A falsa missão diplomática do Voador em Roma
Deu-se o general Brito Rebelo ao trabalho de verificar as
alegações do Memorial de Alexandre de Gusmão a D. João V, quando ao monarca enunciou o grande ministro o rol de seus serviços à Coroa,
citando, certamente de cor, as mercês dele recebidas.
"Alexandre de Gusmão, no referido Memorial, alude
por vezes aos serviços de seu irmão, dizendo que no princípio de 1721 honrara el-rei a seu pai, Francisco Lourenço, com o foro de fidalgo cavaleiro
da casa real, em atenção aos serviços daquele.
"Ou há engano de cópia ou de impressão: Francisco Lourenço foi elevado àquele grau de
nobreza por alvará de 9 de janeiro de 1722, e logo no dia 16 imediato foi conferida igual dignidade a Alexandre de Gusmão, e a Bartolomeu Lourenço o
de capelão fidalgo da casa real, com 1.820 réis de moradia por mês de fidalgo capelão e um alqueire de cevada por dia, paga segundo ordenança e sua
vestiária ordinária, como tem os mais fidalgos capelães, e é o foro e moradia que pelo dito seu pai lhe pertence.
"Esta mercê diz-se feita por ser ordenado de ordens sacras, o que faz presumir que
Bartolomeu Lourenço tomaria as suas ordens de presbítero tarde, e talvez por ocasião da sua formatura: - não podemos averiguar ainda este ponto".
Tal dúvida não pode subsistir e só compreendemos que ao erudito escritor português
haja ocorrido como oriunda de um lapso de memória, pois não data de 1709 a petição da "Passarola", documento arqui-conhecido, cujas primeiras
palavras são: - "Diz o padre Bartolomeu Lourenço..."
Ora, em meados de 1709, tinha o "Voador" vinte e cinco anos incompletos. Como
pois "tomou tarde as ordens de presbítero" e talvez "por
ocasião da sua formatura", ocorrida em 1720?
Continua Brito Rebelo: "Por decreto de 5 de junho e carta
de primeiro de julho desse ano (1722) fez el-rei mercê a Alexandre de Gusmão, em atenção aos serviços de seu irmão padre Bartolomeu, da propriedade
do ofício de escrivão da Ouvidoria do Ouro Preto, com faculdade de poder nomear serventuário, a quem ficaria uma parte do rendimento do dito ofício
e ao proprietário as duas restantes, com declaração, porém, que estas duas partes pertenceriam a Bartolomeu Lourenço. Como este não podia ser
provido em cargos civis e temporais, dava el-rei o cargo ao irmão de propriedade, ficando o rendimento para ele".
À porfia, já o vimos, afirmam os biógrafos de Bartolomeu de Gusmão, que o inventor da
"Passarola", depois de graduado em cânones, foi por D. João V. enviado a Roma, em 1720, e em missão especial do mais alto relevo, e que nessa
comissão diplomática se houve de modo desastrado. Precisara a Corte Portuguesa, e à pressa, enviar-lhe em socorro o irmão, que, com o seu talento
habitual, reparara os erros do seu primogênito.
Recolheu Freire de Carvalho tal tradição e, entre nós, São Leopoldo deu-lhe guarida.
Curiosamente desculpa Fernandes Pinheiro a Bartolomeu de Gusmão o fracasso de suas negociações romanas e explica por que tão mal sucedido foi na sua
estada na Cidade Eterna.
"Com o caráter de enviado à corte de Roma havia-lhe D.
João V encarregado de negociações diversas, com especialidade de solicitar duas bulas, a do serviço da Patriarcal, e a das quartas partes dos
Bispados, que progredia vagaroso, entre tropeços, talvez por não haver bem compreendido as intenções do rei; deliberou este que fosse assistir-lhe
seu irmão Alexandre de Gusmão, que por fim o substituiu. Parece que o transcendente talento de Bartolomeu, formado para brilhar em esfera
apropriada, como com efeito brilhou: avezado à justeza e exação, dessa ciência sublime, que de demonstração em demonstração segue a corolários
certos, o que não casava com as combinações variáveis da diplomacia; sua natural franqueza relutava à sagaz e refinada dissimulação, necessária
muitas vezes para chegar ao desenlace de enredadas negociações, nem o buliço dos salões se compadecia com a silenciosa reclusão em que gerou
originais projetos.
"Em verdade terminou a incumbência satisfatoriamente seu sucessor, adestrado nos
manejos da política, como quem tinha feito seu tirocínio na corte luzida de Luiz XIV, em que a ciência andava mais semeada onde uns com outros se
embatiam os espíritos, e embatidos se poliam, e a sociedade de quanto era belo engendrava delicadeza por quanto são as grandes cortes como
laboratórios do espírito, e naquela adquiriu o nosso ainda jovem Gusmão o aticismo e amabilidade, que tanto nelas valem para insinuar-se".
Vítima de um "quando que bonus" comete o nosso ilustre Fernandes Pinheiro um
anacronismo ao afirmar que Alexandre de Gusmão freqüentou a corte do Rei Sol, quando tal não se deu.
A menos não haja querido dizer que o jovem diplomata encontrara, ainda, em Paris, o
ambiente ao que iniciara o espírito do Grande Rei, o que é admissível.
Firmadas nestas autoridades eminentes repetiram os biógrafos de Bartolomeu, à
saciedade, a errônea de que o "Voador" se deslocara de Lisboa a Roma, onde a diplomacia papal lhe levara imenso a melhor.
Ainda ultimamente, na sua excelente História da Literatura Brasileira, por eles
viu-se Artur Mota induzido em erro: "Não foi bem sucedido na sua missão em Roma, pois não conseguiu em longo tempo
(o grifo é nosso) o que o seu irmão Alexandre obteve em curto prazo".
O que perdeu a Gusmão não foi de todo o caso de sua pseudo missão romana e sim o caso,
por nós já largamente ventilado, do processo do embruxamento do rei, agravado pelas circunstâncias decorrentes da amizade do "Voador" com
judeus e judaizantes brasileiros.
Pois se exatamente no ano em que ocorreu o anunciado fracasso diplomático do "Voador"
foi ele o alvo de tão grandes atenções reais, como esta da nomeação para a Academia Real de História.
Há outra retificação cronológica a se fazer em Mota, que coloca a data da missão a
Roma após a nomeação para a Academia.
Como admitir que em 1720 começasse o declínio do valimento de Bartolomeu quando dois
anos mais tarde vemos o rei conceder a seu pai, o velho Francisco Lourenço, um foro de fidalgo cavaleiro da casa real, em atenção aos serviços de
seu filho?
Examinando com o habitual e profundo critério os documentos comprobatórios dos atos de
Bartolomeu em 1720, obteve Brito Rebelo uma série de datas que não deixam mais dúvidas sobre a inverdade da passagem do "Voador" a Roma
naquele milésimo.
Já a Filipe Simões causara real estranheza a afirmativa dos autores relativa à missão
diplomática em Roma.
Analisando o memorial de Alexandre de Gusmão, chegou Brito Rebelo a conclusões que nos
parecem indiscutíveis.
No trecho do memorial transcrito na página referida, claramente se vêem duas partes
distintas: 1º) os negociadores em Roma que não compreendiam bem a mente dos de Lisboa; 2º) quem lidava nesse assunto, em Lisboa, era o padre
Bartolomeu, pelo que el-rei admitiu também a esses trabalhos Alexandre de Gusmão. Portanto, Bartolomeu Lourenço era quem, pelos seus vastos
conhecimentos em todos os direitos, estava encarregado de guiar o assunto em Lisboa, no qual iniciou e instruiu seu irmão Alexandre, que foi mandado
a Roma auxiliar e suprir a deficiência dos que diligenciavam ali o negócio.
Prova-se isto claramente porque a 16 de junho de 1720 concluiu Bartolomeu Lourenço o
seu doutoramento em Coimbra, donde devia vir, em seguida, para Lisboa, onde chegaria pelo fim desse mês.
Não era crível que fosse logo enviado para Roma a tratar negócio de tamanha
importância, sem o ter primeiro estudado e discutido, e que em cinco meses estivesse já de volta, muito sossegado, discutindo placidamente assuntos
de história eclesiástica na Academia de História, criada em dezembro desse ano, sem esperar a chegada do irmão à Cidade Eterna.
Este, mais adiante, no seu Memorial, diz:
"Entretanto, passando o suplicante a Roma, pelo circuito
da Alemanha, por causa da peste de Marselha, não podendo chegar senão em março de 1721, em que achou falecido o Papa, deu inteiro cumprimento à
satisfação de Vossa Majestade etc.".
"Vê-se, pois, que estando o padre Bartolomeu Lourenço em
Lisboa, na fundação da Academia, assistindo às suas primeiras sessões, em dezembro desse ano de 1720, provavelmente quando Alexandre de Gusmão
partiu para Roma, não era a ele que seu irmão foi auxiliar em março de 1721, que o sabemos também em Lisboa, onde em quase todas as sessões da
Academia a sua presença é atestada sempre.
"Fica, pois, desembaraçada a biografia do padre Bartolomeu Lourenço deste ponto
escuro, ficando assente que ele não saiu do reino, e os negócios que tratava eram-lhe incumbidos no reino e não fora".
De uma nova face do talento do santista se valia D. João V, continua o erudito autor
português a explicar o período áureo da vida do aeronauta, na fase do apogeu de seu valimento junto ao rei.
"No entanto, Bartolomeu Lourenço, gozando de todas as
boas graças do soberano, era encarregado de negócios árduos, de maior importância e do maior segredo.
"Era estilo então seguido em algumas cortes da Europa, se não em todas, a violação da
correspondência dos diversos governos com os seus representantes; por este pernicioso hábito, inventado não nos sabe por quem, sabia o gabinete de
uma nação conhecendo de antemão o que os das outras lhe queriam comunicar ou exigir e aquilo que era preciso ocultar-lhe, a maneira por que deveriam
ser dirigidos os diversos negócios, precavendo-se para os discutir, repelir, adiar, combater, procurando os argumentos, documentos e mais
instrumentos necessários para o combate diplomático, em que é preciso astúcia, finura, sisudez e segurança.
"Mas o escolho de toda essa artimanha, hoje condenada, eram as cifras, por meio das
quais os diversos Estados se correspondiam com os seus agentes; para as decifrar era preciso engenho e muito trabalho.
"D. João V, fiando da grande inteligência de Bartolomeu Lourenço, encarregou-lhe esse
espinhoso, incomodante e inglório mister; e tão bem se houve ele neste assunto que, enquanto viveu, não houve cifra por mais difícil que não
traduzisse, pondo assim o governo português no pé de poder tratar desassombradamente e prevenido com todos os outros governos.
"Morto Bartolomeu Lourenço, e alterando os diversos gabinetes as suas cifras, ficou o
governo português de novo às escuras, podendo finalmente Alexandre de Gusmão, ao cabo de muito trabalho, suprir a falta do irmão nesse assunto e até
inventar uma cifra de impossível decifração."
É Alexandre de Gusmão quem o diz no já referido Memorial. Ouçamo-lo: "Quando
o suplicante começou a ser admitido por vossa majestade em coisas de maior segredo, achou praticado o mesmo, que em todas as outras cortes se
pratica, de se abrirem aquelas cartas de que pode resultar perigo à quietação do Estado; esta diligência, porém, então quase infrutuosa, porque as
coisas, que se faziam recatar do conhecimento desta corte, iam ou vinham cifradas, e depois da morte do dito irmão do suplicante, não havia quem
descobrisse as cifras, nem as serviam as que ele havia descoberto, porque os ministros que haviam vindo de novo, haviam trazido outras diversas.
"Esta operação pois entregou v. majestade ao suplicante, que teve a fortuna de
descobrir todas as cifras que então se ofereceram e foram três da corte de França, uma de Roma, além de outras fáceis de particulares; tendo
principalmente com as três primeiras um insano trabalho, que só pode bem compreender quem já tentasse a mesma empresa".
Para se avaliar a importância deste serviço, vejamos ainda o que a tal respeito diz
Alexandre de Gusmão logo em seguida:
"Por meio deste trabalho do suplicante (e o mesmo, por
conseguinte, se deve julgar do irmão), foi vossa majestade sabedor (enquanto quis) dos segredos daquelas cortes em tudo quanto dizia respeito a
esta; o que não foi de pouca utilidade ao seu real serviço, principalmente nos movimentos do ano de 1735 e dos seguintes, evitando-se, ou
acautelando-se muitas outras coisas, que sem isso haveriam tido pesadíssimas conseqüências".
Hoje não damos nós, filhos de outras épocas, com outras idéias, outros hábitos; outra
mentira (N.E.: SIC: a palavra mais adequada seria maneira) de ver as coisas, a
importância devida a tão improbo e fatigante trabalho, mas o grande e hábil político que assim o descreveu, e julgou ser esse um dos mais
importantes serviços que prestou ao país, deixa-nos avaliar este serviço de seu irmão, e conhecer a confiança que nele depositava o rei, e a
fidelidade de que era dotado".
Bartolomeu de Gusmão, por Benedito Calixto
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Os irmãos de Bartolomeu de Gusmão
Irmandade privilegiada, em que sobressaem dois homens geniais e uma mulher morta em cheiro
de santidade, ainda contavam os Gusmões diversas personalidades de valor, cujo renome, se não atingiu as culminâncias do de seus irmãos, nem por
isso mereceu o olvido total.
A três dos irmãos do "Voador" consagra Diogo Barbosa Machado elogiosas notícias
bibliográficas:
Padre Inácio Rodrigues - Aluno da Sagrada Companhia de Jesus, nasceu em a Vila de
Santos, da Capitania de São Paulo, na América Portuguesa. Não querendo degenerar do talento hereditário em todos os seus irmãos, o dr. Bartolomeu
Lourenço de Gusmão e Alexandre de Gusmão, fidalgo da Casa Real e deputado do Conselho Ultramarino, e de frei João Álvares de Santa Maria, carmelita,
dos quais se faz memória em seu lugar, saiu eminente na arte concionatória, da qual, para eterna recomendação de seu nome, publicou: Sermões da
Paixão, pregados na Santa Igreja de Lisboa, no ano de 1738 e no ano de 1745, por Pedro Ferreira; e Impressões da Sereníssima Rainha,
1746.
Frei João Álvares de Santa Maria - Professou o sagrado instituto da Ordem de Nossa
Senhora do Carmo, da primitiva observância, em o Convento do Rio de Janeiro, onde, pela agudeza do seu engenho, cultivado com a contínua aplicação
às ciências severas, chegou a jubilar na Sagrada Teologia.
Obrigado pelos seus superiores, passou a Portugal, a procurar os negócios de sua religião,
em cujo ministério mostrou zelo e atividade. Para mostrar como era perito nos preceitos da oratória eclesiástica, publicou como primícias da sua
eloqüência concionatória: Sermão de São Nicolau, pregado na paróquia do mesmo santo de Lisboa ocidental, em o ano de 1739, Lisboa, por
Antonio Isidoro da Fonseca, 1740.
Frei Patrício de Santa Maria - irmão de Alexandre e de frei João Álvares de Santa
Maria - abraçou o instituto seráfico na reforma provincial da Imaculada Conceição do Rio de Janeiro, onde, depois de instruído com as ciências
severas, passando à Itália, se incorporou na província de Tuscia.
Movido de afeto devoto, se resolveu venerar os lugares de Jerusalém, santificados com o
sangue do Divino Redentor, e, desprezando os incômodos da jornada, chegou àquela cidade e ao convento que nela tem a região seráfica habitat
presentemente (1752), observando exatamente seu instituto e escrevendo as obras seguintes, em que mostra igual erudição que piedade:
Mel de petra Sanctissimi Sepulchri Domini nostri J. C. oleumque de saxu duríssimo
sacrosanti Montis Calvarii, idest libellus historicus in quo nonsolum agitur de gratiis quae in Terra Sancta maxime augustissimi gloriosissimi
Sepulchri Domini nostre J. C. Basilica a visitantibus obtinera queunt mirabilibusis sacra loca concernentibus, verum etiam de aliquibus indulgentis
hic, et ubique tam religiosis, quam secularibus concessis de que notabilibus acitu dignissimus. Post haec exarantur Processiones quae in his
sanctissimis locis a Religiosis Franciscanus indies ordinari solent. Ulyssipone Typisregalibus sylvianis.
Regiaeque Academae, 1742.
Enenchus Caerimoniarum Terrae Sanctae in quo non solum ritus toti Ecclesiae communes
enucleantur imo et particulares qui santuariorium gratia per Fratres Minores peraguntur
Lisbonae typis Emmanuelis Alvares Soares, 1754.
Pouco adita Inocêncio às nótulas de Barbosa Machado. Sobre Frei João Álvares de Santa Maria
limita-se a dizer que acompanhou o "Voador" em sua fuga de Portugal para Espanha, para pouco depois da morte do irmão regressar a Lisboa.
Declara o douto bibliógrafo ignorar as datas do nascimento e da morte do carmelita, de quem
apenas declara existir o Sermão de São Nicolau. Refere-se o sr. comendador João Manoel Alfaia Rodrigues, esforçado paladino das glórias do "Voador",
e a cujos esforços se devem "magna para" a ereção do monumento do aeronauta em Santos, conta-nos este dedicado defensor dos direitos de
Gusmão que frei João Álvares de Santa Maria não quis, após a morte do irmão, voltar a Portugal. Assim se incorporou a uma das províncias espanholas
de sua Ordem e, nesta qualidade, foi, em certa ocasião, enviado a servir no Chile. Neste país passou bastantes anos e lá deixou excelente reputação
como homem de talento, virtude e saber.
Procurando esclarecer este caso, escrevemos a eruditos chilenos pedindo-lhes informes a tal
respeito, mas até agora nada conseguimos obter.
Seja como for, regressou frei João Álvares a Portugal, pois, como vimos, em 1739, pregou em
Lisboa, na paróquia de São Nicolau. Muito honroso é o que Inocêncio escreve dos talentos do padre Inácio Rodrigues, cujos apreciadíssimos sermões da
Paixão já em 1794 se tinham em conta de extremamente raros, no dizer de José Caetano de Mesquita, em suas Instruções de Retórica e Eloqüência.
Tais orações eram, no seu gênero, consideradas muito perfeitas e por este motivo as
reproduzia este autor, hoje obsoleto.
Mas o grande mérito do padre Inácio Rodrigues residia em sua campanha de combate ao
gongorismo na oratória sacra. |