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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
A resistência dos "operários do sol"

 

Santos - iconoclasta apesar do nome - tem uma característica marcante: a de seus moradores não aceitarem conformados as imposições opressoras, em quaisquer aspectos da vida. Assim foi com os comerciantes ambulantes das praias santistas, os "operários do sol" como se autodenominaram, e que precisaram enfrentar perseguições policiais e políticas, fazer passeatas e outros movimentos, na década de 1980, para se imporem como categoria de trabalhadores. Esse trabalho foi coordenado politicamente pelo jornalista e historiador Paulo Matos (falecido em julho de 2010), que escreveu, por volta de 1995:

Paulo Matos, em foto pouco antes de seu falecimentoRaimundo, operário do sol do Boqueirão

Paulo Matos (*)

Era em frente ao monumento de Vicente de Carvalho, de costas para o mar sobre o qual o poeta tanto escreveu - no jardim da praia do canal 3 -, que ficava Raimundo. Há algo de menos naquele espaço, pois o mago dos aperitivos coloridos se foi, há pouco. Pele morena de sol e de berço, tinha o título de Rei das Batidas - assim sem aspas mesmo, campeão do concurso que escolheu a melhor. E também de presidente eleito da entidade que lutou e venceu a batalha da legalidade dos ambulantes de praia - dos operários do sol.

Raimundo Bernadete Pereira foi o primeiro presidente da Socó - Unidade Ambulante de Resistência e também do sindicato que a sucedeu, por dois mandatos. A Socó foi a entidade que conseguiu pela primeira vez reunir e organizar a luta pelo direito à vida e ao trabalho dos operários do sol, na defesa de centenas de profissionais especializados no preparo de batidas feitas na hora. Ela nasceu na assembleia do dia 25 de fevereiro de 1983, na areia da praia do Gonzaga. Na madrugada, ocorrera o incêndio das palafitas da Vila Socó - e o paralelo da opressão lhe trouxe o nome.

Fará dez anos no ano que vem esta vitória dos ambulantes, que conquistaram direito ao trabalho, também o de oferecer prazer aos banhistas ansiosos por sua presença. Luta que enfrentou poderosos interesses, evoluindo da pré-história para a modernidade o comércio de bebidas na areia, sem que fosse necessário entregar o sistema para mãos empresariais. Aquelas mesmas batidas que transformam em reis por um fim de semana trabalhadores do sol a sol que não entra nas fábricas.

Operário do sol de duas décadas antes da legalidade, Raimundo era artista no preparo daquelas misturas de cachaça ou vodka, até com leite condensado. É de uma época em que as centenas de carrinhos faziam parte de um comércio clandestino e perseguido. Uma história de cinquenta anos de carrinhos de madeira feitos de caixotes e fogões velhos com rodas de bicicleta, caçados e apreendidos pela fiscalização municipal para serem incendiados - após construídos com sacrifício. Só após a conquista da legalidade, em 1986, foi possível apresentar os estilosos carrinhos atuais de fibra, com geladeira e tudo - a nível de um turismo evoluído como o oferecido em Santos.

Eles fugiam, para dentro d'água a cada investida dos fiscais, que não ousavam entrar no mar para pegá-los. Não foram poucas as correrias pela areia, lutas e enfrentamentos que faziam feridos inevitáveis, na guerra pela vida. Foi diante dessa contradição, de uma época de desemprego em que se proibia o trabalho defendido pelos usuários das praias, que este então quase jornalista (que nunca foi ambulante) decidiu fazer justiça nos 5,5 km das praias de Santos. E chamou um a um a um dos operários do sol para uma assembleia na praia, que fundaria a "Socó". Quantas caminhadas pela areia para esta vitória litoral...

Da praia saiu uma passeata até a Praça da Independência. Depois, três anos de assembleias, passeatas, idas massivas à Câmara Municipal e à Assembleia Legislativa, Prefeitura e secretarias, apelos, publicações, cerco às autoridades e documentos públicos. Era preciso provar a singela e perfeita convivência dos usuários da praia e esses ambulantes. Para isso, era preciso derrubar uma lei estadual que proibia a venda de bebidas alcoólicas na praia, o que fizemos. E era preciso criar uma lei municipal, corrigindo uma injustiça de meio século, finalmente aprovada.

Raimundo, cujo coração crescia nos seus bailados, ao sacolejar todo o corpo junto com os copos no preparo das batidas, desde cedo acreditou na viabilidade da vitória do movimento - e trabalhou por ele. Como centenas desses profissionais do sol que frequentavam nossas assembleias, no Centro dos Estudantes de Santos. Cresceu tanto esse coração que parou.

Por toda a praia, entretanto, ficou uma estrutura autônoma e descentralizada de serviço - sem empresas, falsa modernidade ou exploração do homem pelo homem - que produz alegria. uma alegria que foi também das famílias destes migrantes sofridos, que afirmaram sua profissão e garantiram sua subsistência na legalidade.

Raimundo, operário do sol, esteve conosco na luta que garantiu não apenas a legalidade dos profissionais da caipirinha, mas a continuidade dos carrinhos de lanche, permitindo sua evolução hoje para os quiosques. Que lutou e assegurou as feiras de artesanato, hoje tradicionais. um conjunto que esteve também na luta das diretas (N.E.: movimento Diretas Já, pela volta das eleições diretas para presidente da República, em 1983/84) e que representou um resgate dos direitos populares. Uma vitória que hoje Raimundo comemora no céu, produzindo néctares dos deuses onde é sempre verão.

(*) Paulo Matos é jornalista e historiador pós-graduado. Foi coordenador do movimento dos ambulantes de praia pela legalidade.

Nos arquivos de Paulo Matos consta este recorte de publicação no antigo jornal Cidade de Santos, de segunda-feira, 27 de fevereiro de 1984, registrando a primeira passeata de ambulantes de praia em Santos:

Apesar do sol, poucos turistas desceram a serra para as praias santistas

Foto publicada com a matéria

 

Um final de semana de poucos turistas

O sol forte não foi suficiente para atrair o paulistano, que neste final de semana desceu a serra em pequeno número. Apenas 75.744 veículos desceram para a Baixada Santista, de sexta-feira às 12 horas até ontem no mesmo horário, segundo a Dersa.

A praia, opção maior de lazer principalmente nos finais de semana de muito sol, ficou quase toda para os santistas. E os banhistas dividiram o espaço na areia com aqueles que continuam teimando em praticar esportes na praia, apesar da fiscalização. Desde a praia do Itararé, em São Vicente, até as proximidades do Aquário, na Ponta da Praia, no período da manhã havia mais pessoas na água do que na areia, devido ao forte calor.

Os abusos, apesar da fiscalização, continuam acontecendo em toda a orla da praia, uma vez que é praticamente impossível, com o número reduzido de fiscais, controlar tudo que acontece. Assim, não foram poucos os ciclistas que continuaram pedalando suas bicicletas na calçada, embora cientes da proibição. Outras utilizavam os jardins para dormir, fazer lanche e até trocar de roupa.

Ambulantes desfilam - Espetáculo diferente tomou conta da Avenida Ana Costa até a Praça da Independência, no sábado à tarde; um grupo de 50 ambulantes, vendedores de raspadinhas (N. E.: bebida formada por raspas de gelo e licores diversos) e caipirinhas, desfilaram pelo Gonzaga, em sinal de protesto pela repressão que lhes vem sendo feita, principalmente pela Secretaria de Higiene e Saúde. O desfile é também parte do movimento de união desses trabalhadores para conseguir, junto à Prefeitura, a regulamentação da atividade.

Os ambulantes estiveram reunidos em assembleia na Ana Costa e ficou decidido que hoje estarão todos na sessão da Câmara Municipal de Santos, visando sensibilizar a classe política para a situação. Paulo Mattos, suplente de vereador pelo PMDB, é quem está liderando esse movimento e explica que apesar de não ser vendedor ambulante, resolveu "meter a colher", orientar essas pessoas, procurando fazer com que eles próprios se mobilizem no sentido de concretizarem a regulamentação da atividade. "Estou participando porque são trabalhadores, chefes de família que buscam o sustento de forma honesta. Se existem alguns infratores, esta é a hora da Prefeitura agir, regulamentando a atividade do vendedor de raspadinha para que os abusos não mais aconteçam", diz o suplente.

Mesmo sem a participação de políticos locais, convidados previamente para essa primeira assembleia, os ambulantes não se intimidaram. Expuseram os problemas enfrentados no dia-a-dia, criticaram a ação da fiscalização da Prefeitura e, principalmente, da Sehig. Paulo Matos considera que a repressão a esses ambulantes é injusta e que nem todos trabalham com mercadorias que possam prejudicar o consumidor. "Isso é manobra de comerciantes que se julgam prejudicados com o trabalho dos ambulantes. O que eles não veem é que são trabalhadores buscando seu sustento. Ambulante não prejudica comércio".

Ainda no arquivo de Paulo Matos, o recorte de publicação no jornal Cidade de Santos, de sexta-feira, 16 de novembro de 1984:

Apesar da proibição, os veículos não foram retirados do local

Foto: publicada com a matéria

 

Ambulantes acatam as determinações

Apesar do sol quente e do grande movimento de ontem nas praias, quase todos os ambulantes que têm traillers e carrinhos na praia do Embaré acataram as determinações do prefeito Oswaldo Justo. Pela manhã, apenas dois estavam trabalhando. "Eu estou aqui, mas sou empregado - explicava Nascimento. Se a fiscalização vier, eu tiro os vasilhames e vou embora. Que é que eu posso fazer? Por enquanto, tudo está tranquilo".

Num outro trailler, uma senhora preparava molhos para os sanduíches que pretendia vender. Ela não quis falar nada. Não era dona nem empregada, pois respondia tudo negativamente, mas parecia entusiasmada com as perspectivas do dia.

Em busca de solução - Hoje, às 16 horas, uma comissão constituída por cinco proprietários de carrinhos e traillers, acompanhada pelo vereador Nobel Soares  pelo coordenador da Socó - Unidade Ambulante de Resistência - Paulo Mattos, será recebida pelo prefeito Oswaldo Justo, na Prefeitura. Eles irão expor as consequências da medida que impede a permanência dos ambulantes em avenidas da orla, publicada no Diário Oficial de terça-feira passada, e procurar uma solução para o problema criado.

Todos são licenciados, mas já não existe espaço disponível nas ruas que dão acesso à areia das praias, junto aos canais. Eles explicaram ao vereador que não há lugar para onde ir, que têm licenciamento e não podem trabalhar. Quanto ao prefeito, ele manteve-se irredutível na sua posição: a remoção dos veículos (não cumprida até ontem pela manhã) e a punição dos que não cumprirem suas determinações.

Também no arquivo do jornalista, o recorte de A Tribuna, de domingo, 20 de janeiro de 1985, página 1:

Foto: publicada com a matéria

 

Ambulantes sofrem repressão

Os ambulantes de raspadinha e de batidas ludibriaram a fiscalização da Prefeitura, entrando no mar com seus carrinhos, sem tempo para trocar de roupa. O arrastão determinado pelo prefeito Osvaldo Justo, para coibir os abusos na praia, foi bastante aplaudido pelos poucos banhistas que enfrentaram as chuvas. Teve pouco trabalho, limitado à área entre o Aquário e o Canal 4, mas moralmente chegou aos objetivos, sem nenhum tipo de violência. Além da fuga dos ambulantes, a única reação encontrada partiu de um grupo de rapazes, que vaiou os fiscais na apreensão da rede e bola de voleibol, em frente à Rua Osvaldo Cócrane, mas também ali a atuação da Prefeitura recebeu muitas palmas. A blitz será repetida na manhã de hoje.

Em um domingo, 14 de abril de 1985, o jornal A Tribuna publicou a coluna da cronista Lydia Federici, Gente e Coisas da Cidade, narrando a história de Nilda, pioneira como ambulante de praia:

Gente e Coisas da Cidade

 

Lydia Federici

 

Condene-a, se puder

Foi uma santista exilada em São Paulo quem me contou a história de Nilda. Recebi a carta há coisa de uns 15 dias. Veio assinada por Lydia de Carvalho. Contou-me a história com muitos pormenores. Pediu-me uma crônica. Para homenagear a valentia de uma pequena ambulante de praia. E, ao mesmo tempo, depois de enumerar uma série de perguntas, para tentar resolver um problema que leis ou portarias incompletas ou conflitantes não estão ajudando a solucionar.

Mas vamos, em primeiro lugar, à história de Nilda.

Nilda é pioneira como ambulante de praia. Aventurou-se a circular entre os canais 2 e 3 como vendedora de batidas - coisa ali proibida de vender, porque, com um filho pequeno, grávida de quatro meses, abandonada pelo marido, ela se viu forçada a encontrar um meio de ganhar a vida.

Principiou num domingo de verão. Levava, num isopor, 100 salgadinhos. Vendeu, ao fim de horas, só nove.

Não desanimou. Voltou,no outro dia, com latas de Skol. Também não faturou quase nada. Insistiu por uns dias. Quando chegava a vender oito ou dez, era acontecimento digno de ser comemorado com foguetes. Foi aí que um amigo a aconselhou: "Faz batidas e raspadinhas. Vai ver como sai tudo!"

Mas isso não era coisa proibida? Lá na areia, pelo menos? Era. Mas, apesar da concorrência dos baianos das temporadas e da fiscalização, a coisa rendia.

Foi assim que a moça conseguiu fazer sucesso. E ganhar o suficiente. Para manter-se e criar os dois filhos. Que o segundo nascera, sim, sabe?

Hoje há outras ambulantes pela praia. Defendendo seu negócio em confronto com os homens. Mas Nilda foi a primeira. Há cinco anos que iniciou sua luta. É uma mulher decidida apesar de pequenina. É ágil e forte. Anda descalça. Usa seu duas-peças desparceirado. Não abandona o bonezinho branco. Empurra - ou puxa - seu carrinho azul com as bebidas coloridas. Suas bebidas agradam a ponto de garantir freguesia certa.

E assim, sorridente, com os olhos sempre muito móveis e vivos, saudando os amigos, sabe o nome de muitos e gosta de identificá-los -, ao menos com o carinho de um querido ou querida - correndo quando necessário, faltando à praia quando precisa levar uma das crianças ao médico e não tem ninguém com quem a deixar, a moça nunca perde seu otimismo. Jamais duvida em sua fé inabalável. Do Deus que é pai. Sempre dá para ir levando - gosta de afirmar. Mesmo nos piores momentos, sim.

"Nilda, a ambulante corajosa, não merece uma crônica? Como exemplo de coragem e persistência". É isso, ao final de sua história, que a missivista pergunta. E sugere. Para rematar a carta, comenta, e a cronista lhe pede, amigo, que preste atenção ao que se segue:

"Por que será que a fiscalização que ignora o futebol, o frescobol e quejandos, tolera cães na praia; permite bicicletas e motos nas calçadas; faz vista grossa aos piqueniques nos jardins, molesta uma pobre mulher que, além de contribuir para o maior conforto dos banhistas, está lutando pelo pão de cada dia?"

Continua Lydia de Carvalho, a santista exilada em São Paulo:

"Faça um apelo ao prefeito, que se for justo como o nome, não poderá deixar de sensibilizar-se com o problema".

Concordo. E digo mais: as leis do uso da praia e muitas letras do Código de Posturas de Santos estão a exigir uma revisão. Para que se adaptem ao novo jeito de fazer turismo e proporcionar lazer. Evitando-se o evitável. Disciplinando e orientando o que, por impossibilidade de repressão ou fiscalização, já se integrou aos costumes de uma população merecedora do bom e do bem viver dos tempos atuais, entende o que quero dizer?

Principalmente, nada de dois pesos e duas medidas. Um exemplo? Por que não tolerar os ambulantes na praia, com suas batidas, se os clubes da areia, em suas barracas, vendem bebidas alcoólicas? E os bares da avenida também? O sol nasce para todos. É reservar um naco de chão e um tico de oportunidade para todos, parece-me.

No arquivo de Paulo Matos, nota do jornal Cidade de Santos de terça-feira, 30 de abril de 1985:

Imagem: reprodução da nota

 

Agenda

[...]

Ambulantes - Hoje, às 19 horas, na sede do Centro dos Estudantes de Santos, à Avenida Ana Costa, 308, será realizada a assembleia geral dos ambulantes de bebidas para eleger uma diretoria definitiva da entidade que congrega a categoria, que será denominada "Associação Profissional dos Vendedores Ambulantes de Bebidas Alcoólicas e Conexos nas Praias de Santos".

Paulo Matos guardou em seu arquivo exemplares dos materiais da campanha pela legalização do comércio ambulante de praia, como este prospecto datilografado em três folhas tamanho A4 e fotocopiado, para ser distribuído nas eleições de 1986:

Imagem: reprodução parcial do início do prospecto

 

Ambulantes

Amigos ambulantes das praias de Santos

Companheiros,

Venho lembrar que no próximo dia 1º de janeiro de 1987 comemoraremos, além do Ano Novo, o início do segundo ano de uma nova era para os ambulantes de praia. Em 1/1/86 foi regulamentada definitivamente a legalização desse comércio até então clandestino, pelo prefeito Oswaldo Justo. Foi uma extraordinária e histórica vitória da população local trabalhadora e praiana, que derrubou até leis estaduais e que alterou a sucessão de perseguições e apreensões desumanas de dezenas de milhares de carrinhos em meio século de repressão - causando fome e desespero entre os operários do sol.

Volto aos companheiros para saudar essa data que se aproxima, sem esconder o orgulho pelo sucesso da luta que iniciei e que coordenei durante mais de dois anos de intensa participação da categoria - embora sem fazer parte deste conjunto de trabalhadores de beira-mar, mas atento e solidário à sua revolta contra esta absurda proibição. Sofrendo os efeitos do ódio e do desprezo dos que não se interessavam, não acreditavam e nem desejavam a conquista do direito à vida e ao trabalho dos operários do sol.

Desde o início da década que tento viabilizar essa legalidade, dando condição de vida aos operários do sol e de prazer aos seus milhões de consumidores, fazendo evoluir a convivência praiana. Desde 1982 me manifestava junto ao diretório partidário e à imprensa. Em janeiro/84, iniciei o recolhimento de assinaturas dos componentes desse mercado de trabalho clandestino para um abaixo-assinado que enviei ao então prefeito nomeado, pedindo o fim das violências e o estabelecimento de um "Acordo de Emergência" que lhes permitisse o trabalho, em vão. Só a mobilização faria chegar a voz da razão.

Na luta pela legalidade - No início de fevereiro/84, precisamente no dia 17, um fato desencadeou a reação organizada dos operários do sol ao massacre de que eram vítimas, na luta para sobreviver ao desemprego  que nesse instante era cruel: nesse dia, à chegada do caminhão onde eram depositados os carrinhos após serem arrancados das mãos de seus proprietários, junto com os fiscais e os "pegadores" e policiais, a revolta dos ambulantes exigia uma ação imediata. Assim, incentivei para que eles se enfileirassem com seus carrinhos, lado a lado, na areia da praia do Gonzaga - próximo ao mar onde costumeiramente se escondiam dos fiscais. Diante disso, a repressão recuou e foi embora sem apreender nenhum instrumento de trabalho dos operários do sol.

Junto com alguns dos mais antigos membros da categoria, realizando miniassembleias nos diversos espaços da praia, marcamos uma assembleia geral. Mandei fazer por minha conta milhares de panfletos e os distribuí aos ambulantes nos quase seis quilômetros de praia, de um a um, convocando-os para o que seria o nosso primeiro encontro, na areia da praia do Gonzaga, em 25/2/84. Após a reunião com mais de cem participantes, fomos em passeata até a Praça da Independência. Pela coincidência da data com o incêndio de Vila Socó, em Cubatão, a entidade de luta dos ambulantes chamou-se Socó - Unidade Ambulante de Resistência.

A partir daí, foram muitas as audiências com secretários municipais e estaduais, vereadores, prefeitos e deputados, aqui e na capital, onde estive sempre em busca dos caminhos da legalidade, junto com os ambulantes. Por diversas vezes lotamos a Câmara Municipal, tendo eu convocado e coordenado mais de 50 assembleias no Centro dos Estudantes - que para manter o pique do movimento, eram semanais. Fizemos passeatas e atos públicos e preparei o pedido de formação de uma Comissão Especial de Vereadores, apresentado na Câmara pelo vereador Nobel, que junto com o vereador Mantovani apresentariam o trabalho final de legalização no Legislativo.

Pelo direito ao trabalho e à vida dos trabalhadores do sol - Dos mais de 150 trabalhos que escrevi e enviei aos jornais e rádios da Baixada, em forma de cartas e cobertura do movimento - quase seis mil linhas -, resultaram quase duzentas reportagens na imprensa local, ilustrando para a população uma infringência aos direitos humanos, para a qual poucos já tinham atentado. O resultado não podia ser outro: a legalização da atividade, abrindo perspectivas de vida digna para milhares de pessoas. Evoluindo o nível de convivência em nosso maior e melhor espaço de lazer, a praia.

Neste momento, volto aos companheiros da valente categoria dos ambulantes, com a certeza de ter trabalhado por ela, comprometendo-me a junto com seus integrantes a lutar para corrigir as deformações e falhas existentes e para melhorar ainda mais as condições de trabalho, para pedir o apoio às candidaturas do PMDB cuja chapa apresento abaixo. Eu conto com você e você sabe que sempre pôde contar comigo, independentemente das eleições. Nosso compromisso é de vida. Minhas extensas caminhadas de ponta a ponta na praia não foram em vão.

Vote

Governador - Quércia

Senador - Covas

Senador - Fernando Henrique

Deputado Federal - Del Bosco Amaral

Deputado Estadual - Raimundo Oliveira

Valeu, companheiros

Paulo Matos

Imagem: reprodução parcial do final do prospecto

Paulo Matos foi editor do jornal tabloide Destaque, em cuja edição de julho de 1988, dedicada especialmente ao então distrito de Bertioga, destacou também o tema dos ambulantes, na página 7 (exemplar no acervo de Paulo Matos - ortografia atualizada nesta transcrição):

Desenhos dos panfletos da luta pela legalidade dos ambulantes, elaborados e distribuídos por Paulo Matos desde fins de 1983 - obra do artista Pajé

Imagem publicada com a matéria

Ambulantes, na evolução

Promovendo a evolução do atendimento aos milhões de banhistas que frequentam nosso maios espaço de lazer, e pondo fim aos frequentes conflitos entre os fiscais e os ambulantes clandestinos na areia, perseguidos há meio século com seus toscos carrinhos de madeira, a administração do prefeito Oswaldo Justo legalizou e disciplinou o comércio ambulante nas praias. Esses "operários do sol", que fazem a alegria do povo praiano, seja nos 5,5 quilômetros de praia de Santos/Ilha, ou nos 43 quilômetros de Bertioga, passaram a trabalhar com carrinhos de aço apresentáveis e higiênicos, padronizados, integrando-se a este tempo de avanço santista.

Essa legalidade foi finalmente implantada a partir de 1º de janeiro de 1986 e foi produto da luta iniciada com a organização da própria categoria dos ambulantes de praia pelo jornalista Paulo Matos. Foi ele que convocou e reuniu mais de 200 ambulantes em uma assembleia inédita na areia do Gonzaga no dia 25 de fevereiro de 1984, decretando o início de uma mobilização que iria interromper um processo em que centenas de carrinhos foram apreendidos, destruídos a machadadas e incendiados - depois de custarem dias de trabalho e esforço dos "operários do sol" para construí-los. Cada um perdeu dezenas deles nessa batalha pelo direito ao trabalho.

Legalidade, derrubando leis - Essa luta pela legalidade dos ambulantes, objetivo firmado pelo jornalista Paulo Matos e manifestada por ele na imprensa em dezenas de artigos desde 1982,teve que derrubar uma lei estadual que proibia bebidas alcoólicas na praia. matos e uma comissão de ambulantes foram à Assembleia Legislativa do Estado e, em contato com os deputados, pediram a derrubada da legislação. Cerca de 50 assembleias gerais da categoria foram convocadas por Paulo Matos e por ele coordenadas, no Centro dos Estudantes de Santos, além do jornalista ter debatido com prefeitos nomeados, secretários municipais e vereadores a necessidade urgente de pôr fim às perseguições e apreensões dos instrumentos de trabalho dos "operários do sol".

Em tempos em que a ditadura nomeada interventores para nossa cidade, período interrompido em 1984 com a posse do prefeito Oswaldo Justo, a mobilização dos ambulantes coordenada por Paulo Matos recolheu abaixo-assinados, organizou passeatas e atos públicos, fez manifestações na imprensa e elaborou/distribuiu mais de 30 mil panfletos convocatórios. Hoje, os ambulantes santistas podem dizer que têm história, tendo contribuído para evoluir o turismo santista.

Sobre o tema, o jornalista também escreveu este artigo rememorando essa campanha, cerca de 1995:

Panfleto de 1984 da Socó, convocando para assembleia de 20 de março

Imagem: arquivo do jornalista Paulo Matos

Quiosques e histórias ambulantes

Paulo Matos (*)

Resultado de processos diferenciados que permitiram sua evolução social, comercial e turística, a qualificação dos ambulantes de praia, móveis e fixos, ocorreu em épocas diversas - como produto da mobilização social e da ampliação da ótica do governo municipal, respectivamente. Como traço comum, estes hoje microempresários trazem toda uma história de perseguições oficiais, atitudes que sempre lhes impuseram o medo e a provisoriedade obrigatória.

Só pós sua plena integração no mercado - na mobilização reivindicatória ou na modernização das concepções sociais do governo municipal -, os ambulantes tiveram a oportunidade de comprovar sua viabilidade. Esta é a questão fundamental, que reverteu a trajetória da clandestinidade compulsória e fez história.

A inovação recente dos quiosques superou, finalmente, os traillers simploriamente adaptados nas laterais dos canais como pontos de venda de lanches - sobre rodas que não circulavam e tocos de madeira, sem água nem luz -, há mais de três décadas. Antes deles, há quase dez anos, os carrinhos de caipirinha existentes há mais de meio século tiveram, afinal, sua legalidade.

Foi só então que para os "operários do sol" foi dada a oportunidade de se constituírem - com seus instrumentos de trabalho antes feitos de madeira, à mão -, à altura do turismo santista. Os quiosques vieram como fruto de uma nova visão política recente; os ambulantes móveis, das saborosas batidas na areia, através de duras batalhas da Socó - Unidade Ambulante de Resistência - iniciada em 25 de fevereiro de 1983 e que fez passeatas e dezenas de assembleias no Centro dos Estudantes.

Uma rememoração histórica dá o tom exato da ampliação da perspectiva social e econômica dos governos municipais em relação a estes empresários sem capital. Pequenos empreendedores que vieram usufruir de um mercado ocioso e disponível, ao que comprovaram sua integração. E da natureza das perseguições efetuadas durante décadas, produto de uma visão política obtusa que se recusava a integrá-los, seja como trabalhadores ou atividades comerciais - para evolução do atendimento a turistas e santistas.

Apesar de provarem sua inserção no mercado consumidor pela vasta freguesia que atraíam e atraem, ambulantes fixos ou móveis foram sempre vítimas de perseguições e ameaças. Que colocavam em risco a sua sobrevivência - assim como o pequeno, mas significativo para eles, capital empregado. Não foram poucos os que ainda choram terem sido seus traillers levados pelos guinchos municipais, na perspectiva de "limpar" a praia de sua incômoda presença - uma prática duradoura. Estes - dezenas - jamais terão seus merecidos quiosques. Os que ficaram jamais esquecerão nossa mobilização vitoriosa, revertendo uma ordem de guinchamento já baixada. E garantindo os futuros quiosques, dez anos depois. Fizemos história.

Quando do início de nossa luta pela legalização dos ambulantes de caipirinha da areia - na meta de promovê-los socialmente e também de evoluir um sistema de atendimento que a praia, o maior e melhor espaço de lazer da cidade, carecia -, não foram poucos os ataques e dificuldades para sua viabilização. Era época de prefeitos nomeados, a autonomia municipal tinha sido varrida pela "segurança nacional".  E estas questões eram tratadas sem nenhuma ótica social ou de futuro.

Durante cinquenta anos, os fiscais dos governos municipais cuidaram de apreender os carrinhos, em nome da lei. E as autoridades, de atemorizar os banhistas, alertando-os sobre os "perigosos" produtos vendidos por eles, capazes de "matar na hora", em vão. Para cada carrinho preso e incendiado - foram centenas, com violência -, era feito outro, em nome da sobrevivência. Como sempre "saboreado" pelos banhistas em todas as praias de Santos. São marcantes as histórias de vida dos "operários do sol".

São muitas as histórias de fugas para dentro do mar, confrontos e conflitos na paz da areia, desde seu surgimento espontâneo e uniforme. Quem não se lembra do prefeito nomeado que ia à praia destruir, pessoalmente, os instrumentos de trabalho de tantos migrantes?

Eram chamados de "traficantes" e "marginais" pelo secretário da Saúde de um dos governos nomeados - que sempre nos recusou o entendimento, ao contrário, baixou uma lei mais draconiana -, através do jornal. E acusados de prepararem batidas com álcool combustível, mortal. Este secretário chegou a dizer que as "raspadinhas" preparadas pelos ambulantes continham um "veneno" chamado "tartrazina" - assustador só pelo nome. Descobrimos que o tal "veneno" vinha na composição do refresco industrializado, adquirido por eles no "mercado negro" do... SUPERMERCADO! Era a opção pela continuidade da precariedade.

O mais grave entrave à legalização era, entretanto, uma lei estadual, que proibia a venda de bebidas alcoólicas na areia da praia. Arrotada com o habitual autoritarismo da época, tinha o número 52.388/72. Depois de apelarmos pela sua suspensão ao então governador do Estado, Franco Montoro, e seus secretários, na Câmara de Santos, fomos à Assembleia Legislativa conversar com as lideranças partidárias para derrubá-la.

Foi através dos deputados-líderes dos partidos da Assembleia Legislativa que soubemos a verdade, após uma semana. A famigerada e temida legislação era apenas um decreto-lei, que não tendo sido votado no ano, perdia a validade. E já tinha passado mais de dez de sua promulgação. Logo, não tinha mais a função que os adversários contavam. Mas a esta altura de nossa mobilização, já tinha impedido a aprovação de um projeto legalizador na Câmara de Santos.

Superado o entrave legal, conquistada a solidariedade dos vereadores em sucessivas lotações de ambulantes no plenário da Câmara, eis que o projeto legalizador é aprovado e mandado para o prefeito. Mas este se recusa a assiná-lo e volta para o Legislativo - na qual o presidente também não o assina e ele é finalmente consagrado por decurso de prazo.

A razão destes procedimentos era que ele nunca passou garganta abaixo de poderosas forças locais... Mas os "operários do sol" e os banhistas ainda não tinham vencido a batalha: a regulamentação da lei exigiu novos esforços. O prefeito não podia deixar de fazê-la, como aventou - argumentou-se -, sob pena de ser punido pelo esvaziamento de receita - já que reconhecia sua existência. E modernos carrinhos, até com geladeira, vieram à luz e ao sol!

Dez anos depois, chega a vez dos traillers, transformados em modernos quiosques permanentes. Mais do que colocar água e luz nos precários veículos de turismo adaptados, constituindo a perpetuação da precariedade - como chegou a propor um vereador -, construiu-se um conjunto arquitetônico capaz de evoluir o nível de atendimento de turistas e santistas, sem ônus para o município. Desenhando um novo quadro na cidade que, convenhamos, não pode ser obscurecido e nem destruído em administrações vindouras.

(*) Paulo Matos é jornalista e historiador pós-graduado. Foi coordenador do movimento pela legalidade dos ambulantes de praia.

Panfleto de cerca de 1987 convocando os ambulantes para eleger a direção da categoria

Imagem: arquivo do jornalista Paulo Matos

Veja mais:

Os calções do senhor prefeito

Primeiras barracas de praia

Quiosques de praia - reformulação em 2011/12

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