HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS -
PADRE VOADOR
Padre ensina Europa a voar em balão (1)
Bartolomeu de Gusmão foi o primeiro no mundo a demonstrar o aeróstato
Na sala dos diplomatas, no palácio real português, Dom João
V, fidalgos, funcionários, todos aguardam impacientes e incrédulos a experiência anunciada pelo Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Quatro meses antes,
em abril de 1709, o rei recebera aquela estranha petição:
Balão usado nas primeiras experiências em Lisboa
Senhor.
Diz o licenciado Bartolomeu Lourenço que ele tem descoberto um instrumento para andar pelo ar, da mesma sorte do que pela terra, e pelo mar, e com
muito mais brevidade, fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas por dia nos tais instrumentos.
Se poderão levar os avisos de mais importância aos exércitos, e às terras mais remotas, quase
no mesmo tempo em que se resolverem, porque interessa a Vossa Majestade muito mais do que nenhum dos outros príncipes, pela maior distância dos seus
domínios, evitando-se, dessa sorte, os desgovernos das conquistas que provêm, em grande parte, de chegar muito tarde as notícias delas.
Além do que poderá Vossa Majestade mandar vir o precioso delas, muito mais brevemente e
mais segura poderão os homens de negócio passar letras, e cabedais e todas as praças sitiadas poderão ser socorridas, tanto de gente, como de
munições, e víveres a todo tempo e tirarem-se delas todas as pessoas que quiserem. Sem que o inimigo o possa impedir, descobrir as regiões que
ficarão mais vizinhas aos pólos do mundo. |
Nascido em Santos em dezembro de 1685, Bartolomeu foi conhecido pela inteligência e espantosa memória, capaz de
recitar de cor todos os versos dos poetas latinos Virgílio, Horácio e Ovídio, bem como vários livros da Bíblia. Mas isso de "instrumento para andar pelo
ar", só vendo mesmo. O rei deu licença para a experiência e lá estava para certificar-se com seus próprios olhos.
A Passarola, segundo um dos desenhos da época
Os testes - Em 8 de agosto de 1709, Bartolomeu realizou a primeira experiência com uso de um balão a ar
quente, o Passarola. De repente, as exclamações. De um canto da sala ergue-se um pequeno balão de papel, em forma de pirâmide, com armação de
arme e tendo um pequeno fogo dentro.
Bartolomeu olha com orgulho a sua obra, o primeiro aeróstato que se construía no mundo. E o balão continua
subindo, subindo. "Todos vão reconhecer o sucesso e poderei fazer aparelhos maiores, mais perfeitos, para transportar pessoas e cargas", pensa o padre,
sorrindo de contentamento.
O balão subiu quatro metros, está quase tocando no teto. Então, num segundo, ouve-se uma ordem e dois lacaios
derrubam-no, usando varapaus, enquanto os fidalgos riem da cena. Poderia ter queimado o teto e as cortinas e começar um grande incêndio.
Todos vão embora, achando muita graça do pequeno objeto voador. E aquele pobre maluco dizendo que seria capaz de
guiá-lo! E fazer duzentas léguas por dia, levando gente, munições e víveres! No canto da sala, Bartolomeu Lourenço de Gusmão faz planos, muitos planos.
Sempre auxiliado por seu irmão Alexandre, que se tornou conhecido nas lides diplomáticas européias e especialmente como
secretário particular do rei Dom João V, o principal cargo na política externa portuguesa.
Terreiro do Paço, em Lisboa, local da experiência com o Passarola
Óleo de Dirk Stoop, no Museu da Cidade, em Lisboa/Portugal
Essa primeira experiência foi feita no pátio da embaixada na Casa da Índia (castelo de São Jorge, em
Lisboa), tendo o aparelho aterrado no Terreiro do Paço. Na segunda, em outubro daquele ano, "o balão subiu
novamente, mas foi de encontro a uma parede ou cimalha e incendiou-se igualmente", conforme o historiador Visconde de Taunay. Ocorreu ainda uma terceira
tentativa, em 1709, também na capital portuguesa, em que o balão, denominado Passarola, subiu quatro metros, considerando-se a experiência
exitosa. A julgar pelos raros e imperfeitos desenhos que restaram, e pela parca documentação que sobreviveu ao grande terremoto de Lisboa em 1755,
Bartolomeu de Gusmão estaria a bordo de seu aeróstato no momento em que ele subiu, tornando-se portanto o primeiro homem do mundo a elevar-se aos ares
por meio de um balão.
Os irmãos Montgolfier só ganhariam fama 74 anos depois, como autores das primeiras experiências bem sucedidas
com aeróstatos, em 4/6/1783. Pode-se aquilatar o feito do padre santista ao se considerar que nem os irmãos franceses sabiam que era o simples
aquecimento do ar, então preso no revestimento do balão, a causa da elevação do mesmo - atribuíam a ascensão do aeróstato à fumaça da fogueira. O gás
hidrogênio, depois empregado largamente nos balões, só foi percebido em 1766 pelo cientista inglês Henry Cavendish e batizado mais de duas décadas
depois pelo químico francês Lavoisier.
Bartolomeu de Gusmão, em tela do pintor Benedito Calixto
Muitas atividades - O padre inventor foi um dos primeiros elementos escolhidos para fazer parte da Real
Academia Histórica de Portugal, quando da sua criação em 1720. Em 6 de agosto de 1721, inventou um processo para produzir carvão de terras artificiais.
Projetou ainda fabricar artefatos hidráulicos, particularmente um sobre o qual escreveu o opúsculo de 13 páginas publicado em Lisboa e intitulado
Vários modos de esgotar sem gente as naus que fazem água. Além de falar fluentemente as línguas latina, francesa e italiana, traduzia com facilidade
o grego e o hebraico.
D. João V mandou que lhe dessem uma subvenção de 300 mil réis anuais, a fim de que prosseguisse nos estudos, mas
a Junta dos Três Estados negou-se a dar-lhe o auxílio, sob a alegação de que não havia dinheiro. Bartolomeu, como o irmão, sempre foi vítima da zombaria
de seus contemporâneos e de perseguições da Inquisição por ser amigo de judeus. Por causa disso, viajou para a Holanda, onde fez experiências com
lentes, e para a França, onde vendeu nas ruas de Paris remédios por ele mesmo fabricados.
Era um espírito inquieto, sempre inventando alguma coisa, sempre experimentando novos ramos do saber. Estudou
Direito, teve atuação brilhante nos tribunais, foi membro da Academia Real de História, cumpriu as missões diplomáticas, sempre com o apoio de Dom João
V. Para o rei, foi um homem de muita inteligência, além de curioso, com sua mania de inventar. Para os fidalgos e os inquisidores, um doido que
inexplicavelmente gozava dos favores da Corte. Com as intrigas, surgiram acusações de feitiçaria e Bartolomeu teve de fugir novamente. No caminho, em
Toledo, atacado por febres, faleceu na noite de 18 para 19 de novembro de 1724. Sua obra, marcada pelo desprezo
dos contemporâneos, só mais tarde foi devidamente valorizada como a obra de um pioneiro da aviação.
Monumento a Bartolomeu de Gusmão, na Praça Rui
Barbosa
Avenida e monumento - Em 21/1/1914, o vereador João Manuel Alfaia Rodrigues
Júnior apresentou a proposta de se denominar Avenida Bartolomeu de Gusmão à via conhecida como Praia da Barra, que então correspondia a toda a
extensão da praia santista. A decisão foi oficializada pela lei 647, de 16/2/1921, entrando em vigor a 1/1/1922. Posteriormente, outros trechos da
avenida atlântica foram ganhando novos nomes, encurtando assim o traçado da via em homenagem ao Padre Voador - atualmente restrito à faixa entre a
confluência com a Avenida Conselheiro Nébias e a Avenida Saldanha da Gama.
Placa indica o local onde existiu a casa do padre
Santos
também homenageia Bartolomeu de Gusmão com um monumento na Praça Rui Barbosa, que teve a pedra fundamental lançada em 12/7/1922 durante solenidade às 16
horas, na presença de convidados de honra como os aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Criado pelo escultor italiano Lorenzo Massa, o
monumento foi inaugurado em 7/9/1922, em meio às festas oficiais pelo centenário da Independência do Brasil. No dia 19/11/1923, como parte dos festejos
do Dia da Bandeira, foram inaugurados os candelabros do monumento, só então instalados devido à greve trabalhadora ocorrida na Itália.
No dia 15/10/1933, em nome do governo da Argentina, o tenente-aviador Oscar Cairo, da aviação militar do vizinho país,
colocou uma palma de bronze no monumento, com os dizeres: "La Aeronautica Militar Argentina a Fray Bartolomé Lorenzo de Gusmán. El império de los
aires, que estava reservado a los dioses, fué conquistado por el hombre al 8 de agosto de 1709. Ano MCMXXXIII."
No local em que existiu a casa em que nasceu o Padre Voador, depois ocupado por uma construção em estilo
colonial - na Rua do Comércio, 47 -, existe uma placa registrando o fato, afixada em 7/9/1922 por ordem da Câmara Municipal de Santos como homenagem ao
"precursor da aviação": "Neste solo existiu a primitiva casa em que nasceu o grande brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o precursor da aviação.
Homenagem da Câmara Municipal em sete de setembro de 1922".
Documento da época com o esquema da Passarola,
arquivado na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro/RJ)
Além de Bartolomeu e Alexandre, outro Gusmão conhecido historicamente é a beata Joana de Gusmão, benfeitora,
cuja vida está ligada ao Estado de Santa Catarina.
Texto acima extraído e adaptado da enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História
(volume I, 1969, Editora Abril Cultural, São Paulo/SP). Contribuições do álbum Figuras da Baixada Santista (editado em 17/5/1968 pelo jornal
Cidade de Santos), de Veja Santos (Olao Rodrigues, 2ª edição, 1975, Santos/SP), da Enciclopédia Mirador Internacional (1980,
Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., São Paulo/SP), e do suplemento infantil A Escolinha, do Diário Oficial de Santos, de
23/10/1971.
Assinatura de Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o Padre Voador
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