Carlos Pimentel Mendes
Fotos: Arnaldo Giaxa
"Boi no canal! Eh, boi! Vem ver, tem um boi no canal, olha lá os bombeiros, no
barco! Vão laçar o boi! Ele fugiu, tá indo pro mar!" - Dessa forma, aproximadamente cinco mil pessoas acompanharam os lances da fuga de um boi, do
Estádio Ulrico Mursa, e que caiu no canal da Avenida Pinheiro Machado e teve que ser levado até a praia. Peões do rodeio que se vinha apresentando
naquele estádio, com auxílio de bombeiros e policiais, acabaram proporcionando verdadeiro espetáculo à multidão, que se juntou para ver os trabalhos
de resgate, enquanto grandes congestionamentos de trânsito se formavam em toda a extensão da avenida.
Tudo começou às 9 horas, quando o boi Semblante, da Companhia Furacão de Rodeios, que se apresentou nestes
últimos três dias no Estádio da Associação Atlética Portuguesa Santista, fugiu ao ser levado para um caminhão de transporte de animais que fora
colocado à entrada do campo, e caiu dentro do Canal 1.
O fato imediatamente chamou a atenção de populares, que começaram a se aglomerar de ambos os lados do canal.
Motoristas abandonavam o carro na avenida para ver o espetáculo, juntando-se às crianças.
Geraldo Magela Dami, capataz dos peões do rodeio, passou a dirigir os trabalhos, em uma fracassada tentativa de
puxar o boi com cordas. Semblante pesa 400 quilos e as cordas de segurança com que foi amarrado não resistiram: às 9h30, após quase ter saído
do canal, caía novamente arrebentando a corda. Foi quando decidiram pedir ajuda ao Corpo de Bombeiros.
Às 9h45 chega a viatura da Rádio Patrulha, prefixo 4.005, os PMs Romão e Isaías haviam sido chamados para atender
a uma desinteligência: os peões ficaram nervosos com os constantes palpites do pessoal que assistia. Houve uma pequena briga, mas logo foi separada.
Os trabalhos continuavam. Ivani Cândido, um peão cuja camisa justificava seu apelido Camisa Vermelha,
mostrava um corte na perna, sangrando, produzido por uma corda, que se enrolara, quando ele procurava içar o boi do canal. Dizia: "A primeira vez
que ocorre algo semelhante. O boi se jogou no canal, devido ao forte calor, não agüentou. Boi gosta muito de água, por isso ele fez isso".
Faltando cinco minutos para as 10 horas, chegava a guarnição de salvamento AS-17 do Corpo de Bombeiros, comandada
pelo cabo Passos, trazendo um bote. Já era grande o congestionamento de ambos os lados da Avenida Pinheiro Machado e imediações. A primeira pergunta
dos bombeiros foi: "O boi é manso?" Os peões responderam que sim. Durante alguns minutos, peões e bombeiros trocaram idéias sobre como remover o
animal, concordaram que içar Semblante poderia feri-lo. Para suspendê-lo com um guincho, ficaria muito caro. Assim, resolveram que o boi
seria levado até a praia, por dentro do canal, e de lá trazido para terra. Começava o melhor do espetáculo, para a delirante criançada.
Às 10 horas, os bombeiros desciam o barco salva-vidas e o colocavam no canal, procurando cercar o boi. A corda que
já estava presa em Semblante foi amarrada ao barco:
para um bombeiro ir na frente, remando e puxando o boi, enquanto um outro iria atrás, cutucando-o e empurrando-o. Na primeira tentativa, entretanto,
o boi passou à frente do barco e os bombeiros modificaram o método: ambos iriam dentro do bote, puxados pelo boi, que avançava ao ser espantado e
cutucado com o remo. A gargalhada era geral entre os assistentes, chegando alguns a comentar: "Aonde o boi vai, o bombeiro vai atrás".
Novamente, formou-se grande congestionamento: motoristas eram forçados a parar, pois as crianças, alvoroçadas com
o acontecimento, cruzavam correndo a avenida, descuidando-se do trânsito. Ao mesmo tempo, desciam dos carros, atraídos pela multidão. Nos ônibus e
nas casas, as pessoas iam para as janelas ver as peripécias da retirada do boi. Durante o percurso de 2.800 metros - extensão daquele trecho do
canal - mais pessoas iam chegando: crianças, donas-de-casa, executivos, banhistas, passageiros de ônibus, turistas. Perto da Escola Municipal de 1º
Grau Olavo Bilac, um táxi parou e tanto o motorista como a passageira desceram para ver o boi. E na redação de A Tribuna, o telefone não
parava de tocar.
Após o Curvão, na altura do número 500, quando a corda que prendia o animal ao barco foi solta, este passou
a correr, e as crianças aplaudiram. Durante todo o tempo, um automóvel com alto-falantes anunciava o espetáculo que a Companhia Furacão apresentaria
à noite, com rodeio, números engraçados com três burrinhos etc. O caminhão levando os outros animais, inclusive o touro Veludo, a sensação do
rodeio, seguia juntamente com uma viatura dos bombeiros e outra da Polícia Militar. Ao atingir a Rua Carvalho de Mendonça, o boi assustou-se e
voltou até o Curvão, após provocar espetacular tombo de um dos bombeiros que tentou impedir sua fuga. Mas dois peões do rodeio conseguiram
pará-lo, fazendo com que continuasse seu caminho rumo ao mar. Já eram 10h45 e o boi começava a mostrar sinais de cansaço, devido à lama do canal,
que lhe dificultava os movimentos.
Comentava-se que tudo não passava de campanha promocional do espetáculo que haveria à noite: "Pode reparar, toda
vez que vem um circo, sempre dão um jeito de aparecer um domador com a mão enfaixada, dizendo que o leão tentou matá-lo, ou coisa parecida, para
chamar público. Isso aí é a mesma coisa". O fato entretanto foi desmentido por Antônio Veloz Barbosa, conhecido como Tião Mascarado: "Pelo
amor de Deus, não foi de propósito não. Se fosse propaganda, a gente fazia no sábado ou no domingo, e atraía mais gente para os espetáculos. Mas a
gente está indo embora hoje (ontem). Se a gente tivesse feito isso dias antes, até as notícias nos jornais seriam promoção para a gente, mas não
houve essa intenção. Esse boi ia ser carregado para São Paulo, lá no campo da Portuguesa, e aí escapou. Com isso, sem querer acabamos dando um
presente de Natal para a criançada, que assim está vendo um rodeio gratuito no canal".
Naquele trecho, o Camisa Vermelha tentou agarrar o "astro do espetáculo", que entretanto se assustou e
fugiu, não sem antes causar novo e espetacular tombo, desta vez do próprio Camisa Vermelha, o que causou gargalhadas e aplausos.
Às 11h10, o boi atingia a linha férrea, após algumas dificuldades. Dez minutos depois chegava ao último trecho do
canal, entre a avenida e o mar. O trânsito foi interrompido nas avenidas Presidente Wilson, Floriano Peixoto e Pinheiro Machado, pelo público que
corria por entre os carros, procurando ver o boi. Os peões, junto à última ponte, próximo ao mar, prepararam uma emboscada: queriam laçar o boi,
para que este não fugisse, ao entrar no mar. O animal percebeu: apesar de os bombeiros tentarem impedir, começou a voltar, passando pela Presidente
Wilson, em direção à Floriano Peixoto.
Com muito custo, bombeiros e peões conseguiram afugentar Semblante em direção ao mar, que correndo
ludibriou a todos e entrou na água, afastando-se da praia em direção à Ilha de Urubuqueçaba. Banhistas, bombeiros e funcionários do rodeio nadaram
atrás dele, dominando-o aproximadamente a duzentos metros da Praia do José Menino.
Amarrado, Semblante foi conduzido à praia e arrastado em direção ao passeio junto ao Canal 1. Empurrado por
três homens e puxado por mais dez, o boi foi colocado em um trecho elevado do passeio.
Faltando cinco minutos para o meio-dia, em rápida operação, o boi era colocado no caminhão. Terminava o
espetáculo. A multidão começou a se afastar comentando os episódios da captura de Semblante. Embora cansados, os peões do rodeio - vindos de
Barretos, Penápolis, Araçatuba e até do Paraná - descansavam um pouco, antes de se retirarem. O rodeio gratuito e inesperado terminara, mas eles
sabiam que à noite o Estádio Ulrico Mursa estaria lotado, para assistir ao espetáculo. Nessa noite novamente ofereceriam vinte mil cruzeiros para
quem conseguisse montar o touro Veludo. Novamente se apresentariam duplas caipiras e outros espetáculos durante os intervalos do rodeio. Mas
o melhor do espetáculo, "inesperado presente de Natal às crianças santistas", já havia ocorrido, durante aquelas três horas, com o boi fugido. |