O CASARÃO NA IMPRENSA
Os anos iam passando e o
casarão branco continuava como propriedade da família Canero, pois nenhuma oportunidade de vendê-lo se apresentava. O seu valor era muito grande e a
perspectiva de venda era remota, embora as companhias construtoras ambicionassem aquele terreno, cuja área é de 6.600 m². As mansões da orla da
praia estavam sendo demolidas, para dar lugar a prédios de apartamentos.
Com a inauguração da Via Anchieta, em 1947, facilitando sobremaneira a viagem para
Santos, houve uma verdadeira explosão imobiliária. A procura de apartamentos, para temporada e fins de semana, tornou-se intensa. Muita gente entrou
no ramo imobiliário e ganhou dinheiro.
Os paulistanos se habituaram a vir semanalmente em busca dos prazeres que nossas
praias oferecem. Os terrenos grandes passaram a ser cobiçados pelas construtoras e foram se escasseando.
No dia 13 de agosto de 1978, o jornal A Tribuna publicava extensa reportagem,
com texto de José Carlos Silvares e fotos de Ademir Henrique. O título: "Pobres casas ricas. Têm os dias contados".
Nesse dia começaram minhas lágrimas pelo casarão. Não culpo o repórter pelas palavras
que tanto me magoaram. Ele apenas se conduziu pelo que apurou junto a um de seus proprietários. Questionava o estilo da casa "que fora construída
pelos barões do café", coisa que o meu pai não era, os únicos títulos que guardava com carinho eram os conquistados através de seu trabalho devotado
junto às sociedades que atuavam no campo da benemerência. Falava-se ainda que a casa era mal assombrada.
Eu apenas chorei... mas meus irmãos Beatriz e Francisco responderam à referida
reportagem, com cartas publicadas pelo mesmo jornal na seção Tribuna do Leitor.
Sr. Editor Chefe:
Como santista que não olvida sua terra, deparei na A Tribuna de domingo, dia
13 de agosto, com uma reportagem intitulada "Pobres casas ricas. Têm os dias contados", muito bem feita, por sinal.
Para minha surpresa, o velho solar onde nasci, onde nasceu uma de minhas irmãs, e
onde nasceu minha primeira filha, abre o assunto dessa crônica, que desde logo constatei necessitar reparos substanciais, para que não se deturpe a
verdade, para que não se atinjam criaturas que foram dignificadas e exaltadas por sua conduta e, hoje, no mundo dos mortos, merecem o respeito, a
gratidão e a ternura daqueles que os conheceram ou têm conhecimento idôneo do que representam na sociedade e na comunidade onde viveram.
Culpa nenhuma cabe ao repórter, é evidente. Ele apenas registrou e levou ao público
o que recebeu. É por isso que gostaria de apresentar meu lado da questão, antes que fatos não verdadeiros sejam incorporados à história.
Nos idos 1910, meu pai, Francisco da Costa Pires, adquiriu de C. A. Dick, cidadão
alemão, dono de um curtume na Cidade de Santos, com filial em São Paulo, o prédio situado na Avenida Bartolomeu de Gusmão nº 12 (hoje número 15),
transação que foi feita, inclusive com móveis, utensílios, objetos de arte, quadros, tapeçaria etc.
Para efetivar esse negócio, meu pai utilizou numérico ganho com seu trabalho (não
dinheiro de herança...) no comércio de café, onde militava desde 1896. A origem de meu pai era humilde e honesta e nunca passou por sua cabeça
comprar títulos de nobreza como ocorria com muitas famílias. Muitos barões e condes que conhecemos, tinham origem duvidosa, foram escroques e até
analfabetos.
Nessa casa, vieram à luz do mundo dois de seus doze filhos, depois que precisou
vendê-la tendo o Asilo de Inválidos comprado por cento e cinqüenta contos.
Passaram-se dez anos e, tendo o Asilo dos Inválidos construído novas instalações no
Canal 1, onde creio estar ainda, pôs à venda o velho casarão. Foi quando meu pai recomprou-o, pagando a mesma importância pela qual havia vendido,
dado ao lastimável estado em que se encontrava.
Encetou, então, uma reforma total, aproveitando apenas as paredes e mantendo o
estilo quanto possível. Esse trabalho esteve a cargo do sr. Maurílio Porto, engenheiro do mais alto conceito em Santos.
Em 1923, retornamos ao velho lar e, então, lá vivemos anos felizes e tranqüilos.
Quando nos casamos, moramos dezoito meses lá, e tivemos a alegria de ver nascer, no mesmo quarto em que nascemos, a nossa primeira filha.
A crise do café, conseqüência do craque da Bolsa de Nova Iorque, criou para o meu
pai uma situação de grande gravidade e, como conseqüência, para não dar prejuízos a terceiros, teve que vender mais de uma centena (!) de
propriedades, todo o seu patrimônio. Entre essas, foi o austero solar onde passei a meninice e onde tornei-me homem.
O sr. Antonio Canero adquiriu esse palácio, com um terreno de pouco mais de oito
mil metros quadrados (e não fantasia de um minifúndio de um alqueire) pela importância de trezentos e setenta e cinco contos de réis!
A casa lhe foi entregue vazia, sem lustres, sem cortinas e sem assombrações.
Tudo que hoje possui foi posto pelo novo dono, cujo gosto não posso avaliar, porque
nunca mais nela estive. Os vitrais foram colocados por meu pai e foram confeccionados pela Casa Conrado, da capital, cujos proprietários eram os
Sorwenitch. Não se originam de Viena.
Em nosso tempo, a bela mansão era freqüentada por inúmeros familiares e por dúzia
de pessoas, velhas amizades que nos apreciavam. Veja, pois, quanta poesia barata foi feita a respeito da velha casa. É bom que saiba o felizardo
herdeiro do produto do ferro-velho, que não foram barões de café, nem tampouco noveau-riches (título que talvez lhe assente como luva),
aqueles que antecederam o sr. Antônio Canero como donos desse patrimônio.
Foi, sim, uma criatura que deixou, nos anais da Cidade de Santos, uma folha de
serviços prestados inestimável e, na benemerência, se ombreou aos que mais fizeram.
Era fino de trato, simples, quase humilde, porque, exatamente, era sábio. Foi um
cidadão que jamais negligenciou com seus deveres, e amou sua pátria com os extremos da veneração.
Não foi barão e nunca foi noveau-riche, porque antes de tudo e acima de
tudo, foi humano, maravilhosamente compreensivo e fraterno.
Essas as considerações que achei necessárias num preito de gratidão e de justiça a
alguém que após vinte e um anos de sua morte, foi mal retratado no jornal que em vida lia todos os dias, e que sempre lhe mereceu respeito e muito
apreço.
A via pública que traz o seu nome na Terra dos Andradas foi uma das manifestações
de gratidão do povo santista. - Francisco de Barros Pires.
Sr. redator:
Li a reportagem de J. C. Silvares em A Tribuna de domingo. É pena que não se
busquem fontes seguras quando desejamos comunicar algo sobre história, tradições, momentos, ou outro qualquer assunto referente à vida de nossa
cidade. O que se diz da casa nº 15 da Av. Bartolomeu de Gusmão, por exemplo, merece alguns reparos, pois em primeiro lugar, nunca foi uma casa mal
assombrada (só se o é agora). Aí residi, casei-me, nasceram dois de meus filhos, e nunca vimos ou sentimos algo de anormal.
Não houve "barões de café" ou noveau-riches paulistanos em sua história. Ela
foi construída no começo do século, propriedade de C. A. Dick, alemão que aí residiu vários anos. Então, não havia os acréscimos laterais, varanda
envidraçada à direita e entrada de carro à esquerda. A escada também era diferente. Isso até 1920. Nessa época, o Asilo de Inválidos, que aí
funcionava, mudou-se para as novas instalações.
A propriedade foi comprada por minha família e só as paredes aproveitadas, tal o
estado em que se achava. A reforma, tal como se vê, foi projeto e execução do arquiteto dr. Maurílio Porto, tendo como assistente o engenheiro dr.
Dalberto Moura Ribeiro, ambos considerados profissionais de gabarito.
O estilo de casa, talvez calcado em recordações da velha Alemanha, não importa. O
que sei informar é que estudantes da nossa Faculdade de Arquitetura têm procurado conhecer detalhes sobre o que consideram um admirável monumento
arquitetônico. Os vitrais, ainda existentes no alpendre e na varanda, não vieram do estrangeiro: a Casa Conrado, de S. Paulo, encarregou-se de sua
confecção.
Se há estatuetas de gesso, telas, afrescos espalhados pelo teto e nas paredes, tudo
isso foi modificação feita a partir de 1935, pelo novo proprietário, que recebeu a casa completamente vazia. Nessa época, o teto era todo em
estuque, artisticamente trabalhado.
Para rematar, desde o portão da frente até o do fundo, havia um jardim
caprichosamente desenhado, com pérgulas, gramados, alameda de jambolões, quadra de tênis etc. Não me parece que tenha havido muita diferença; só se
for internamente. Mas uma coisa não se pode negar até hoje, não há quem não se admire da grandiosidade dessa mansão, sendo que, não raro, param para
admirá-la. - Beatriz Pires de Lacerda.
UTILIDADE PÚBLICA
Passa a ser prefeito de
Santos Carlos Caldeira Filho. Talvez impulsionado pelas lembranças dos momentos em que freqüentou o casarão branco, muito amigo do Olavo,
interessou-se pela cobiçada propriedade, a de maior terreno não edificado, ainda existente na orla da praia.
Ele pensou em incorporar a propriedade ao patrimônio da Prefeitura, pois seria de
grande utilidade para a administração de nossa cidade.
Aos 9 de outubro de 1979, foi finalmente declarada de utilidade pública, através do
decreto municipal nº 5.645, assinado pelo senhor prefeito.
Dos sete herdeiros, cinco concordaram com o preço estipulado, mas dois (sendo um
menor) não concordavam. Começou então um prolongado litígio.
Logo depois, Carlos Caldeira Filho renunciou ao cargo, o que provocou uma paralisação
das negociações entre as partes. Santos, considerada área de segurança nacional, recebia um novo prefeito nomeado. O sr.
Paulo Gomes Barbosa, assumindo o cargo, logo declarou que só tomaria posse do imóvel quando a questão fosse solucionada.
Em 10 de outubro, dia seguinte ao do decreto expropriatório, A Tribuna
publicava notícia da idéia de ser instalada no casarão a nossa Câmara Municipal, cujo presidente era o dr. Washington di
Giovanni, o saudoso dr. Mimi. O secretário de Obras, o também saudoso engenheiro Reynaldo Tuzzolo, fora encarregado de proceder aos
necessários estudos, fortalecendo minhas esperanças de que o prédio não seria demolido.
Mas os dias corriam e nada ficava resolvido. Cheguei a escrever ao senhor prefeito,
tentando sensibilizá-lo, embora me garantissem que minha carta não chegaria às suas mãos.
Não mais sendo feitos os necessários serviços de manutenção, a casa começou a dar
sinais de deterioração. As construções da orla da praia necessitam de pintura periódica, pois o ar marítimo e as chuvas constantes causam grandes
estragos.
Aos 10 de abril de 1981, A Tribuna publicava sobre o destino do casarão, o qual
ainda continuava sem nenhuma providência por parte do prefeito. Ele enfatizava que as prioridades do seu governo eram outras e que por isso ainda
não estudara o aproveitamento do imóvel.
Para dar continuidade ao processo de posse, a Administração Municipal teria de partir
para a desapropriação judicial, o que demandaria longo tempo.
O aspecto da mansão era de abandono. Começam a aparecer rachaduras nas paredes,
conseqüência das construções que se levantaram ao lado.
Não tardou a ser alvo da ação dos vândalos, vitrais quebrados, trechos de grade
arrancados. O mato crescia fácil por toda parte. Luminárias eram roubadas.
O pior estava por acontecer. O herdeiro que não concordou com a desapropriação, por
entender que a quantia oferecida não correspondia ao valor do imóvel, chamou um senhor que vendia mate no Boqueirão, José Felix da Silva, e
concedeu-lhe permissão para morar no casarão. Autorizou-o a alugar todas as dependências a pessoas que não podiam pagar grandes aluguéis.
A mansão foi transformada em habitação coletiva, o que vinha provocar uma mais rápida
destruição. Não era apenas eu a sofrer com esses acontecimentos. Todos os que admiravam o casarão, que o conheceram em sua fase áurea, não se
conformavam com o destino que lhe estava sendo dado.
Parecia-me até uma represália, do herdeiro litigioso para com a Prefeitura, que
continuava alheia aos acontecimentos. Mas uma grande quantia já fora paga aos que concordavam com a transação, sem proveito. Era o dinheiro dos
contribuintes sendo dilapidado. Era o patrimônio da cidade, o afetado.
Os vizinhos viviam assustados, porque tornavam-se constantes as brigas entre
moradores, exigindo até a presença da polícia. de suas janelas, eles viam que eram retirados vitrais, peças de mármore, maçanetas de portas, para
serem vendidos. Muitas árvores foram cortadas, para servirem de lenha. Chegaram a colocar uma placa de madeira, oferecendo estacionamento para
carros.
Ainda os vizinhos, assistiram a entrada de caminhões levaram grandes bancos do jardim,
para lugar incerto e não sabido. Algumas dessas pessoas chegaram a transferir residência, pelo receio do que pudesse acontecer, dada a freqüência do
local.
CASARÃO EM DEBATE
Em sua edição de 5 de
dezembro de 1982, O Estado de São Paulo publicava uma reportagem com o título "Casarões sumindo da paisagem santista". Ilustrando o texto, o
casarão branco e a casas de nossa saudosa Lydia Federici, lamentavelmente demolida há pouco tempo.
Falava da "inquietude dos conservacionistas diante da investida dos espigões, que
expulsam o verde, os pássaros, bloqueiam a brisa e apagam da paisagem toda a arquitetura de uma época na qual morar bem era ter jardins e espaço".
A cidade, por ser pequena, tem de se expandir verticalmente. Essa era a opinião de
alguns arquitetos. Entendo que Santos se situa numa ilha saturada, sem terrenos vazios, mas não concordo com a destruição de construções que tenham
uma história, ou que representem uma época. Não podemos abandonar as tradições e destruir o que nos fala de um passado que merece ser lembrado.
O desaparecimento do Parque Balneário, que era símbolo do Gonzaga e hospedava tanta
gente ilustre, é lamentado até hoje. Nem mesmo a beleza do conjunto arquitetônico do novo hotel que foi ali erguido apaga as saudades que os
santistas têm do majestoso e antigo hotel.
O tempo foi passando e, a cada dia, o casarão ia sendo destruído. Eram 29 famílias ali
instaladas em condições precárias, contribuindo para uma decadência cada vez mais gritante.
Quando ali passava, ficava com o coração apertado. Meus apelos pelo jornal eram
constantes, mas assemelhavam-se a uma voz no deserto.
Comovia-me ao ver que alguns jovens se dispunham a lutar pela sua conservação, a
iniciar um movimento como forma de pressionar o prefeito Paulo Gomes Barbosa a retomar o processo, esquecido desde 1982.
Não posso deixar de citar os seus nomes, pois com sua atitude alimentaram minhas
esperanças de ver o imóvel recuperado. Foram eles: José Luiz Machado, Andréa Chiocarello e Letícia Maria Sabino. Corajosamente, expuseram suas
idéias na redação da A Tribuna. Transformar o casarão em espaço cultural.
Logo depois, outra jovem, estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos,
Cláudia dos Reis Franco, publica carta no mesmo jornal, insistindo em salvar o casarão e transformá-lo em espaço que fosse alvo do interesse dos
turistas que visitam a cidade.
Chegaram a falar em tombamento e foi encaminhado um pedido ao Condephat em 1982.
Para tratar de questões como essa, a então vereadora Telma de
Souza apresentou um projeto para a criação do Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Natural e Cultural de Santos, que ficaria subordinado à
Secretaria de Educação e Cultura.
A sua finalidade seria iniciar ações efetivas de defesa do patrimônio natural,
histórico, artístico e paisagístico, tudo para garantir a sobrevivência da memória cultural.
No dia 7 de abril de 1984, A Tribuna noticiava a visita ao casarão dos
vereadores Telma de Souza e Alcindo Gonçalves, acompanhados dos três jovens citados linhas atrás. Dali saíram desolados e, por que não dizer, até
revoltados com a destruição do prédio.
A par disso, o preocupante problema social. Ali residiam famílias, com precárias
condições de sobrevivência.
O grupo de jovens lançou um abaixo-assinado, em defesa do aproveitamento do casarão.
Notícias como essa eram como gotas de combustível para alimentar a chama de minha
esperança.
Apesar do impasse, que persistia nas negociações e no andamento do processo, vozes iam
se levantando, fazendo sugestões para a utilização do prédio.
O então secretário de Turismo, Álvaro Bandarra, sugeria que ele se transformasse no
Palácio do Turismo e que para lá se transferisse a Secretaria de Turismo. Bandarra adiantou-se, procurando contato com o presidente da Embratur,
para obter a verba necessária à reforma do imóvel.
BATENDO O MARTELO
O casarão assemelhava-se à
moça casadoira, que se rodeava de pretendentes muito interessados.
O secretário dos Assuntos Jurídicos, Écio Lescreck, fez uma proposta aos dois
herdeiros remanescentes, do pagamento de 20% da indenização total em 12 parcelas mensais de 32 milhões, a iniciar em 15 de novembro. Mas o impasse
continuava, tornando cada vez mais difícil o necessário entendimento entre as partes.
Em 1984, já tendo como prefeito o dr. Oswaldo Justo, a Prefeitura começa a pensar em
agilizar o processo e propor um acordo aos dois herdeiros, o que permitiria a desocupação do imóvel.
A respeito, Écio Lescreck disse à reportagem de A Tribuna: - "Além da questão
judicial relativa à desapropriação, existe uma preocupação grande em evitar que o problema social verificado no imóvel fique pior do que está, pois
mais de 20 famílias estão morando ali, como uma verdadeira favela. Se o tempo passar, será ainda mais difícil solucionar esses problemas dos
moradores".
O prefeito Oswaldo Justo mantinha diálogo com todos que se
interessavam pelo grave problema do casarão, mas nenhuma decisão poderia ser tomada, sem um desfecho favorável nas negociações.
Aos 20 de novembro de 1984, o jornal A Tribuna publica auspiciosa notícia com o
título: "Prefeitura firma acordo e toma posse do casarão".
Os dois herdeiros, remanescentes de um total de sete, compareceram ao gabinete do
secretário Écio Lescreck, acompanhados do seu advogado, Narciso de Andrade Neto, para firmar o acordo pelo qual
a Prefeitura propunha-se a pagar 20% do total da indenização estimada em quase 1 bilhão e quinhentos mil cruzeiros, em 12 prestações iguais de Cr$
32.896.080. A primeira foi paga nessa oportunidade.
O prefeito Justo ficou satisfeito com o fim do impasse. Mas um impasse ainda precisava
ser superado: a desocupação do imóvel pelas 29 famílias que ali residiam. Caso elas relutassem em sair, a Prefeitura teria que mover uma ação
judicial.
Ainda decorreram dois meses depois do acordo com os herdeiros, para que a Prefeitura
recebesse a imissão de posse do casarão da Avenida Bartolomeu de Gusmão 15. Isso era noticiado no jornal de 7 de fevereiro de 1985.
Transcrevo as palavras do secretário Lescreck: -"Foi a maior conquista da
administração municipal, no campo do Direito. Ressalto aqui a compreensão extraordinária do advogado dos herdeiros, Narciso de Andrade Neto, e do
procurador encarregado da Prefeitura, Luiz Alberto de Castro, ressaltando ainda a confiança que o prefeito depositou em mim, autorizando o acordo
que firmamos com a outra parte e que resultou, agora, na imissão de posse definitiva".
Era sabido que a reforma do casarão exigia recursos incalculáveis, e que a Prefeitura
não estava em condições de arcar com essa responsabilidade.
O prefeito Oswaldo Justo fala da possibilidade de receber a colaboração dos
empresários, no processo de recuperação do imóvel. A primeira batalha estava ganha, mas a guerra para promover a reforma do casarão ainda exigiria
muitas lutas.
Foi dado um prazo para que as famílias que ali residiam desocupassem o imóvel: o dia
1º de março.
Continuava firme a idéia de transformar o casarão no Palácio do Turismo. Mas o seu
destino ainda não estava firmado. O vereador Alcindo Gonçalves pediu a formação de uma Comissão Especial de Vereadores, para discutir o
aproveitamento do casarão. Ele era contra a instalação ali do Palácio do Turismo, mas favorável à utilização para manifestações culturais,
artísticas e teatrais. Afirmava que o prédio não se coaduna com um setor burocrático e não deveria abrigar órgãos municipais. Na sua opinião, era um
espaço que deveria ser aberto ao público e onde poderiam se desenvolver atividades culturais de todos os tipos.
Tudo indicava que novos debates surgiriam. O aproveitamento do casarão virava um
assunto polêmico. Antes da posse do imóvel pela Prefeitura, um documento elaborado por um grupo ligado ao cantor e compositor José Luiz de Paula
Machado Filho, o Zé Luiz, pedia às autoridades competentes que restaurassem o imóvel e ali instalassem uma Casa de Artes. Nesse documento desfilavam
muitas idéias interessantes.
A escritora Carolina Ramos escreve uma carta ao
prefeito, dando também sugestões especialmente para que fosse reservado um espaço às entidades culturais. Mas a verdade é que a maioria dos que
compareciam aos debates sonhava com a possibilidade do casarão ser aberto ao público e não ser reservado apenas a um número limitado de pessoas.
FINALMENTE A POSSE
O jornal Cidade de
Santos, de 1º de março de 1985, publica notícia com essa manchete: - "Enfim, o casarão está desocupado".
A imundície do imóvel é total. Em seu interior, a depredação. Nas áreas externas, um
verdadeiro depósito de lixo, de barracas de praia, carrinhos de ambulantes clandestinos, e esconderijo de viciados em drogas. O casarão fora ocupado
por mendigos, indigentes que estão sempre atentos para invadir espaços ociosos.
Os retirantes levaram tudo que podiam, torneiras, calhas, telhas, canos. Até janelas
foram arrancadas e transformadas em lenha.
No dia 2, A Tribuna noticiava: -"Prefeitura tem as chaves e toma posse do
casarão".
A Prefeitura recebia um imóvel totalmente depredado, e sob a ameaça de ser invadido
por outras famílias! O representante da Comissão Municipal de Defesa Civil (Comdec), José Gonçalves, contratou um guarda noturno para plantão de 24
horas no imóvel. Foi colocado um cadeado no portão dos fundos e pedida a ronda da Polícia Militar.
O prefeito Oswaldo Justo vai visitar o casarão, que ainda não conhecia, acompanhado de
técnicos da Prodesan e da Secretaria de Obras.
Primeiro percorreu todo o quintal e encantou-se por encontrar uma grumixameira, árvore
frutífera que não via há muitos anos. ENcantou-se com os pés de carambola, de ameixa, pitanga, goiaba. E chegou a provar uma carambola e uma
grumixama.
Imagino que minha mãe deve ter ficado feliz, nas elevadas dimensões do espaço, por ver
um prefeito saboreando frutas que ela plantara com amor e cultivara com carinho.
Percorrendo todos os cômodos da casa, as pessoas presentes certificaram-se do estado
lastimável em que se encontrava o casarão. Mas, apesar do estrago sofrido, nada era irrecuperável. E logo depois da visita, veio a pergunta
inevitável: -"Que fazer daquele patrimônio?"
O prefeito Justo pediu ao diretor técnico da Prodesan, engenheiro Jean Jacques
Leopoldo Monteux, e ao secretário de Obras, eng. Luiz Alberto Maia, um laudo estrutural das lajes, vigas, telhado e fundações, com observações
técnicas a respeito das condições do prédio.
O laudo apresentado apontou todos os problemas constatados durante a inspeção, mas
Justo não desanimou. Ele estava decidido a recuperar o casarão, com a colaboração de empresários.
Os moradores da região demonstram a sua preocupação quanto ao tempo em que o casarão
ainda ficaria fechado.
Depois de fazerem um visita ao casarão, dirigentes da Associação dos Empresários da
Construção Civil da Baixada Santista (Assecob) reafirmaram a intenção de participar efetivamente do projeto de sua recuperação.
Os estudos para decidir a utilização do casarão são processados com alguma lentidão.
Enquanto isso ocorre, o imóvel se deteriora cada vez mais. A comissão pede prazos maiores e um estudo técnico do Instituto de Pesquisas
Tecnológicas, absolutamente necessário para avaliar a segurança estrutural do imóvel.
Enquanto os estudos técnicos se desenvolviam, continuava a polêmica sobre o
aproveitamento do casarão. Mas as correntes majoritárias sugeriam que ali se instalasse um espaço cultural, aberto ao público, que se transformasse
em autêntica atração turística.
Em meio à discussão, merece destaque a visita ao casarão, em 8 de julho de 1987, do
cônsul geral da França em São Paulo, René Bucco Riboulat, que lá esteve acompanhado de João Bento de Carvalho, cônsul honorário da França em Santos.
O ilustre visitante, não escondendo sua admiração ao ver a imponente casa branca
preservada em meio a dezenas de prédios de alto gabarito, assim se expressou: -"É um milagre. como todo francês, eu gosto da conservação do passado.
Esta casa é uma relíquia para Santos, para o Brasil e para a humanidade".
VENCEU A PINACOTECA
De repente, surge uma luz
no fim do túnel. Uma nova idéia aparecia, originada por uma conversa entre o prefeito Oswaldo Justo e o expert em artes visuais Darcy de
Barros.
A finalidade desse encontro era a necessidade de restauração dos quadros de Benedicto
Calixto. Darcy de Barros falou da sua preocupação em conseguir um espaço, onde pudessem ser reunidas as obras do grande pintor.
E sugeriu ao prefeito Justo que o casarão branco fosse utilizado para a instalação da
Pinacoteca Benedicto Calixto, instituída por um decreto recém-assinado (1986), mas continuava sem local condizente com sua importância.
Ela funcionava em condições precárias na Rua Visconde de São Leopoldo 260, 1º andar.
Justo concordou com a sugestão de Darcy de Barros, mas enfatizou a necessidade de restaurar o casarão, para que pudesse oferecer as condições
necessárias para o funcionamento da pinacoteca.
Entusiasmado com a aceitação do prefeito Justo, Darcy de Barros partiu para o trabalho
de criar a Comissão de Instalação da Pinacoteca Benedicto Calixto, e assim dar início aos trabalhos de restauração do casarão.
Faziam parte dessa comissão as seguintes pessoas: Roberto Santini, Paulo Viriato
Corrêa da Costa, Paulo Figueiredo Filho, Luiz França de Mesquita, Olímpio Stockler, Alvaro Canoilas e Hamilton Dias de Souza.
Sucederam-se as reuniões e decidiram organizar campanhas para aumentar o acervo da
pinacoteca e angariar fundos para restauração do casarão. Foi sugerido que se entrasse em contato com empresas que pudessem doar o material
necessário para o início das obras.
O entusiasmo de Darcy de Barros contagia seus companheiros. É estabelecido um clima de
otimismo, gerando a certeza de que seria conseguido tudo que almejavam, e que seria vitoriosa a árdua tarefa de reconstruir a bonita construção.
O caderno AT Especial, do jornal A Tribuna, de 6 de abril de 1986,
apresentava excelente reportagem de Ineide Souza Di Renzo, sobre esse fato.
Antes da criação da Pinacoteca Benedito Calixto, já havia sido criada a Pinacoteca
Municipal, pelo decreto nº 2.539, de 6 de julho de 1962.
A professora e historiadora Wilma Terezinha Fernandes de Andrade, que desde a época da
decadência do casarão muito lutara pela sua recuperação, fez parte da comissão municipal de estudos e se desdobrou acompanhando o andamento dos
trabalhos.
Sua atuação no processo de tombamento foi de muito destaque. O jornal A Tribuna,
em sua edição de 11 de fevereiro de 1986, publicou um trabalho de pesquisa de sua autoria, com o título "Grandeza e decadência: a história da
casa branca da praia".
Começa a restauração. A administração da casa ficou a cargo de Antonio Duarte Canelas,
funcionário da Prefeitura, que acompanhou todo o trabalho, do início ao fim. Cabia-lhe solicitar à fundação todo material necessário ao andamento da
obra.
As dificuldades que se apresentavam eram enormes. Por duas vezes os trabalhos foram
interrompidos, mas, contornados os obstáculos, retomados com grande entusiasmo.
Destaco aqui o trabalho realizado pelo desenhista-projetista Luiz Angelo Siani, que
refez plantas e recompôs os desenhos decorativos dos inúmeros afrescos e pinturas internas. Acompanhei de perto o seu trabalho, admirando sua
competência.
O saudoso engenheiro arquiteto Aníbal Martins Clemente acompanhou a restauração do
imóvel, desde o início, com especial interesse.
O engenheiro Cyro Raphael Monteiro da Silva, juntamente com Darcy de Barros, escolhia
os melhores operários para cada serviço.
Até o final da gestão do prefeito Oswaldo Justo, o casarão recebeu dele todo o apoio
necessário. |