Imagem: reprodução parcial da guarda do
livro
Introdução que explica o livro
A história colonial paulista tem sido feita à vista de crônicas religiosas, de algumas cartas
jesuíticas, dispersas e truncadas cronologicamente, à vista de conscienciosas informações da Nobiliarquia de Pedro Taques, dos verídicos
Apontamentos de Azevedo Marques, das Memórias inteligentes de frei Gaspar, da contribuição valiosa de alguns outros escritores, e de
tradições, que necessitam crítica justa e imparcial, quando não se encontrem documentos que as comprovem.
Frei Gaspar da Madre de Deus foi possuidor de uma inteligência viva e muito culta, e foi sutil
argumentador de poucos documentos, que teve a seu alcance, dos quais por vezes tirava conclusões engenhosas, que documentos posteriores, por ele
então desconhecidos, mostraram a pouca solidez.
Pedro Taques, sem essas qualidades de frei Gaspar, foi um pesquisador paciente e infatigável, e,
embora preocupado com foros de fidalguia, conseguiu reunir na sua Nobiliarquia uma soma imensa de informações sobre pessoas e fatos,
prejudicados alguns por comunicações recebidas de terceiros ou por tradições sem crítica, que se contradizem flagrantemente, e que ele mesmo,
depois de as referir, as põe em dúvida.
Azevedo Marques, fundando-se em parte nesses dois antecessores, apresenta muitos fatos de suas
próprias investigações, em regra muito concisas, extraídas dos arquivos públicos.
É fora de dúvida que esses três cronistas prestaram valiosos serviços à História de S. Paulo.
As cartas dos jesuítas são inestimáveis, mas às vezes confusas, talvez por defeito de cópia ou de
tradução, mesmo as escritas pelos maiores padres da Companhia residentes no Brasil. Andaram dispersas em publicações de difícil consulta. Só
ultimamente foram muitas reunidas em três volumes pela Academia Brasileira de Letras. Mesmo assim, não estão completas.
Escreveram todos esses de boa fé, procurando servir uns a São Paulo e outros à Companhia de
Jesus, de que faziam parte.
São valiosos esses subsídios, não há como contestar. Mas a história, que só neles se apoiasse,
teria que ser lacunosa, fantasista por vezes, exaltada por uns e deprimida por outros.
Publicações posteriores, como a do Roteiro de Pero Lopes de Sousa, mais que secular, como
a dos documentos na História da Colonização Portuguesa no Brasil, que já não é nova, esclareceram ou retificaram muitos pontos. A
publicação integral - tanto quanto possível - das Atas da Câmara da Vila de São Paulo, a do respectivo Registro Geral, e também a
dos Inventários e Testamentos declarados documentos públicos, e removidos dos cartórios judiciais, anteriores ao século 19, para o Arquivo
Público do Estado de São Paulo, em virtude da lei estadual nº 666 de 6 de setembro de 1899, bem como a publicação dos Documentos Interessantes
desse mesmo Arquivo, trouxeram matéria farta e preciosa para, cotejada com o que já se sabia, fazer em grande parte a recomposição do passado
paulista.
Na verdade, a publicação das Atas e do Registro Geral desvendou, aos que estudam a
vida local de São Paulo e da antiga capitania, um largo espaço de tempo, que andava obscurecido, deformado ou desconhecido.
Por essa publicação foi fácil conhecer muitos dos homens da governança e, como eles,
interpretando as Ordenações do Reino, elegiam os oficiais da Câmara, isto é, os vereadores, os juízes, os procuradores do conselho, e como estes
nas suas sessões, ordinariamente semanais, exerciam suas funções.
Sem recursos de gente armada nem de dinheiro, rodeados de tribos selvagens, e algumas inimigas
desde os primeiros contatos europeus, longe da metrópole extremamente centralizadora, num tempo em que o único meio de transporte era o marítimo,
cujas escassas viagens, conforme os ventos e tempestades, consumiam meses para levar um pedido urgente de providências e trazer um despacho
rápido, esses oficiais das Câmaras eram obrigados a demorar as suas resoluções ou a tomar iniciativas para existência da colônia.
Dessas iniciativas ficaram vestígios nas representações, nas queixas, nas reclamações às
autoridades nomeadas pelo donatário e pelo governo português. Em alguns desses vestígios nas vereanças dessas câmara, se encontram em linguagem
rude os diversos atos praticados no exercício de suas atribuições, as providências tomadas contra ataques de índios, ou, quando em guerras
ofensivas, os nomes dos cabos paulistas que as dirigiam e os das tribos inimigas, vencidas ou exterminadas.
Mais tarde, a publicação dos Inventários e Testamentos lançou um jorro de luz sobre a vida
social e econômica, com a qual se vê a pobreza dos primeiros habitantes de S. Paulo.
Dos inventários processados perante juízes, alguns dos quais faziam parte da Câmara, muitos têm
apensos ou transcritos os inventários feitos no sertão e, às vezes, autos de ações judiciais, processados no foro local.
Os testamentos, quase todos, foram escritos ou por padres, ou por escrivães públicos, ou por um
ou outro letrado, porque em regra os testadores eram analfabetos, principalmente as mulheres que expressamente declaravam, que, por serem
mulheres, não sabiam escrever.
Começam todos por longas disposições espirituais, quase uniformes ou tabelioas, implorando os
santos da devoção dos testadores, ou de seu anjo da guarda, de todos os santos da corte celeste, da virgem Maria, do seu Unigênito Filho, da
Santíssima Trindade, de Deus, e positivam os seus rogos em numerosas missas, rezadas ou cantadas, em ofícios divinos, realizados por meio de
legados pios. Com a exatidão de quem presta as últimas contas, indicam os seus credores, os seus devedores e também os seus filhos.
Essas últimas declarações atraíram e facilitaram a obra dos genealogistas, a qual serviu para as
biografias, por sua vez, auxiliadoras da História.
Mas, assim como das Atas e do Registro Geral da Câmara de S. Paulo se perderam
dezenas de livros correspondentes a dezenas de anos, em períodos diversos, também dos Inventários e Testamentos desapareceram, talvez,
centenas de autos. Ambas as coleções estão incompletas e muito desfalcadas; e a publicação, feita pelos Arquivos de S. Paulo, não conseguiu salvar
todos os documentos.
As traças, lentas mas obstinadas, haviam rendilhado vorazmente as páginas de muitos, perfurando
túneis caprichosos nas pilhas em que foram eles emaçados. O calor e a umidade, por seu turno, transformaram muitos desses maços em verdadeiras
pastas de papelão, não permitindo o manuseamento das páginas, o que tudo dificulta e mesmo impede a leitura. Em alguns, a letra, delida pelo
tempo, sumiu-se e não se revela, ainda que sob reações químicas, que foram empregadas. Outros, ajuntados sem ordem cronológica, estão truncados ou
têm intercaladas páginas alheias.
Muita coisa se perdeu, mas muita coisa se salvou. Nos salvados, o trabalho do intérprete foi
áspero e torturante. Se em alguns inventários, testamentos, atas e registros serviram escrivães, cuja letra era razoável e cuja redação é
compreensível, na maioria deles, porém, a caligrafia fantasiosa e a ortografia arbitrária tornam a decifração penosa. No mesmo texto, na mesma
página, na mesma linha, esses escrevedores grafam por diversas e variadas formas palavras portuguesas e, com maior desenvoltura ainda, o fazem com
as palavras tupis.
A paleografia é a ciência dos antigos escritos e é a arte de os decifrar, tendo conseguido
estabelecer princípios e regras sobre o modo de escrever de um povo, numa época, determinando-lhe os caracteres peculiares. No caso paulista, nada
pôde ser estabelecido para ser observado. Cada escrivão tinha a sua maneira especial e imperfeitíssima de escrever. Houve até um - Simão Jorge -
que, apenas nomeado, leal e ingenuamente, alegou "não entender do ofício nem saber dar despachos às partes, conforme Sua Alteza manda", e insistiu
pela renúncia do cargo, que foi aceita.
Para a decifração ou tradução e publicação desses documentos foi contratado o sr. Manoel Alves de
Souza, cujo trabalho foi árduo e difícil, mas honesto e consciencioso, trasladando para o português as Atas da Câmara e os Inventários e
Testamentos, mas conservando rigorosamente a grafia dos nomes próprios e as dos lugares. Nesse particular, fez ele ele o que era humanamente
possível realizar.
É necessário ainda considerar que a publicação das Atas e dos Inventários e Testamentos
foi feita dezenas de anos após as consultas, que em 1902 eu tive oportunidade de fazer, e as que muitos outros fizeram antes nos arquivos
paulistas. Durante esses muitos anos, as traças continuaram a sua voraz e obstinada tarefa, a umidade e o calor prosseguiram na formação das
pastas de papelão; as próprias consultas, apesar do extremo cuidado com que foram manuseados os autos de inventários e os testamentos,
deixaram-nos ainda mais estragados.
Pelos anos de 1902 e 1903 freqüentei o Arquivo Público de S. Paulo e o da Câmara da Capital.
Graças à solícita cortesia dos seus diretores pude examinar e ler alguns dos documentos referidos, convencendo-me de que poderia por eles fazer
uma relação cronológica das entradas ao sertão, incompleta e imperfeita, é verdade, mas útil e indispensável.
Animado nesse propósito por mestres da História do Brasil, aos quais comuniquei esse achado,
tomei abundantes notas sobre tal assunto. Mas, em 1904, eleito deputado estadual, minha vida tomou rumo diverso, absorvida pela política e pela
administração. E assim passaram os anos, e senti que não mais me poderia ocupar dessa ordem de estudos.
Foi só em 1914, quando eleito prefeito da capital, e em 1920, quando presidente de S. Paulo, que
pude determinar a publicação das Atas e do Registro Geral da Câmara Municipal de S. Paulo, já antes tentada por diversas vezes, e
até já contratada, e providenciar a publicação dos Inventários e Testamentos, recolhidos ao Arquivo Público Paulista, messe que eu havia
procurado para meus estudos.
Eu havia tido lazeres e paciência, anteriormente, para compulsar tais documentos e deles extrair
notas. Muitos dos estudiosos da História de S. Paulo não teriam tempo para o consumir em investigações de arquivos. Seria, pois, egoísmo
imperdoável não divulgar tais documentos, desde que fosse possível. E assim se fez.
A publicação dessa documentação valiosa, decifrada em boa letra de forma, em volumes facilmente
manuseáveis, iria permitir a esses estudiosos o exame tranqüilo em suas casas, em horas disponíveis, com seguro proveito para a nossa literatura
histórica.
Após a publicação, muitas e notáveis obras, dentro e fora do estado, foram realizadas, emendando,
desenvolvendo e abrindo novos horizontes à História dos nossos primeiros tempos. Por não poder citar todas, basta lembrar a de Taunay em a
História Geral das Bandeiras, que já atingiu o undécimo volume, alentados todos, vasto repositório de informações e de crítica; a de Alfredo
Éllis Júnior nas suas brilhantes monografias sobre o Recuo do Meridiano, Meio Século de Bandeirismo, a de Alcântara Machado no seu
justamente louvado trabalho sobre a Vida e Morte do Bandeirante, e tantas outras cuja enumeração seria longa e sempre incompleta.
De 1902 a 1903, porém, havia eu tomado por escrito muitos apontamentos, e, neles baseado, cheguei
a algumas conclusões, que suponho verdadeiras, e que podem ainda ser úteis, suprindo falhas inevitáveis na publicação posteriormente ordenada.
Por essa razão resolvi fazer alguns comentários que podem ser proveitosos à História de S. Paulo.
Constam eles, na sua maior parte, de extratos dos arquivos locais - da cidade e do estado de S.
Paulo - e desejam mostrar a contribuição dos habitantes de S. Paulo na história brasileira, na parte referente à definição territorial e à
formação do Brasil, no descobrimento e apossamento das terras pela ação dos colonos, e na civilização cristã pela catequese religiosa, todos
garantidos e mantidos pela administração portuguesa no Brasil, sob a vontade absoluta do rei.
Vou, por minha parte, tentar mostrar essa colaboração fazendo imprimir algumas notas, muitas
tomadas há mais de quarenta anos, algumas das quais tiradas de autos que já não existiam ao tempo da publicação feita por Alves de Souza.
Não pretendem elas resolver questões, mas concorrer para as respectivas soluções.
Revendo, e de novo estudando-as, e agora em face de fartas e novas publicações e de novos e
alheios estudos, mais se me fixou o meu modo de pensar sobre alguns pontos, não obstante ser por vezes contrário às brilhantes e sedutoras
deduções que outros conscienciosamente têm feito.
Na matéria intelectual, é pela divergência que se caminha para a verdade.
Quase tudo que aqui vai escrito é, entretanto, conhecido, ou melhor, é sabido, conforme o
temperamento de cada um, de todos que têm estudado os primeiros tempos coloniais. Mas muitas pessoas, que se interessam pelo nosso passado, sem
procurar as fontes autênticas, repetem ainda coisas lidas, em antigos cronistas, dignos aliás de respeito pela sua boa fé, mas que não são
verdadeiras. Julguei, pois, útil, e até necessário, indicar, para cada retificação, a fonte da verdade, ou que, pelo menos, me pareceu a verdade,
criticando tanto quanto possível as deduções, por mais engenhosas que elas se apresentassem.
A citação das fontes, com indicação das páginas e com os nomes dos lugares ou autores, obrigará e
facilitará a procura e o exame para aceitação ou refutação, encaminhando-nos para a verdade, que é o que todos procuramos.
Por essa razão faço as reflexões, que em seguida se lerão, e que pouco valor têm, eu o sei de
sobra, mas que despertarão em alguns o nobre desejo de estudá-las e em outros o de criticá-las, certamente com procedência.
Ainda nesta última hipótese, serão elas úteis, porque a crítica justa servirá para fundada
emenda, sempre com proveito para S. Paulo, e a desarrazoada por si mesma se destrói.
Todos os comentários citados, na sua maior parte, são, pois, referentes a fatos constantes nas
Atas e no Registro Geral da Câmara da vila de S. Paulo, e também nos Inventários e Testamentos, do Arquivo Público Estadual,
todos publicados em mais de 50 volumes, que podem ser facilmente verificados. Por essa razão, par aos fatos gerais e repetidos não posso citar
sempre os volumes e as páginas em que eles se encontram, porque estão em muitos; mas para os particulares ou novos, que se opõem às versões até
agora aceitas, é feita a citação do volume e da página donde foram extraídos, logo em seguida à exposição.
O que vai aqui escrito parecerá sem valor, e insuficiente é, visto como muitos aspectos da
colônia não são examinados. Mas como o meu propósito foi trazer para o estudo da História a contribuição fornecida pelos documentos locais
relativos principalmente à constituição territorial do Brasil, a ela me limitei, tomando o auxílio, entretanto, do estudo de autores conceituados,
desde que afilado por esses mesmos documentos locais.
Quando não pude fazer esse afilamento, cito sempre o autor em que me baseei. Assim não há
propriamente deficiência do estudo, mas principalmente falta nos arquivos investigados.
Apesar das honestas e exaustivas investigações sobre as "entradas ao sertão", até agora feitas,
ainda não se escreveu sobre elas a palavra definitiva.
Eu poderia ter feito um estudo proveitoso para a História da Capitania de S. Vicente e da
Capitania de S. Paulo até à Independência, útil, portanto, para a História do Brasil.
Não foi possível. Faço, porém, publicar estes comentários e estas informações pela mesma razão,
agora em 1956, e com o mesmo intuito, com os quais fiz publicar as Atas das Câmaras, em 1914, e os Inventários e Testamentos, em
1920.
Este meu trabalho não é ainda obra de historiador. O que se vai ler é auxílio para o trabalho do
futuro historiador. É, pois, estudo incompleto.
É aqui apenas fornecido material para construção do edifício final, na parte relativa à Capitania
de S. Vicente.
Nas próprias construções de arquitetura, não se enfadam os mestres em examinar os tijolos e a
madeira, ainda tosca, para adotar uns e desprezar outros.
Washington Luís |