HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Santista muda fronteiras da América Latina (1)
Alexandre de Gusmão praticamente dirigiu a política externa portuguesa por três décadas e promoveu a criação
da cidade de Porto Alegre
Com as epopéias dos bandeirantes, desbravando o interior do
Brasil e criando vilas em plena selva, surgiu a dúvida: valia ainda o Tratado de Tordesilhas, com sua linha imaginária que ninguém sabia precisamente
por onde passava? Onde terminavam os domínios de Portugal, onde começavam os de Espanha?
Fez-se então um tratado para "que se assinalassem os limites dos dois Estados, tomando por balizas as paragens mais
conhecidas, tais como a origem e os cursos dos rios e dos montes mais notáveis, a fim de que em nenhum tempo se confundissem, nem dessem ensejo a
contendas, que cada parte contratante ficasse com o território que no momento possuísse, à exceção das mútuas concessões que nesse pacto se iam fazer e
que em seu lugar se diriam".
Foi o Tratado de Madri, assinado em 1750. Nada de linhas convencionais, mas outro conceito de fronteiras: a
posse efetiva da terra e os acidentes geográficos como limites naturais. Realização de um santista que, com argumentos e diplomacia, oficializou a obra
desbravadora de seus conterrâneos: Alexandre de Gusmão, o diplomata dos bandeirantes, que dominou a política portuguesa até a ascensão do Marquês de
Pombal.
"Estudioso, mas velhaco" - Em Santos, 1695, a família do negociante e médico (chefe dos cirurgiões do
presídio) Francisco Lourenço Rodrigues aumentou com o nascimento de mais um filho, o nono: Alexandre. Mais uma boca para alimentar, pensou sua esposa,
Maria Álvares. Mais um para educar, preocupou-se o pai.
O casal teve ainda mais três filhos. Muito católicos, dos doze, oito entraram para a vida religiosa. Dois deles,
Simão e Bartolomeu, estudaram no Colégio de Belém, em Cachoeira, Bahia, cujo fundador (em 1687) e diretor foi o protetor da família, padre jesuíta e
escritor Alexandre de Gusmão (nascido em Lisboa em 14/8/1629 e falecido em Belém da Cachoeira, na Bahia, em 15/3/1724). E para lá seguiu Alexandre,
"menino estudioso, engenhoso, mas bastante velhaco", anotação que a direção do colégio colocou ao lado de sua matrícula.
Padre Alexandre foi como um padrinho para Bartolomeu e Alexandre, acabando por lhes emprestar o sobrenome. Por
sua orientação, o jovem Alexandre de Gusmão passou para o Colégio das Artes, ainda na Bahia, onde completou em três anos seus estudos de Latim e Lógica,
Metafísica e Ética, Retórica e Filosofia, distinguindo-se como "filósofo excelente". Enquanto isso, Bartolomeu, dez anos mais
velho, tornou-se padre e instalou-se em Lisboa - para onde Alexandre, em 1710, também se dirigiu.
Protegido por Bartolomeu, conviveu com os fidalgos da Corte e aprimorou a sua educação, chegando a tornar-se
amigo do rei Dom João V. Daí para sua primeira missão oficial foi apenas um passo. Esse passo foi dado quando o soberano nomeou Dom Luís Manuel da
Câmara (conde da Ribeira Grande) para embaixador em Paris. Alexandre de Gusmão foi escolhido como secretário da Embaixada e chegou à capital francesa em
1715.
Em Paris, com os estudantes - Um mundo estranho surgiu diante dos olhos espantados do jovem secretário,
que passara da simplicidade da vida brasileira aos tapetes felpudos, cortinas de damasco e pratarias da Corte portuguesa. Eram o cais do Sena, a ponte
Nova, as vielas tortuosas da ilha de São Luís, a catedral de Notre-Dame, Saint-Germain, o Jardim das Tulherias e o bairro de Saint-Michel, onde estava o
edifício baixo, escuro, cheio de torres, pátios, corredores e janelinhas estreitas da Sorbonne, sede da Universidade de Paris.
Ali Alexandre cursou Direito Civil, convivendo com os estudantes, na maioria pobres, com suas capas disformes,
sapatos velhos e gorros de lã com pluma. Não se sabe se morou na Embaixada ou no bairro da escola, onde viviam amontoados em pequenos quartos aqueles
rapazes cabeludos e barbudos, quase andrajosos. Mas, apaixonado como era pelo estudo e as discussões eruditas, possivelmente freqüentou aquelas casas
ruidosas onde sempre se ouviam cantorias, discursos, risadas, e onde, à luz dos candeeiros de azeite, se atacavam com violência os mestres e as idéias
tradicionais.
A França de Luís XIV não tinha experimentado grandes mudanças. A Revolução ainda estava longe (seu clímax, a
Queda da Bastilha, só ocorreria em 14/7/1789). O Antigo Regime chegava a seu apogeu. Os nobres andavam a cavalo, seguidos de seus pajens. Os plebeus
caminhavam pelas ruas estreitas e sujas, nas quais o lixo era atirado das janelas por mulheres de touca, atingindo os passantes desavisados. E eram
pragas, gargalhadas e palavrões.
Um senhor sério, de túnica comprida e chapéu redondo de abas largas, com livros embaixo do braço, atravessava o
bairro em direção à escola: era o professor. E, de quando em quando, os rapazes curiosos corriam às janelas e todos na rua abriam passagem para uma
cadeirinha de cortinas cor-de-rosa, em cujo interior apenas se entrevia uma formosa dama, acompanhada pelo séqüito de pajens e lacaios.
De professor a diplomata - Em 1719, Alexandre de Gusmão voltou a Portugal levando o diploma de Direito,
conquistado com brilho. Tornou-se em seguida professor na Universidade de Coimbra, já então uma das mais respeitadas da Europa. O lugar era agradável,
com sobrados de cores vivas, janelas enfeitadas de vasos de barro com flores, as igrejas, as devotas envoltas em xales pretos e com brincos de argolas
de ouro e as ruas repletas de rapazes com longas capas pretas.
A essa altura de sua vida, o jovem diplomata já adquirira um sólido conhecimento de história política e
administrativa e em leis dos países europeus. Também entrara em contato com as personalidades do mundo oficial e com os tratados e acordos pelos quais
as nações procuravam estabelecer seus direitos umas em relação às outras. Na ida a Paris, passara por Madri, onde a comitiva portuguesa fizera curta
estada, aproveitando para se aprofundar nos meandros do Tratado de Utrecht, que determinava limites das colônias espanholas e portuguesas nas Américas.
Em Paris, além de aprimorar sua formação diplomática e cultural, embebera-se nas novas idéias anticlericais e
racionalistas dos filósofos franceses. Agora, em Coimbra, Alexandre exibiu todo o seu conhecimento da legislação portuguesa. Não se restringiu,
entretanto, só a lecionar. Escreveu, também, poesias, introduzindo-se no mundo literário.
Seu forte, todavia, era a diplomacia, e tais qualidades foram aproveitadas quando, em 1720, viu-se incluído na
delegação portuguesa que faria negociações em Cambray, na França, para que assim se familiarizasse ainda mais com as lides diplomáticas.
Alexandre não ficou muito tempo em Cambray, pois, como escreveu mais tarde, "neste tempo se negociavam em Roma
as duas bulas do serviço da Patriarcal e das quartas partes dos bispados, com muitas demoras e equivocações, por falta de inteira percepção das
intenções de Vossa Majestade nos que solicitavam aquelas graças". Um dos que solicitava os favores papais sem sucesso era
Bartolomeu de Gusmão. Para auxiliá-lo, o rei mandou o irmão mais moço, ordenando-lhe que ficasse dois meses em Roma e, decidido o assunto, voltasse para
Cambray.
Na verdade, Bartolomeu aplainara o terreno e Alexandre não teve muito trabalho. Em 1721, assumiu o pontificado o
papa Inocêncio XIII, que quando cardeal vivera muito tempo em Lisboa. Dez dias depois de sua posse, a questão estava resolvida.
Mas Alexandre não ficou dois meses e Roma. Ficou sete anos, funcionando quase como embaixador de Portugal junto
à Santa Sé (num momento tenso das relações entre Portugal e Santa Sé, afinal rompidas em 1728). O papa, encantado com a eficiência e o brilhantismo do
brasileiro, convidou-o para incorporar-se à sua corte, com o título de Príncipe Romano. Alexandre, alegando ter de pedir licença a seu rei, declinou do
convite.
O mais conhecido resultado de sua atividade foi o título de "Majestade Fidelíssima" que o papa concedeu a Dom
João V. O rei português podia agora sentir-se em pé de igualdade com os monarcas espanhóis e franceses, que já tinham sido agraciados com a designação
de "Majestade Católica" e "Majestade Cristianíssima".
Em Roma, no fim de 1724, uma notícia o abalou e entristeceu: com apenas 39 anos, morrera o irmão Bartolomeu, a
quem estivera tão ligado. Por ser amigo de judeus, Bartolomeu foi vítima da zombaria de seus contemporâneos e de perseguições da Inquisição e, por causa
de intrigas palacianas acusando-o de feitiçaria, teve de fugir uma vez para Holanda e França e depois para a Espanha, falecendo no caminho, em Toledo,
atacado por febres.
Alexandre também foi perseguido pelas intrigas, antipatias pessoais e inveja de muitos. Os nobres não podiam
suportar aquele plebeu erudito e orgulhoso, nascido num lugarejo perdido da Colônia brasileira. Como Bartolomeu, era também amigo de judeus, condenando
as perseguições que sofriam. Essa posição sugeriu aos seus inimigos a acusação de semitismo: viu-se obrigado a provar que era descendente de portugueses
e santistas muito católicos para se livrar das perseguições.
Alexandre de Gusmão, em óleo de Oswaldo Teixeira, acervo do
Museu Paulista, em São Paulo
A fidelidade do rei - O rei, entretanto, não deu ouvidos aos detratores de seu eficiente diplomata. Em
1731, indicou-o para a Academia Real de História, talvez tentando reparar o pouco caso que aquele grêmio havia feito de Bartolomeu. Alexandre teve o
encargo de continuar a Epitomen Historiæ Lusitanæ, obra em latim que seu antecessor estava elaborando quando morreu.
Sempre que possível, Alexandre procurou favorecer as aspirações brasileiras, não esquecendo sua origem colonial.
Mesmo antes de pertencer ao Conselho Ultramarino, foi encarregado, em 1734, dos despachos da Secretaria de Estado para o Brasil. Tomou medidas que
promoveriam o povoamento e a colonização, bem como a defesa das fronteiras brasileiras, além de propor maneira mais favorável à Colônia de arrecadar
impostos.
A partir do fim do século XVII, houve grande incremento na extração do ouro e na cata de diamantes no Brasil,
atividade da qual Portugal procurava tirar o maior lucro possível. Como a Coroa tinha o monopólio da mineração, variava à vontade o sistema de
tributação, até se estabelecerem as casas de fundição, onde se cobrava a quinta parte do ouro extraído.
Alexandre, diante da necessidade de entesouramento real, de um lado, e das gritas e reclamos dos brasileiros, de
outro, resolveu-se por uma nova maneira de cobrar o imposto da capitação. Cada minerador pagaria 17 gramas de ouro anuais por escravo de mais de catorze
anos que empregasse na mineração. Com isso, Alexandre procurava incentivar a produção e deixar livre cada qual para negociar com o ouro em espécie que
lhe parecesse, e introduzir nas minas ou extrair delas os gêneros que quisesse, sem pagar mais direitos que aqueles já estabelecidos nos portos de mar.
O novo sistema de capitação era realmente revolucionário, pois encorajava o acúmulo individual de capital e não a remessa de lucros para a metrópole.
Mas durou apenas de 1737 a 1750, ano em que Alexandre deixou o governo.
Já em 1738, os fidalgos voltavam à carga com novas acusações. Desta vez, diziam que Alexandre havia se imiscuído
nas querelas religiosas de um convento, onde estavam algumas parentas suas. Ao que parece, ele realmente ali interferiu, tentando amenizar as
discriminações entre as irmãs oriundas das altas classes sociais e as que eram pobres ou vinham das colônias.
O rei não quis saber das intrigas. Não podia dispensar os serviços daquele funcionário exemplar. Quantos como
ele se expressariam tão bem em tantas línguas? Quem no Reino seria capaz de tão brilhantes improvisos sobre qualquer assunto, desde a história sagrada e
profana até as mais recentes teorias científicas de Newton? Como encontrar um tão profundo conhecedor das questões e dos meandros da diplomacia? Não,
Dom João V sabia muito bem que Alexandre de Gusmão era uma presença essencial em seu governo. Por isso, em 1740, nomeou-o escrivão da puridade, ou seja,
nada mais nada menos que secretário particular do rei.
Os bilhetes do senhor escrivão - A influência do santista crescia então: era ele praticamente quem
dirigia a política externa de Portugal. E o fazia, via de regra, por meio de frios e objetivos bilhetes, ordens, admoestações, pequenas cartas. Ao Conde
de Lavradio, governador de Angola, acusado de administrar "à maneira dos Paxás da Turquia", escreveu Alexandre: "É Sua Majestade servido ordenar que V.
Excia. faça justiça, favoreça o comércio, respeite a religião e procure favorecer os interesses dos povos, sem prejuízo do Estado, abstendo-se, daqui
por diante, de todos os procedimentos e ações que possam conduzir queixas ao trono".
Ao Cardeal Motta, secretário do Estado dos Negócios do Reino e Mercês, que só atendia as partes em horas
tardias, escreveu: "Se a tardança dos despachos é muito penosa, mais o será darem-se os desenganos ou respostas lá da meia-noite por diante".
Esse Cardeal Motta era bem um exemplo da mentalidade que os estrangeirados (os que vinham à Corte ou
viviam no exterior e contribuíam para a renovação das idéias na península ibérica) combatiam: mandara suprimir dos calendários os prognósticos de
tempestades, raios e trovoadas, para que "ficasse mais tranqüilo o povo de Portugal..."
Voltaire, o famoso pensador francês, dizia de Dom João V que "suas festas eram procissões, seus edifícios
monastérios e suas amantes religiosas". E Alexandre se queixava de estar cercado por "um mar de superstições e de ignorância". Influenciado pelas novas
idéias racionalistas, que floresciam naquela época, ele criticou o clericalismo, o que certamente muito contribuiu para provocar ainda mais a inimizade
dos fidalgos.
Viriato e Trajano - Em 1743, já com 48 anos, Alexandre se casou com Dona Isabel Teixeira Chaves. Dela
disse, em carta da época: "...pois o recato foi tal que apenas pude descobrir, ainda dos criados da casa, quem a tivesse visto; e, estando para ser seu
marido, ainda não lhe pus os olhos, e só por informe sei que não é mal parecida e de gênio muito dócil". Do casamento nasceram dois filhos, aos quais
Alexandre deu os nomes de Viriato, primitivo herói luso, e Trajano, imperador de Roma.
Seus inimigos não perderam tempo, criticando-o por "excessiva imodéstia". Alexandre rebateu em versos:
Esta vaidade com que o mundo engano,
foi da Fortuna errado movimento.
Subi, mas tive humilde nascimento:
assim foi Viriato, assim Trajano. |
Um ano antes de casar, Alexandre de Gusmão fora designado para o Conselho Ultramarino, sua maior ambição.
Finalmente, ele poderia fazer valer com toda força seus conhecimentos de política e diplomacia.
A princípio, Alexandre concentrou sua inteligência na disputa que havia mais de 60 anos se desenrolava no Sul do
Brasil: de quem era a Colônia do Sacramento?
Questão de fronteiras - Nos séculos XVI e XVII, os limites dos domínios portugueses e espanhóis nas
Américas não estavam definidos com precisão e nas indecisas fronteiras havia disputas contínuas. Entre essas, as terras do chamado cabo do Norte, no
Maranhão, e, mais importantes, as que iam do atual estado do Paraná ao rio da Prata.
Em 1680, o governador do Rio de Janeiro, Manuel Lôbo, fundou na ilha de São Gabriel e terra firme próxima, no
estuário do Prata, a Colônia do Sacramento. Ao construir a fortificação, não fazia mais que obedecer às instruções reais. E assim, Portugal ultrapassava
conscientemente a linha de Tordesilhas.
Ao se estabelecer no Prata, Portugal almejava as duas coisas: vigiar o comércio de Buenos Aires - o grande
centro mercantil da outra margem - e, possivelmente, interceptar o fluxo de prata que vinha do Peru.
Os espanhóis, no entanto, não gostaram da vizinhança e sitiaram Sacramento, cortando-lhe as comunicações.
Desesperados com o sítio, os lusos tentaram lutar, mas, sem socorros e alimentos, foram derrotados.
O fracasso da Colônia consternou os portugueses e Lisboa audaciosamente exigiu indenização pelos danos. Madri,
enfraquecida por outras guerras, cedeu e foi assinado, a 7 de março de 1681, o Tratado Provisional, pelo qual a Espanha se comprometia a devolver armas,
munições e ferramentas apreendidas, bem como os prisioneiros. A colônia ficava com os portugueses. Mas, como o próprio nome do tratado indicava, isso
era provisório, até que as fronteiras fossem definitivamente estabelecidas pelo papa.
O provisório virou definitivo, pois o papa não se manifestou. Os de Buenos Aires, entretanto, não estavam
satisfeitos com aquela presença incômoda. Em 1705, tomaram novamente Sacramento e lá ficaram até 1715. Neste ano, pelo Tratado de Utrecht (6/2/1715),
Madri reconheceu que a colônia era terra portuguesa.
Durou pouco este tratado. No ano seguinte, castelhanos e portugueses já brigavam de novo no Prata. As lutas
prosseguiram durante anos. Nem mesmo o casamento da filha de Dom João V com o futuro rei espanhol, Fernando VI, foi suficiente para acalmar os ânimos. A
verdade é que a Colônia de Sacramento tornara-se um entreposto de contrabando, prejudicando o comércio feito por Buenos Aires.
Diplomacia de um bandeirante - As duas coroas, agora unidas por laços familiares, queriam acabar
pacificamente a contenda. Em 1746 recomeçaram as conversações diplomáticas, em sigilo, para que outras nações não interferissem. Alexandre de Gusmão já
possuía nesta época os mapas mais precisos da América do Sul, que encomendara aos melhores geógrafos do Reino. Era um dos trunfos com que contava para a
luta diplomática que duraria quatro anos.
O representante de Portugal foi o embaixador Tomás da Silva Teles, assessorado pelo secretário de Estado Marco
Antônio de Azevedo Coutinho. A atuação mais importante foi, no entanto, a de Alexandre, o homem que melhor conhecia este assunto.
As conversações foram feitas boa parte em Madri, para onde Tomás da Silva Teles levou o mapa das Cortes, do qual
é significativo o seguinte trecho: "Quanto à primeira parte, V. Excia. estará lembrado que, desde do princípio dessas negociações, adotamos por máximas
preliminares em primeiro lugar que, nas terras já povoadas por quaisquer das partes, cada um conservaria o que tivesse ocupado, exceto onde se desse
forçosa razão para o contrário (...) e, em segundo lugar, que se procurasse constituir as raias pelas balizas mais conspícuas e notáveis dos montes ou
rios grandes, sem se reparar em algumas léguas desertas, onde sobrarão tantas a cada uma das coroas que não poderia povoar em muitos séculos".
A Espanha foi representada por Dom José Carvajal y Lencaster, homem culto e de visão. Alexandre esforçou-se para
"que os limites da América se determinem por um tratado que corte na raiz as pretensões e contendas de parte a parte", e disse, em carta, que "todo
ministro de uma e de outra parte que desejar bem à sua pátria deve aproveitar-se da presente disposição de ânimo dos dois monarcas, que em outras
conjunturas não será fácil encontrar-se..." Toma corpo assim a idéia das compensações, segundo a qual Portugal cederia à Espanha a Colônia do Sacramento
e a Espanha entregaria a Portugal outro território contestado.
Alexandre sabia que os espanhóis jamais deixariam em paz uma colônia que lhes prejudicava o tesouro. Além disso,
descobrira-se ouro no Brasil, não era preciso entrar em conflitos por causa da prata peruana. Para a compensação, ele já tinha em vista as terras que
seriam convenientes à coroa portuguesa: os campos dos Sete Povos das Missões, Oeste do atual estado do Rio Grande do Sul, onde os luso-brasileiros
poderiam conseguir grandes lucros criando gado.
As discussões prolongaram-se. O santista, embora absorvido pela questão, ainda encontrou tempo para polêmicas
artísticas, como a de 1748, em que defendeu o teatro clássico francês contra o espanhol.
Finalmente, em Madri, a 13 de fevereiro de 1750, firmou-se o tratado: a Espanha ficou com Sacramento, Portugal
recebeu o território das missões jesuíticas espanholas.
Obra admirável - O tratado, obra de Alexandre, foi admirável em vários aspectos. Determinou que sempre
haveria paz entre as colônias americanas, mesmo quando as metrópoles estivessem em guerra. Abandonou as decisões tomadas arbitrariamente nas Cortes
européias por uma visão mais racional das fronteiras, marcadas pelos acidentes naturais do terreno e a posse efetiva da terra. O princípio romano de
uti possidetis deixou de se referir à posse de direito, determinada por tratados, como até então tinha sido compreendido, para se fundamentar na
posse de fato, na ocupação do território: as terras habitadas por portugueses eram portuguesas.
Partindo desses princípios, as fronteiras do Brasil - na verdade, os limites entre os domínios espanhóis e
portugueses na América do Sul - ficaram assim determinadas pelo Tratado de Madri: linha limítrofe saindo do monte de Castilhos Grande, na costa hoje
uruguaia, acompanhando os rios Ibicuí, Uruguai, Iguaçu, Paraná, Igureí, Paraguai, Guaporé e Madeira. Da metade deste último rio saía uma reta para Oeste
até as cabeceiras do Javari. Seguindo por este rio até o Solimões e subindo o Japurá, passava entre as bacias do Amazonas e Orinoco, alcançando a serra
de Pacaraima, limite Norte brasileiro.
Foi meio continente assegurado a Portugal pela atividade de Alexandre de Gusmão. Para a região mais disputada, o
Sul, o santista já enviara, em 1746, casais de açorianos para garantir a posse do terreno. Era uma nova forma de colonização que Alexandre preconizava,
através de famílias que produzissem, sem precisar de escravos. Os primeiros sessenta casais fundaram o Porto dos Casais, mais tarde Porto Alegre.
Segundo o historiador Jaime Cortesão, Alexandre legou aos brasileiros, com esse tratado, a consciência e o
fundamento jurídico do espaço próprio e dos seus limites legítimos. Com ele, traçou simultaneamente as fronteiras naturais do Brasil e as da América
espanhola e de seus povos. Mais ainda, "nas dobras do tratado de 1750 enrolava-se discretamente o anteprojeto de independência dos povos americanos".
Reação - O tratado de Madri logo fez muitos inimigos: os jesuítas espanhóis, expulsos das Missões, e os
comerciantes impedidos de contrabandear no Prata. Seus protestos encontraram um inesperado apoio no novo homem forte de Portugal: o Marquês de Pombal.
Em julho de 1750, morreu Dom João V. Alexandre perdeu seu amigo e protetor. Logo foi afastado do governo pelo
novo monarca, Dom José I. Alexandre desceu, subindo Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marques de Pombal, contrário ao tratado de 1750, embora
partilhasse muitas das idéias renovadoras do brasileiro.
Um novo acordo - o de El Pardo -, firmado em 12 de fevereiro de 1761, anulou o de Madri. Mas as bases
geográficas e os fundamentos jurídicos por que Alexandre tanto lutara em 1750 acabaram prevalecendo e, em 1777, aqueles princípios anulados em El Pardo
ressurgiram no Tratado de Santo Ildefonso. A questão foi ainda objeto de novo tratado do Pardo, a 11 de março de 1778.
Poesias e economia - Além de sua atividade diplomática, Alexandre publicou poesias, cartas e, em 1748, o
Cálculo Sobre a Perda de Dinheiro do Reino. A obra, dedicada a Dom João V, dizia: "É impossível suprimirmos, com a moeda que entra no Reino, a
muita que sai para fora dele, do que resulta sem dúvida ir-se diminuindo todos os dias o nosso suposto fundo dos referidos milhões. Isto sucede assim
porque cada dia vem menos ouro das minas e se aumenta mais a extração de dinheiro do Reino. E por isso, deixando outras coisas em que não posso falar, é
evidentemente certo que aquela diminuição de dinheiro das minas e esta maior extração da moeda concorrem de conformidade para a sua pobreza".
As "coisas" de que Alexandre não podia falar eram o desperdício em luxo e a ostentação da Corte de Dom João V. A
conclusão é inevitável: "Segue-se de todo o referido que, dentro de vinte anos, segundo a mais prudente calculação, há de perder o Reino a maior parte
da moeda que agora possui". Alexandre propôs as soluções para a crise: "Impedir o aumento de gente inútil com o especioso título de religião que
procuram para seu cômodo. Que se aumente a nobreza bem entendida, que se diminua o luxo com alguma lei suntuária. Que se aumente a agricultura,
fazendo-se estradas e cortando-se ribeiras para regar e navegar. Que se estabeleçam fábricas, aumentando-se por toda parte a indústria. E que,
finalmente, se favoreça, dentro e fora do Reino, o comércio, sem o qual não pode haver Estado rico e poderoso, nem florescente".
Alexandre foi infeliz no fim de sua vida. Depois de ser substituído no governo, um incêndio, em 1751, destruiu
sua casa e seus pertences. Já pobre, em 31 de dezembro de 1753, morreu aos 58 anos. Um biógrafo da época assim o descreveu: "Tinha mais que ordinária
estatura, a cabeça pequena em proporção das demais partes do corpo; semblante redondo e venerando, olhos pequenos mas cintilantes, de uma cor que
degenerava para pálida. No vestir, era polido, sem afetação; no aspecto, uma gravidade que não se benquistava às maneiras corteses e afáveis com que
cativava os que o tratavam de perto".
Dois anos depois de sua morte, uma grande tragédia abalava Portugal e o atingiu diretamente: o terremoto que
destruiu boa parte de Lisboa, em 1º de novembro de 1755, provocando o desaparecimento da maior parte da obra por ele escrita. Mas, na política do
marquês de Pombal estiveram presentes muitas de suas recomendações: aumentar a agricultura, estabelecer indústrias, favorecer o comércio. Perseguido por
intrigas, vítima dos elementos, Alexandre de Gusmão ergueu-se para além de seu tempo.
Extraído e adaptado da enciclopédia Grandes Personagens da Nossa
História (volume I, 1969, Editora Abril Cultural, São Paulo/SP), com contribuições da Enciclopédia Mirador Internacional (1980, Encyclopaedia
Britannica do Brasil Publicações Ltda., São Paulo/SP).
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