda não se acha pronto. Nestas
condições, e diante das exigências de Brito, nem o próprio Estado de S. Paulo pode aspirar aos foros de município autônomo, quanto mais ao de estado
modelarmente constituído!
E o chefe da Comissão de Saneamento continua, em colunas cerradas, a combater a autonomia
municipal. "Pela Constituição - diz ele
- os municípios serão autonômicos. Entretanto,no Distrito Federal, o prefeito é nomeado pelo
presidente da República". Esquece-se, ou antes, ignora o sr. Saturnino que é a própria
Constituição da República que estabelece essa exceção, pela inconveniência de existir na sede do Governo um poder autônomo em contraste com o do
presidente? A nomeação do prefeito do Distrito Federal resulta de um preceito constitucional positivo, que determina que esse Distrito seja
administrado pelas autoridades municipais, salvas as restrições especificadas na Constituição e nas leis federais.
Como os Estados devem se organizar, respeitando os princípios constitucionais da União, não são
ilegais as nomeações dos perfeitos de Recife, de Niterói e de Belo Horizonte, capitais de Estado. Militam em favor dessas exceções os mesmos motivos
constitucionais relativos ao Distrito Federal.
Mas, atentaria contra a Constituição da República, destruindo o regime da autonomia municipal, que
ela garante, qualquer lei generalizando a todos os municípios a prerrogativa, concedida constitucionalmente ao chefe da Nação e aos chefes dos
Estados, de nomear livremente os prefeitos das suas capitais.
A nomeação dos prefeitos das estações de águas em Minas, a que também alude o sr. Brito, é
flagrantemente inconstitucional, embora haja razões superiores que a expliquem. Não é porque o Estado tenha feito obras nessas estações que ele
nomeia os prefeitos. É porque as águas, que são a vida de tais localidades, pertencem ao Estado e são exploradas por ele, diretamente, ou por
concessões a arrendatários. Mesmo assim, semelhante processo é ilegal, porque a Constituição da República não cogitou da exceção a não ser para a
sede do Governo Federal.
E, na sua faina de tudo reformar, cidades, códigos, doutrinas e leis, o sr. engenheiro-chefe, não
contente com propor à Câmara de Santos uma reforma errada da cidade, propõe a seguinte reforma ao preceito da autonomia municipal: "O
governo nomeará os prefeitos das cidades onde o Estado tenha executado serviços municipais". E
acrescenta, à guisa de comentário e de reprimenda: "Paguem as cidades os trabalhos executados
pelo Estado e gozem então da autonomia municipal".
Ora, como a cidade de Santos paga pontualmente, todos os anos, ao estado, por conta das obras
executadas, a renda dos impostos municipais de esgotos - segue-se que ela se acha compreendida entre aquelas que, no entender do eminente
sanitarista, estão aptas para gozar da sua autonomia.
Em apoio de suas opiniões, cita o sr. Saturnino de Brito, a Alemanha e a Bélgica, onde os
conselhos municipais são legalmente obrigados a sujeitar à superior administração daqueles países os planos de expansão das respectivas cidades.
Parece incrível que um homem, cujo cérebro se deveria ter disciplinado no estudo metódico da
Matemática, que ensina a ser lógico e a ser positivo, invoque em abono das proposições que avança, argumentos deste jaez, que envergonhariam a um
incipiente aluno de Preparatórios.
Em primeiro lugar, lá existe a lei obrigando as municipalidades a tal subordinação; aqui, ao
contrário, a nossa lei fundamental forra os municípios a essa absurda sujeição, incompatível com as regalias do regime autonômico puro.
Em segundo lugar, não se devem comparar velhos países monárquicos, de tipo retrógrado, nos quais o
poder central tudo absorve e domina, com um país novo, como o nosso, com a sua organização republicana, baseada na mais lata descentralização
política e administrativa.
Evocá-los como exemplos e modelos, que nos devam guiar e orientar em nossos cometimentos, é
renegar a conquista republicana, é quer que, sob o rótulo exterior de república, abriguem-se em nosso país as instituições que caracterizam o regime
monárquico e que daqui foram banidas por contrárias às correntes da evolução brasileira.
Aliás, não precisava o sr. Saturnino de Brito socorrer-se da legislação estrangeira e do exemplo
das monarquias européias, em proveito de suas opiniões, aberrativas do senso republicano. Nós tivemos o exemplo em nossa própria casa, no tempo do
Império.
Debaixo desse regime, as nossas Câmaras não podiam fazer vigorar seus orçamentos e nem executar
suas posturas, sem prévia discussão e aprovação das Assembléias Provinciais e dos presidentes das províncias. Era um sistema análogo ao da Alemanha
e ao da Bélgica. Mas foi justamente para eliminar semelhante sistema, inibitório da necessária expansão das forças locais, que se fundou a
República, com a instituição básica da organização autonômica dos municípios, como a pregavam os chefes republicanos no tempo da propaganda.
Vem agora o sr. Saturnino de Brito reclamar, com impertinência e azedume, a volta ao velho
sistema, imprestável e anti-republicano, somente porque a sua vaidade profissional exige que se imponha à Câmara de Santos a aprovação de um plano
errado, destituído de estética e de conforto, e incompatível, pela sua careza, com os recursos financeiros do nosso tesouro local.
O que ressalta de tudo isto é que o sr. engenheiro-chefe, com uma deplorável deficiência de
lógica, estranhável sobremodo num matemático positivista, de polpa e de topete, argumente com uma organização municipal que ele desejaria que
existisse, e não com a que existe, real e constitucionalmente. O sr. Saturnino de Brito sonha com o Município de Santos escravizado aos caprichos de
sua Comissão e ao arbítrio do Governo Estadual - sem a prévia reforma da Constituição da República; como sonhou com a gigantesca e maravilhosa
reforma da cidade - sem inquirir previamente onde encontrar dinheiro bastante para essa obra caríssima.
S.s. é um sonhador, é um delirante, é um vigilâmbulo, sonha acordado, vive sob a influência
auto-sugestiva das desvairadas inspirações de sua ardente imaginação, estimulada pelo seu orgulho.
Imagem: reprodução parcial da obra de
Alberto Sousa (página 17) |