DETALHES - Nilson Firmino é hoje responsável pelo arquivo da Câmara de São Vicente. Com mais
recursos, pretende organizar melhor o acervo e alimenta o sonho de um dia poder abrir o local para a visitação pública
Foto publicada com a matéria
São Vicente
Câmara, 480 anos e só 180 de histórias
Arquivo do Legislativo foi vítima de piratas e de vários incêndios
Victor Miranda
Da Redação
A Câmara de São Vicente comemora 480 anos neste mês. Nunca na
história do continente americano havia acontecido qualquer evento de ordem democrática. Até o dia 22 de agosto de 1532. Naquela data, cumprindo uma
orientação do rei dom João III, de Portugal, foram realizadas as primeiras eleições da história do Brasil.
Desde lá, quatro séculos se passaram. Os eleitos, antes chamados de oficiais da Câmara, passaram a
ser denominados de vereadores. Centenas deles passaram pelo cargo ao longo desse tempo. A estrutura física do Legislativo mudou várias vezes. Muitas
histórias aconteceram - a maior parte não se tem registro, mas a instituição permanece em atividade.
E é no prédio da atual Câmara Municipal (na Rua Jacob Emmerich, 1.195), no primeiro andar, em uma
sala pouco acessada pelo público, que os principais fatos políticos dos últimos 180 anos da história da Cidade resistem. Em meio a pastas, álbuns,
recortes e quadros, o Arquivo do Legislativo calunga é capaz de conduzir a um mergulho em fatos que a memória teima em falhar, mas que os documentos
insistem em preservar.
Soldado doou para a Câmara de São Vicente o capacete de aço e o uniforme usado nas batalhas da
Revolução Constitucionalista de 1932. Material acompanha uma carta escrita pelo próprio militar voluntário
Foto publicada com a matéria
História perdida - Mesmo sendo o Legislativo mais antigo das Américas, a Câmara de São
Vicente se ressente da falta de itens e dados históricos anteriores à segunda metade do século 19. Até as próprias causas que fizeram esses
registros desaparecerem entraram para a história.
Tudo começou apenas quatro anos após a fundação da Vila. Em 1536, um pirata conhecido como
Mosquera atacou e saqueou São Vicente. Levou consigo o chamado Livro do Tombo, onde os primeiros moradores registravam os fatos importantes do
local.
Depois, em 1541 e 1542, um maremoto - que alguns estudiosos garantem se tratar de uma forte
ressaca - destruiu a Vila de São Vicente. A Câmara, evidentemente, estava entre os locais afetados.
Um segundo ataque de piratas, entre 1591 e 1593, acabou mais uma vez com o acervo que se criava.
Conhecido como corsário Cavendish, o principal líder da invasão levou consigo o que lhe interessava. E o que não lhe tinha valor, como os
documentos, teve como destino o fogo.
As chamas voltaram a atormentar a memória do Legislativo vicentino em outras três oportunidades,
conforme explicou o falecido pesquisador e assistente administrativo da Câmara de São Vicente, Narciso Vital de Carvalho.
"Em 1667, o juiz ordinário da Vila, Manoel Vieira Colaça (enlouquecido por contrariedades
amorosas) queimou todos os livros recém-restaurados e papéis antigos", disse Vital.
O acervo começou novamente do zero, até que um secretário da Câmara do século 18 - cujo nome não
se sabe - voltou a incendiar os documentos. "Anos mais tarde, outro secretário usou os documentos no fabrico de bombas", contou Vital.
História |
Comparação - Ao imaginar a eleição de 480 anos atrás, é bom
não comparar com o que existe hoje. Tudo era muito diferente. Naquela época, o povo escolheu seis delegados e eleitores que indicaram os
oficiais da Câmara. Eram cinco os escolhidos, sendo dois juízes, dois vereadores e um procurador. Os mandatos durava 1 ano. Mas os nomes do
triênio já ficavam definidos, sem chance de reeleição. Nem mesmo parentes podiam se repetir em uma mesma legislatura ou na sucessão. Os eleitos
não recebiam salários e deviam comparecer às sessões bissemanais. Caso contrário, pagavam multa. |
|
Registro fotográfico do prédio da primeira Câmara e Cadeia de São Vicente. Município foi o
pioneiro da América a realizar eleição e consulta pública. Poucos documentos permanecem relatando aquela época
Foto: reprodução, publicada com a matéria
Ata mais antiga data de 1845
O ex-assistente administrativo da Câmara Narciso Vital de Carvalho dedicou boa parte de sua vida
pesquisando em meio a centenas de pastas e livros-atas. Documentos que pudessem ser resgatados de modo a arquivar a recente história do Legislativo
de São Vicente.
Encontrou, por exemplo, uma ata de 15 de julho de 1845 - a mais antiga que se tem registro. Em
outro documento, da sessão de 1847, a determinação que se cobrasse multa dos parlamentares Manoel José da Graça e Leopordino José de Azevedo. O
motivo? Faltaram na sessão ordinária.
Em outra descoberta, do mesmo ano, Vital se deparou com o registro de um folheto remetido pela
Câmara de Santos, relatando a visita do imperador dom Pedro II e de sua esposa, dona Augusta.
Um dos documentos mais curiosos até hoje preservados aponta que um ano, seis meses e 13 dias antes
de ser assinada a Lei Áurea pela princesa Isabel, São Vicente já havia proibido a escravidão em seu território.
Todas essas histórias e a paixão pela pesquisa foram passadas durante muitos anos por Vital a um
jovem funcionário, chamado Nilson Firmino. O rapaz foi tomando gosto pela história da Câmara e, desde 1997, é o responsável pelo Arquivo da Casa.
Sua meta agora é dar sequência ao trabalho de restauração de documentos iniciado pelo seu mestre.
"O Vital começou a fazer a transcrição dos livros-atas mais antigos. Mas não teve tempo de
concluir. Quero dar sequência a esse desafio", relata Firmino, com brilho nos olhos. "Não é bem um trabalho. É uma viagem. Cada sessão antiga que eu
leio me leva a outros tempos da história", confessa.
O pesquisador comemorou uma grande notícia neste ano. A atual administração da Câmara liberou a
compra de novos arquivos, para organizar melhor o acervo. "Meu sonho é abrir esses documentos e objetos para a visitação do público, uma espécie de
museu", almeja Firmino.
Livro-ata de 1845, com as anotações das decisões tomadas pelos parlamentares. Apesar da falta de
documentos de um longo período, alguns sonham em transformar o acervo em uma espécie de museu
Foto publicada com a matéria
|