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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE - BIBLIOTECA - Na Capitania de S.V.
Washington Luís e a capitania vicentina (2)

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Além de governador paulista e presidente do Brasil, Washington Luiz Pereira de Souza foi escritor e historiador, sendo responsável pela construção dos monumentos históricos do Caminho do Mar, na subida da serra entre Santos e São Paulo, em 1922, para comemorar o centenário da Independência do Brasil.

Uma das suas mais importantes obras foi esta, Na Capitania de São Vicente, publicada em 1956 (um ano antes da morte do autor) pela Livraria Martins Editora, da capital paulista. Com 341 páginas mais 7 introdutórias, a obra foi impressa pela Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, também de São Paulo.

O exemplar de número 956 foi cedido a Novo Milênio para digitalização, pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. Páginas 3 a 13, com ortografia atualizada:

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Na Capitania de São Vicente

Washington Luís

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Capítulo I - d. João III

A conquista e a posse do Brasil foram intentadas por d. João III, que chegou mesmo a começar essa obra.

O achamento da Ilha de Vera Cruz por Pedro Álvares Cabral, em abril de 1500, pouco interessou a d. Manoel I, então rei de Portugal.

A carta em que d. Manoel I comunicou aos reis católicos o descobrimento feito por Pedro Álvares Cabral, contém 8 páginas com 311 linhas, e destas apenas 3 linhas se referem à terra de Vera Cruz. (Vide essa carta na obra Pedro Alvares Cabral, por William B. Greenlee, página 137 a 146).

Na lápide que, numa pequena igreja da cidade de Santarém, em Portugal, cobre a sepultura do descobridor, o único título que se lhe dá, é o de ter sido casado com uma das camareiras duma infanta de Portugal.

Portugal, seu povo e seu rei estiveram, na época manoelina, completamente absorvidos pelo opulento e relativamente fácil comércio das Índias, cujo caminho marítimo os seus perseverantes e audazes marinheiros haviam descoberto, comércio que se fazia então a tiros de canhão, que apavoravam gente amolecida pela riqueza e imobilizada por uma civilização envelhecida, ou dispersa em lutas locais.

Só o oriente interessava, então; mas com a declinação do seu comércio, a situação econômica e financeira do reino também declinava assustadoramente.

Entretanto, algumas explorações da costa da América do Sul haviam revelado que Vera Cruz não era uma ilha; mas estava situada num imenso continente, completamente selvagem, oferecendo, no momento, é verdade, pouco proveito mercantil.

"Com o peso enorme do império, d. João III herdara o erário vazio e a fazenda real bastantes arruinada e viveu sempre em aflições de dinheiro", conforme o dizer de A. Pimenta, grande apologista desse rei (D. João III, pág. 312). Com o sistema político-administrativo, que dominava em Portugal, eram pequenas as rendas públicas.

Iniciando o seu reinado a 19 de abril de 1521, d. João III encontrou a terra portuguesa esturricada por tremenda seca que mirrou as colheitas e trouxe a miséria e a peste. Para aliviar ou combater as funestas conseqüências dessas calamidades, não podia o rei valer-se das suas minguadas rendas consumidas em outros fins inevitáveis, e teve que se valer de empréstimos externos, onerosíssimos, que avolumaram a dívida pública, e foi esse o único recurso de que dispôs a fazenda real sob a má administração econômica do reino, segundo informa Alexandre Herculano (História da Inquisição em Portugal, pág. 1547 do vol. 2º).

É o mesmo Alexandre Herculano que, baseado nas atas das Cortes de 1525 e 1535, e nas notas do conde da Castanheira, vedor da fazenda real nesse tempo, narra que a dívida pública era em 1534 de mais de dois milhões, soma avultadíssima, numa época em que o orçamento ordinário da receita e despesa não chegava talvez anualmente a um milhão de cruzados. Levantaram-se empréstimos por todos os modos, e só os juros do dinheiro negociado em Flandres subiam, em 1537, a 120.000 cruzados.

"Em 1543 já a dívida estrangeira era proximamente igual a toda a dívida interna de 1534. Os juros vencidos daqueles empréstimos tinham sido tão exorbitantes, que a sua importância excedia o capital. Calculava-os o feitor português, em Flandres, em 25% ao ano, termo médio, de modo que a dívida dobrava em cada quatro anos".

Para aliviar esses intoleráveis encargos, el-rei pediu às cortes de Almeirim, de 1544, 200.000 cruzados, e essas só lhe ofereceram 50.000. Recorreu depois aos empréstimos individuais, escrevendo cartas a pessoas abastadas.

Desde que encetara o caminho ruinoso dos empréstimos nunca mais o abandonou, e o Estado quase que exclusivamente vivia desse expediente. Como as necessidades cresciam, tratou-se da venda de padrões de juros, que só parou quando não houve quem os comprasse. É o resumo que fez Alexandre Herculano da carta do vedor conde da Castanheira a d. João III (Frei Luís de Sousa - Anais, vol. 2º, págs. 314 a 316).

"Essa situação financeira profundamente desequilibrada era conhecida de algumas cortes estrangeiras, pelo menos da cúria romana, como se vê das instruções dadas ao bispo de Bérgamo, legado do papa em Portugal", nas quais o rei é indicado como muito pobre, com grandes dívidas e juros altos e além disso morosíssimo nas suas decisões [1].

A situação era tão angustiosa, que depois d. João III se vira obrigado a abandonar algumas praças fortes nas costas da África, como Çafim (1541), Azamor (1549), Alcacer (1550) e Arzila.

À fraqueza e à miséria, então reinantes, associava-se a dissolução dos costumes (A. Herculano, idem pág. 159).

E Alexandre Herculano descreve (obra citada pág. 161 e seguintes) um quadro negro e entristecedor, que abrange todas as classes, chegando a concluir que irremediável era "a decadência moral e material do país naquela triste época, decadência que explica sobejamente o próximo termo que teve a nossa independência" (idem, pág. 157).

Era também escassa a população de Portugal. Pelo censo mandado organizar por d. João III, se sabe que a população portuguesa continental atingia a 1.122.128 pessoas, a 17 de julho de 1526 (Roteiro Ilustrado de Coimbra, pág. 10).

Se se levar em conta que metade dessa população seria feminina, se dela se descontassem os velhos, as crianças, os enfermos, os que deveriam ficar para o amanho das terras, os ricos e fidalgos que não abandonariam seus bens e morgadios, o alto e baixo funcionalismo, os que guarneceriam as esquadras, há de de concluir que bem pouca gente ficaria, numa época de violências, para ocupar e segurar a América Portuguesa, cuja superfície iria somar mais de oito milhões de quilômetros quadrados virgens e selvagens.

Nessas condições, imprensado entre Francisco I e Carlos V, em lutas pela hegemonia da Europa, d. João III só usando de manhas poderia manter os seus domínios e senhorios.

Gomes de Carvalho, no seu livro (D. João III e os Franceses, pág. 11), considera-o ardiloso. Mandava ele embaixadas negociadoras de paz à França, corrompia as autoridades marítimas francesas, mas ao mesmo tempo enviava frotas atacar e apresar navios franceses na América.

Francisco I, de França, por sua vez concedi a corsários ousados e bem armados cartas de marca, das quais a mais célebre foi a de Francisco Ango, para se apoderarem de navios portugueses e com as cargas se pagarem por suas mãos até quantia de que se julgassem danificados. Até 1536, montava a 350 os navios tomados por esses corsários (F. Palha. A carta de marca de F. Ango, pág. 37, citando frei Luís de Souza).

Chegado a Carlos V pelas relações de parentesco, do qual era primo-irmão e duas vezes cunhado, a situação de d. João III tornava-se mais fácil. De ambos os governos na península ibérica havia recomendações formais e expressas para respeitar as respectivas fronteiras, na América e na Ásia, mal definidas pelo Tratado de Tordesilhas. E de ambos os lados ninguém as observava.

Delicada era, pois, a situação de Portugal, e dificílima, pois, a colonização do Brasil.

Mas, segundo frei Luís de Souza, nos seus Anais, o Brasil, que ainda nada tinha dado e estava em bruto, prometia grandes maravilhas.

As lendas sobre riquíssimas minas de ouro alucinavam os europeus ávidos em toda a parte da velha Europa. Ninguém podia já distinguir o que de real haveria nas ficções criadas e amplificadas por imaginações desvairadas.

Acreditavam-se e repetiam-se fábulas inverossímeis, como se fossem verdades incontestáveis. Algumas dessas lendas, que corriam soltas e desordenadas, se foram condensando, precisando, até se cristalizarem no El-Dourado, fabulosa terra, onde havia montanhas de ouro, montanhas de prata, situadas no Peru, em Nova Granada, enfim nas Índias de Espanha, na América novamente descoberta. Manoa era a sua capital, onde, em palácios cobertos de pedrarias preciosas, morava um rei,cujo vestir lhe dava o nome. Era o El-Dourado. Todas as manhãs lhe rociavam o corpo com uma certa goma aromática e depois cobriam-no, dos pés à cabeça, com ouro em pó, e era esse o seu trajar.

À noite lavavam-no todo, tiravam-lhe o ouro servido, que não era usado duas vezes. Tal havia que estivera em Manoa e tudo vira; outro mostrava até a planta da cidade fantástica. Ora, atingir esse país e saqueá-lo era o desejo febril que escaldava a imaginação de europeus pobretões. Maiores ainda eram as outras fantasias espalhadas. As façanhas extraordinárias de Cortez e de Pizarro tornavam verossímeis tais absurdos.

À Europa chegara a história de um descendente de Caramuru, Robério Dias, que se apresentara oferecendo mais prata no centro do Brasil do que ferro dava Bilbao em Biscaia, desejando em troca de tanta riqueza apenas o título de Marquês das Minas.

"Por boa razão de filosofia, segundo pensava o relator das capitanias do Brasil (Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, vol. 62, pág. 24 e seguintes), esta região deveria ter mis e melhores minas que a do Peru, por ficar mais oriental e mais bem disposta para a criação de metais".

Frotas de corsários franceses e ingleses, nos mares da Europa, atacavam os galeões que, carregados de ouro, vinham da América Espanhola.

Os franceses começavam a se estabelecer nas costas de Vera Cruz e a negociar com os indígenas a madeira cor-de-brasa, muito usada nas tinturarias.

Os espanhóis penetravam o continente americano pelo centro, navegando os grandes rios que nos primeiros tempos foram considerados golfos. Podiam estes se apossar das terras, que pertenciam à coro de Portugal, em que estivessem essas minas. Ninguém sabia! A geografia americana era desconhecida, e o Tratado de Tordesilhas era bem fraco.

Não obstante, obstinadamente preocupado em obter e estabelecer a Inquisição no reino, apesar dos minguados recursos financeiros, da escassez da população e das dificuldades internacionais, d. João III quis também possuir tais minas e julgou indispensável cuidar da terra descoberta por Cabral, para não a perder.

Como bem mais tarde pensou e escreveria Macaulay, d. João III convenceu-se que não bastava cravar cruzes e meter padrões nas terras descobertas para as conservar. E, assim convencido, entendeu de mudar a política seguida no reinado anterior e voltou vistas mais atentas para as costas do Brasil.

A não ser o desejo de expulsar os franceses de terras, que entendia e julgava suas, "nas quais iam eles tomando pé", e a não ser também a esperança de nelas descobrir as abundantes minas de ouro e de outros metais preciosos, o Brasil representaria para d. João III um peso e uma fonte de despesas, que não seriam compensados pela honra de possuir terras na América. Era o que pensava o conde de Castanheira, vedor da Fazenda Real, achando que no Brasil já tinha o rei gastado muito dinheiro e se começara a gastar desde 1530 (frei Luís de Souza - Anais de D. João III, vol. 2º, pág. 262).

Em todo o Brasil, na exploração de suas costas, de seus rios, nas armadas que para tal fim compuseram, havia-se gasto 80.000 cruzados, desde 1522 a 1544 (Anais de frei Luís de Souza, vol. 2º, pág. 274), ou 303 cruzados por mês. Deve-se porém confessar que um cruzado naquele tempo valia muito mais que 400 réis, hoje.

Se não fosse incomodado por inimigos ou êmulos, talvez deixasse essas terras como estavam, para nelas degradar criminosos e ajuntar os judeus, que o fanatismo da Inquisição julgasse conveniente não queimar.

Mandar-se-ia, então, gente para as costas do Brasil, como há ainda bem pouco tempo se mandava para a costa d'África.

As situações financeira, econômica e internacional do reino não permitiam, sem grandes sacrifícios, fazer coisa diferente da que foi feita.

D. João III só cuidou em povoar o Brasil para nele firmar a sua posse, na esperança do ouro e das pedras preciosas. Não pensou em colonizar. Colonizar quer dizer conhecer e explorar a terra, saneá-la, distribuí-la a homens capazes de a lavrar, de a fazer produzir, e de educar os selvagens nela encontrados, dando a estes os mesmos direitos e iguais deveres, procurar o bem estar para todos, organizar um país ou pelo menos transformá-lo, aproximando-o da metrópole, fazer dele uma pátria ou incorporá-lo a uma pátria. E todos vivendo sob as mesmas leis, com as mesmas aspirações e com as mesmas recordações.

Ao contrário de tudo isso, no Brasil era proibido o contato com as outras nações. Nenhum estrangeiro poderia entrar no seu território, percorrê-lo e muito menos descrevê-lo, sem licença dos governadores. Nenhuma indústria nele poderia se estabelecer sem licença dos donatários, mesmo as moendas marinhas ou engenhos para fabrico de açúcar. Nele se arrancariam as plantas similares da Índia. Não era permitida a exportação no comércio exterior, sem essas licenças que eram sempre negadas. A importação dos produtos só se fazia através da metrópole em Lisboa. A pimenta, ou o cravo, chamou-se sempre do reino, e vinha da Índia; da mesma maneira, o queijo era também do reino, ainda que oriundo da Holanda, porque deveriam primeiro ir ao reino de Portugal para depois ser consumidos no Brasil.

Tudo deveria passar por esse entreposto metropolitano.

O trabalho só poderia ser feito pelo escasso morador do Brasil, ou pelo índio escravizado, ou pelo negro de Guiné, outra conquista de Portugal na África. Na terra americana portuguesa só conseguiam chegar os náufragos, os fugidos de bordo; estes mesmos foram impedidos pelas proibições de aportar no Brasil as naus que se destinavam às Índias. Mandavam-se também degradados e meninos desvalidos encontrados nas ruas da capital da metrópole. As vias de comunicação interiores eram constituídas por trilhos de índios, conservadas, e mal conservadas, pelos moradores pobríssimos, que não podiam atingir as capitanias vizinhas. A comunicação entre o porto de mar, em S. Vicente, e o planalto, causava pavor pela dificuldade que apresentava e assombro pelo perigo que oferecia, fazendo "tremer as carnes dos que a atravessavam".

Só havia instrução pública, a ministrada pelas ordens religiosas, que só se podiam estabelecer com autorização do reino. Quem quisesse saber alguma coisa mais teria que ir a Coimbra, para a qual havia transporte precário de ano em ano. Não se consentia imprensa.

Nos forais dos donatários, prevendo-se o descobrimento de minas de ouro ou de pedras preciosas, já se determinava que o quinto da produção pertenceria ao rei, embora exploradas pelos próprios descobridores à sua custa, ou por contratos feitos em Lisboa. Não há dúvida que, com esse sistema execrável, o reino fraco defendia o que julgava seu, pois que os reis portugueses julgavam as costas do Brasil como sua propriedade, seus senhorios, e as distribuíam a seus vassalos, com a obrigação de as apossarem. Mas com esse sistema abafado e hermeticamente fechado, estanque, o reino não colonizou e o Brasil não pôde progredir.

Não se pode chamar d. João III de colonizador.

Herdando, por deliberação dos papas, terras desconhecidas e a descobrir, quis ele, ou quiseram os seus sucessores, apenas segurar senhorios e domínios, que prometiam maravilhas, segundo frei Luís de Souza, matando e cativando dos nativos a parte necessária para submetê-los, transformando as conquistas em presídios baratos, de pouco custo, verdadeiras penitenciárias ao ar livre, tornando-as couto e homízio de condenados, que as suas prisões não pudessem guardar ou que a Santa Inquisição não quisesse queimar. Todos acompanhados de alguns padres que lhes ministrassem a extrema-unção, despejando degradados, cujos direitos eram o de reproduzir-se com as indígenas, e o de viver, e como pudessem, e este último bem precário, em face da vontade absoluta do rei, sempre ciumento do seu poder.

Não conseguindo os seus fins com as ilusórias capitanias hereditárias, doadas a vassalos, em geral sem recursos, fez d. João III do Brasil uma vasta fazenda de produtos peculiares, com um feitor e auxiliares armados, tendo como trabalhadores os indígenas escravizados ou os escravos arrancados da África, pela força, depois que foi verificado que os naturais para tal pouco serviam.

Mesmo na defesa das pequenas vilas, que se criaram nas minúsculas povoações, que a iniciativa particular de aventureiros fez, quando atacados ferozmente pelos aborígines indômitos, eram os moradores que acudiam com suas pessoas, suas armas, seus mantimentos, e seus escravos.

Em 1525, Alonso de Santa Cruz informa no seu Islário que, na pequenina povoação, mantida pelos portugueses no porto de S. Vicente, apenas havia uma torre para defesa contra índios em caso de necessidade.

Durante a sua permanência em S. Vicente, 1532-1533, Martim Afonso de Souza nenhuma fortificação militar aí fez para defesa das terras. Nada a respeito ele alega na Sumária Relação dos seus serviços na América, nem nenhuma tradição ficou nesse sentido, que fosse citada pelos seus benévolos apologistas [2].

Hans Staden se refere a um casa feita pelos irmãos Bragas e em seguida narra que os mamelucos e os moradores de S. Vicente determinaram edificar outra ao pé d'água e bem defronte de Bertioga e aí colocar canhões e gente para impedir o ataque dos selvagens. Não a tinham acabado e o contrataram para lá ficar, porque souberam que ele entendia de artilharia (Hans Staden, edição do centenário - 1900 -, pág. 40).

Nos fins de 1552 ou princípios de 1553, no tempo em que Tomé de Souza foi a S. Vicente, parece que na ilha de Santo Amaro, defronte do canal da Bertioga, se fez a tal casa forte, onde Hans Staden ficou com um escravo carijó, tendo sido então colocados aí uns canhões. Nessa ocasião, Hans Staden recebeu de Tomé de Souza a nomeação de artilheiro, segundo se vê na edição do centenário (1900 - pág. 41), ou de arcabuzeiro conforme a versão de Alencar Araripe (R.I.H.G.B., vol. 55, 1ª parte, pág. 286).

Tomé de Souza, na sua carta de 1º de junho de 1553 a d. João III, conta que, quando esteve em S. Vicente, fez na Bertioga, para defesa contra índios, à custa do trabalho dos moradores, sem nada custar à coroa, qualquer coisa que pareceu bem a todos, mas não diz o que foi (Hist. da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3º, pág. 365).

Como quer que seja, a obra feita foi tão insignificante e tão mal segura, que os tamoios aí vieram, aprisionaram o improvisado artilheiro e o carregaram para as suas choças em Ubatuba (Edição do Centenário, pág. 44).

Pode-se, pois, dizer, sem exageração, que o rei jamais, pelo menos para a capitania de S. Vicente, o rei jamais mandou uma guarnição para as casas fortes levantadas pelos moradores. Nada fizeram os donatários, que aliás nada ou pouco possuíam. Nenhum donatário de S. Vicente veio à sua capitania ver o que ela valia ou o que ela precisava para poder prosperar. Todos limitaram-se somente a nomear loco-tenentes, que os substituíssem. Esses loco-tenentes, pobríssimos habitantes duma capitania sem recurso algum, tolhidos pelos alvarás régios, que pretendiam proteger a liberdade dos índios, ou receosos da catequese que os ameaçava com as penas eternas, esses loco-tenentes pouco ou muito pouco faziam, ou nada poderiam fazer.

D. João III foi de medíocre inteligência, sem nenhuma cultura; andou sempre pelos caminhos já trilhados, foi um rotineiro.

Foi marido exemplar; e mesmo nas suas travessuras dos 20 anos, de que resultaram filhos, antes de tomar estado, houve-se com recato, pois, como diz frei Luís de Souza, "nunca fez afronta a vassalos nem à mulher força" (Anais, vol. 1º, pág. 165).

Em religião foi um fanático. Estabeleceu a Inquisição em Portugal e a fez funcionar calma e cruelmente (A. Herculano).

No tempo de d. João III, o rei exercia o poder absoluto. O absolutismo medieval era a estrutura política do império de d. João III. O rei reinava e governava, mas carecia de quem o aconselhasse e o fizesse refletir (A. Pimenta, D. João III, pág. 23).

O rei ouvia os seus secretários e conselheiros, mas fazia o que entendia e o que queria.

Com o absolutismo, o rei concentrava no seu querer e na sua ação todos os poderes políticos e todas as atribuições governativas. Não havia, nem se compreendia, separação de poderes. Não se falava, nem se cogitava, de poder legislativo, judiciário e executivo, e muito menos de independência desses poderes, pois que só havia um, "o poder real".

Tudo era feito diretamente pelo rei ou pelos seus agentes, e, neste último caso, quando expressamente fossem delegados poderes, eram sempre restritos para cada caso particular, e só tais delegações poderiam ser exercidas.

O poder real só parava onde o bom senso, a humanidade, o bel-prazer do soberano consentiam ou onde encontrasse ele resistência violenta e perigosa.

Não havia constituição política escrita, como não a havia em parte alguma da Europa, que regesse os povos; não havia organização sistemática que determinasse o mecanismo administrativo do reino, só havia o que o rei determinasse nos seus regimentos, nos seus alvarás, nas suas cartas régias, nas suas ordenações. Tudo emanava do rei. Bens materiais, liberdades individuais, vida, direitos, honras, só existiam quando o rei os dava ou reconhecia, e enquanto não os tirava.

Os governos e senhorios dos próprios fidalgos, donos de terras, condes ou barões, eram exercidos, conforme as doações feitas, e de acordo com os usos e costumes antigos, e enquanto o rei os tolerava ou não tinha forças senão para os tolerar. O rei se considerava proprietário de Portugal continental, das suas ilhas, das suas conquistas, como então se dizia, e os dava aos seus favoritos, ou àqueles que tinham prestado serviços, como estímulo a novos serviços.

Os governos sobre os novos descobrimentos, os dos capitães-donatários, os dos capitães-mores, eram exercidos segundo regimentos adrede expedidos.

D. João III reinou e governou com as Ordenações Manoelinas e por meio de algumas cartas régias ou alvarás por ele mesmo expedidos.

As administrações locais das cidades, das vilas - das municipalidades como hoje diríamos - se faziam conforme usos imemoriais ou conforme forais expressamente concedidos para cada uma, outorgando privilégios ou poderes diferentes, sempre precários, a qualquer momento revogados, suprimidos ou suspensos.

No século XIV foram publicadas as Ordenações Afonsinas, 1446, primeira tentativa para estabelecimento de um sistema comum de organização e atribuições municipais, procurando-se ao mesmo tempo estreitar os laços de subordinação dos municípios o poder central. As Ordenações Manoelinas, publicadas em 1514, em nada alteraram nessa parte as anteriores [3]. Todas as concessões estavam sujeitas à Lei Mental, desde d. João I e d. Duarte. Tudo isso se praticava claramente e se consolidou aberta e lapidarmente no Cod. Felipino, 1604, Livro 3º, tít. 75 §1º.

E um "rei absoluto", como bem mais tarde doutrinaria Zacarias de Goes (Poder Moderador, pág. XII), é irresponsável pela própria natureza das coisas; porque não está sujeito às leis aquele que as faz e as desfaz a seu sabor, ou para usar da frase energicamente expressiva da Ordenação Livro 3º, tít. 75, §1º, "o rei é a lei animada sobre a terra e pode fazer a lei e revogá-la quando vir que convém fazer-se assim".

Cumpre-nos lembrar, diz também Riba (Direito Civil, vol. 1º, pág. 108) que outrora todo o poder político, ou o poder absoluto, residia no monarca, que se considerava como lei animada na terra.

"Qualquer que fosse a forma de seus atos, eles tinham em geral a necessária eficácia para alterar o direito, tanto quanto depende do poder humano, uma vez que fosse essa a soberana vontade". "O monarca ficava sempre superior à lei, salvo se espontaneamente quisesse submeter-se-lhe. Porque nenhuma lei, por o rei feita, o obriga, senão quando ele fundado em razão e igualdade, quiser a ela submeter seu real poder (Ord. L. 2 tít. 35 §21) "porque o rei é lei animada sobre a terra, e pode fazer a lei e revogá-la, quando vir que convém fazer-se assim" (Ord. L. 3º, tít. 75 §1º). Era a regra do tempo, em toda a parte do mundo.

É justo reconhecer, porém, que, nessa época, a da chamada colonização americana, as nações mais ricas e mais poderosas não fizeram mais nem melhor que o Portugal desse tempo.

D. João III fez e desfez como melhor entendeu ou como melhor pôde, sobre a organização do Brasil, para não perder o achamento de Cabral, e para achar minas.

Foi nas condições e circunstâncias, aqui resumidamente descritas, que intentou a ocupação da costa americana.

A princípio, por mais cômodo e menos dispendioso, como já se disse, dividiu o Brasil em capitanias hereditárias, e delas fez doações a alguns de seus vassalos, para que nelas estabelecessem a posse efetiva do rei de Portugal. Mais tarde, instituiu um governo geral nos seus domínios.

Vamos ver quais foram os resultados dos dois sistemas.

Mandou, porém, preliminarmente explorar toda a costa do Brasil, por uma esquadra, cujo comando foi confiado a Martim Afonso de Souza. Antes de 1526, já a tinha feito percorrer por Cristóvão Jaques.


[1] Vide O Panorama, revista portuguesa, v. 9, pág. 354.

[2] Vide essa relação na Biblioteca de Coimbra.

[3] Cortines Laxes, Câmaras Municipais; J. Mendes Júnior, Monografia-Estudo-Administrativo; Carneiro Maia, o Município.