Mensagem de telex enviada ao Ministério da Justiça, em 23 de setembro de 1983,
pelo Centro Nacional de Navegação Transatlântica (Centronave ou CNNT), com cópia para a Agência de Vapores Grieg, informando sobre um ataque ao
navio Agenor, consignado àquela agência marítima e atracado ao cais do armazém 3 do porto santista, em sua viagem número 70-Sul:
"Noite passada elementos estranhos à operação do navio roubaram uisque/aparelhos
eletrônicos (carga em trânsito) - para tal usaram armas/disparos afugentar tripulação. Comandante agora recusando descarga período noturno e t
ripulação aparentemente solicitando repatriamento deste porto alegando falta garantia de vida. Contactamos Polícia Federal, contudo sem conseguirmos
nenhuma garantia segurança a bordo. Situação porto crítica, para a qual solicitamos imediata atenção autoridades federais que o caso está a
requerer. Gratos por providências, cordialmente, Ney Câmara Valdez, diretor executivo/Centro Nacional de Navegação Transatlântica/Rio"
Imagem: arquivo Novo Milênio
Pirataria em Santos
(foi longe demais...)
Providências imediatas para conter a série de casos de
pirataria e roubo a bordo de navios no porto de Santos - que na semana passada atingiu proporções alarmantes, em função da audácia e da violência
empregadas - estão sendo exigidas pela comunidade marítima santista, já que no Exterior se pensa até em ampliar as taxas securitárias de cobertura
dos prejuízos com roubo, entre outras medidas. E uma forma de reduzir substancialmente a incidência de crimes no porto santista é a reinstalação do
Grupamento de Fuzileiros Navais de Santos - que já se justifica no entendimento até de oficiais navais, mas que teria que ser requerida pelo governo
paulista.
Por outro lado, há necessidade de se minimizar - ou preferencialmente eliminar - as
divergências entre as várias forças policiais e de fiscalização que atuam no porto (especialmente entre Receita e Polícia Federal) como forma de
reduzir a criminalidade no porto, inclusive o amplo e estruturado contrabando de mercadorias, que já envolveu inclusive elementos da Receita e da
Polícia Federal, conforme denúncias periodicamente divulgadas por ambos os órgãos, resultantes de velhas divergências mútuas.
Em Santos já aconteceu todo tipo de crime vinculado a cargas transportadas pelos
navios:
piratas usando
modernas lanchas abordam navios ao largo, em dia tempestuoso, movimentam guindastes de bordo para deslocar conteineres e abri-los - e só mexem nos
que contêm a carga que lhes interessa -, retiram a carga e a tripulação não viu ninguém;
um navio
assaltado no porto e submetido a vigilância maior é novamente roubado na noite seguinte;
um submarino
chega imerso ao porto à noite e descobre que pacotes-bóias flutuando no mar contêm cerca de 30 videocassetes;
polícia federal
invade prédio da Receita e encontra contrabando em armário de fiscal;
policial federal
é visto por fiscal fazendário saindo de navio com a sacola cheia de mercadorias de contrabando;
veículos oficiais
usados na retirada de caixas de uísque e outros produtos de bordo;
supostos
trabalhadores avulsos arrebentando caixas nos porões e até cofres de bordo, ou ladrões armados utilizando carteirinhas de ingresso no porto de
trabalhadores avulsos, aproveitando que não há muita verificação sobre se o portador da carteirinha é o mesmo que ela autoriza a entrar no cais;
vigilância
portuária insuficiente por falta de recursos para contratação de equipamento e pessoal;
vigilância naval
com uma lancha-patrulha que ao passar involuntariamente serve como sinal aos criminosos para agir, conscientes de que há um intervalo bastante amplo
até que a lancha retorne.
Acima de tudo, de todas as falhas estruturais da vigilância no porto, há a certeza de
quase impunidade dos maiores envolvidos e da represália certa contra os acusadores. Pois - como foi denunciado por diversas autoridades e pela
imprensa - está agindo em Santos não uma série de grupos desvinculados, mas toda uma ampla e organizada rede de criminosos e receptadores, com
representantes até em segmentos da alta sociedade - há graves acusações envolvendo a própria cúpula policial -, e redes de armazenagem e
distribuição dos produtos roubados ou contrabandeados.
Portanto, não basta um entrosamento entre forças policiais e de vigilância locais, há
necessidade de medidas extraordinárias a serem adotadas nos âmbitos estadual e federal, como a volta do grupamento de fuzileiros navais. Outra
medida, sugerida pelo delegado santista da Receita Federal, Luiz Antonio Lucena de Oliva, é a criação de um corpo de vigilantes aduaneiros, composto
de 500 homens, devidamente treinados e armados, e comandado por oficiais navais - idéia que já está em estudos em Brasília.
O conceito do porto de Santos no Exterior está caindo rapidamente, como demonstra a
posição da International Shipping Federation (ISF), que em telex a todas as entidades filiadas classifica o porto como perigoso. Isso traz reflexos
principalmente nos seguros de navio e carga, com aumentos de valores, que elevam bastante os fretes marítimos e terrestres.
Em meio a todos esses problemas, não pode ser esquecida a figura do vigia de bordo:
geralmente apenas um por navio, sem porte de arma, tendo de controlar o acesso pela escada do cais, e por vezes sem visão do resto do convés, quando
a embarcação está muito cheia.
A ação dos piratas é no sentido de imediatamente imobilizar a tripulação,
surpreendendo e rendendo o vigia, de forma a impedir que soe o alarma ou seja usada a cabine de rádio de bordo. E quando um tripulante consegue dar
o alarma, os criminosos já foram embora, e têm tempo de fugir antes que se consiga mobilizar um esquema para sua captura.
E o pior é que os piratas estão cada vez mais ousados, pois além de roubar a carga
(prejuízo parcialmente recuperável através do seguro), estão assaltando as cabinas dos comandantes e outros tripulantes, e principalmente estão
utilizando de grande violência nos assaltos, atirando e agredindo os tripulantes com objetos contundentes.
Embora também ocorra em certos casos a participação de tripulantes nos crimes - por
negligência ou omissão proposital, ou mesmo pela colaboração ativa -, a própria falta de meios de defesa e o medo de represálias quando se denuncia
os piratas (geralmente os mesmos, segundo consta) facilitam a escalada da criminalidade.
Uma relação - aliás bastante incompleta, pois em razão da burocracia e má vontade de
certos elementos da polícia, muitas vítimas são desencorajadas de registrar roubos de menor porte - mostra uma média de um caso por quinzena, entre
os mais graves:
Dia 3/2, roubo de dinheiro e pertences da cabine do comandante do Golden Wave,
consignado à Transatlantic Carriers; dia 21/2, roubo de carga e da cabine do comandante no Jade II, da Grieg; dia 28/2, roubo de carga no
Sea Enterprise, da Lachmann; em março, roubo de pertences e dinheiro da cabine do comandante do Amelia Topic, da Wilson Sons; em março,
também, roubo do cofre, de dinheiro e pertences da cabine do comandante do Strider Crystal, da Agenave; em 9/3, roubo de carga do Thasos
Island, da Neptunia; dia 20/4, roubo de pertences, jóias da cabine do comandante do Lips, da Cory; dia 30/5, roubo de carga em conteiner
no Ocean Hope, da Wilson Sons; dia 20/6, roubo de carga do Yaguari, da Pronave; dia 22/6, roubo de conteiner com perfume no Van
Dyck, da Delta Line; dia 25/6, roubo da cabine do comandante do Takachiro, da Eurobrás; em junho, roubo de pertences e dinheiro do
comandante do Benvorlich, da Eurobrás, então no pier da Ultrafértil; dia 7/7, roubo de dinheiro e pertences da cabine do comandante do
Asia Honesty, da Transatlantic Carriers.
Em agosto, a lista prossegue com o roubo de pertences e dinheiro do comandante do
Great Universe, da Rosalinha; e em setembro destaca-se a seqüência de três: dia 9, roubo da cabine do comandante do Angelic Protector, da
Sinarius; dia 13, roubo da cabine e agressão a tripulantes do Kapetanissa, consignado à Rodrimar, e do Almalaz, consignado à L.
Figueiredo, este atracado no píer da Cosipa.
Estes três últimos são os casos mais graves, por envolverem agressão a tripulantes. O
Angelis Protector estava atracado no Terminal de Conceiçãozinha quando, às 21 horas do dia 9, quatro piratas encapuzados abordaram o navio em
duas embarcações, usando armas de grosso calibre para renderem os tripulantes e prendê-los em uma cabine. Agrediram e armarraram o imediato Sigilas
Panagiotis e roubaram um cofre com dinheiro e pertences da tripulação, além de produtos médicos tóxicos.
Já na terça-feira passada, foi a vez do Kapetanissa, como relata a gerência de
comunicação da Cosipa: "Entre as 23 horas do último dia 13 e 0h15 do dia 14, o navio Kapetanissa, que operava no
terminal marítimo privativo da Cosipa, em Cubatão, foi invadido por oito elementos que tomaram de assalto a embarcação, utilizando-se de uma lancha.
Três tripulantes foram agredidos e atendidos no pronto-socorro da própria usina, sendo que um deles precisou ser removido para atendimento
hospitalar com suspeita de fratura no nariz. O navio havia atracado no porto da Cosipa na tarde do dia 13 para a descarga de 45 mil toneladas de
carvão procedente dos Estados Unidos.
"O pier privativo da empresa possui 150 metros de extensão, cuja segurança é de
responsabilidade da Guarda Portuária - geralmente dois elementos por turno - que trabalha para a Cosipa, subordinada às normas da Capitania dos
Portos. À Polícia Naval compete a vigilância da parte marítima, enquanto que as embarcações propriamente ditas ficam sob a alçada da Polícia Federal",
completa o telex enviado por aquela gerência aos órgãos de imprensa.
Momentos após, às 2h30, outro navio foi atacado: o Almalaz, com bandeira da
Arábia Saudita e tripulação indiana, abordado pelos piratas a bordo de uma lancha, pelo lado de mar, que empunhando armas de grosso calibre e barras
de ferro atacaram o marinheiro Hassan Boduvagothe, roubaram o camarote do oficial de serviço, Jerone Pereira, e agrediram o marinheiro Korimou
Hussain.
Simultaneamente, o quarto-engenheiro de máquinas levou um tiro no abdômen ao abrir a
porta da cabine para ver o que estava ocorrendo, seguindo os piratas para o camarote do comandante Gopal Krishinan, agredindo-o várias vezes e
roubando dinheiro, ouro e jóias; em seu camarote, o primeiro-piloto S.L. Ahire foi agredido e roubado, bem como foram agredidos a tiros e coronhadas
o cadete-aprendiz Saanjiv Mirchandans, o contramestre Moosaa Ismail e ainda o mecânico C.M. Nair, de outro navio, ali presente.
PF: a burocracia - Em vez de uma atitude de ordem prática para reduzir a
incidência da criminalidade a bordo, a Polícia Federal, como reflexo dos últimos acontecimentos, apenas enviou ao Centro Nacional de Navegação
Transatlântica (CNNT/Santos) o ofício 040/SEC/GAB/DPF/ST, dia 12, comunicando:
"Através do presente, transcrevemos o encaminhamento a v. ss., para conhecimento, das
orientações contidas na Ordem de Serviço nº 002/82/GAB/DPF/ST, de 5 de julho de 1982, que se referem aos crimes de competência da Polícia Federal
que ocorram a bordo de navios atracados e/ou fundeados no Porto de Santos-SP.
"As instruções são as seguintes:
"1) o Serviço de Plantão da DPF/ST deverá:
"a) Orientar a vítima ou o denunciante no sentido de encaminhar, com máxima
urgência, a notícia-crime, já traduzida e assinada, contendo exposição detalhada dos fatos delituosos, com todas suas particularidades e
circunstâncias, a esta Divisão de Polícia Federal, sem desprezo ao princípio da oportunidade (grifo da CNNT).
"b) Solicitar, ainda, seja a notícia-crime instruída com termo de avaria e
manifesto de carga; também solicitar o rol das coisas furtadas e/ou roubadas ou rol dos danos/prejuízos causados. (p/exemplo: caso de furto em
camarotes, de coisas pessoais do comandante etc.);
"c) Encaminhar, no primeiro dia útil seguinte, a notícia-crime à Secretaria do
Gabinete, para despacho.
"2) As autoridades-de-dia, da DPF/ST, deverão:
"a) Em casos de flagrante delito, uma vez acionadas pelo Plantão, adotar providências
estipuladas nos artigos 301 e seguintes do Código de Processo Penal Brasileiro;
"b) Em casos outros, em sendo possível, necessário ou conveniente, cumprir as
providências consubstanciadas nos artigos 5º, 6º e 169 do mesmo diploma legal.
"3) As certidões requeridas em razão desta Ordem de Serviço, em regra, ficam
condicionadas ao cumprimento pelo interessado do acima estipulado e, também, à conclusão das investigações.
"À oportunidade, apresentamos a V.Sa. os nossos protestos de estima e consideração.
(ass.): Bel. Antonio Carlos Pimentel (Delegado de Polícia Federal/Diretor em Exercício DPF/ST".
Segundo o Código Penal, o artigo 301 autoriza a prisão por qualquer pessoa e pelas
autoridades policiais e seus agentes de quem quer que seja encontrado em flagrante delito (o que é definido no artigo 302 e no 303), enquanto os
artigos 5º, 6º e 169º referem-se à observância de normas pela autoridade policial.
Rio de Janeiro também - Enquanto em Santos a preocupação maior é na área de
carga geral, no porto do Rio de Janeiro o problema é com os granéis líquidos. Segundo as normas de atracação, se o navio multipurpose
(N.E.: tipo de navio capaz de transportar diferentes tipos de carga, como carga geral seca, granéis sólidos, contêineres etc.)
transporta grande quantidade de produtos inflamáveis e o teor é grande, antes do navio atracar para operar com carga geral deve transferir o produto
para chatas ao largo; quando a quantidade e o teor são pequenos, o produto é armazenado em terra, no cais de inflamáveis.
Na prática é diferente, pois, segundo os agentes de navegação, a Cia. Docas do Rio de
Janeiro (CDRJ) não possui condições de armazenamento de quantidades razoáveis desses produtos, e o cargueiro que os transporta deve transferi-los
para chatas, que tem de ser alugada, pois a CDRJ não as possui.
O importador dos inflamáveis tem de antecipadamente pagar pela chata (aluguel), pela
colocação de um vigia e pelo serviço de rebocagem da chata. Toda vez que um importador paga o despacho, é necessário levar a chata ao cais para
descarregar a mercadoria despachada, e assim ocorre para cada lote despachado - o que significa um grande custo de rebocador, desperdício de
combustível nesses deslocamentos.
Além de tudo, a CDRJ não considera a carga em chata como recebida, apesar de estar no
porto. Assim, a chata é roubada (como fica apenas um vigia desarmado, os piratas chegam armados e levam o que querem), ficando o prejuízo por conta
do navio.
Em Biafra - Um indício de como poderão evoluir as coisas em termos de repressão
à pirataria no Brasil, se não houver rápidas providências por parte das autoridades: está circulando em Santos um fato reportado por um Protection
and Indemnity Club (P&I Club) (N.E.: tipo de clube de seguros mútuos formado pelos armadores de navios para arcar com
os pesados encargos dos seguros das embarcações), ocorrido em Biafra, onde eram comuns os assaltos a bordo, e o
comandante de um navio russo fuzilou quatro criminosos e atirou seus corpos na água. Em seguida, pelo rádio, avisou as autoridades policiais para
que recolhessem os corpos e levantou âncoras, deixando o país. |