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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Um texto inédito de Castro Alves em Santos

 

Antônio de Castro Alves, que nasceu na Bahia em 1847, viveu até 1871, tendo apenas uma obra publicada em vida, Espumas Flutuantes, em 1870. Conhecido como o "poeta dos escravos", devido principalmente à obra Navio negreiro (publicada em 1880), ele também escreveu em São Paulo a obra Os escravos, cujo final ele mesmo reconheceu em uma carta ter sido ambientado "no alto da Serra do Cubatão, ao romper da alvorada sobre a América, enquanto a estrela da manhã, lágrima de Deus pelos cativos, se apaga pouco e pouco no ocidente".

Essa obra só foi publicada em 1883, dois anos antes de surgir a Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe (que em 1885 tornava livres os escravos maiores de 60 anos), ou cinco anos antes do advento da Lei Áurea, que em 1888 libertou todos os escravos remanescentes.

Porém, fato já não lembrado, um trecho de Os escravos foi incluído como texto inédito em uma publicação santista de julho de 1877, a Revista Nacional de Sciências, Artes e Letras (volume I/número 1/ano I, que tinha como editor-proprietário Herculano Marcos e Inglez de Souza, sendo impressa na Tipografia a Vapor do Diário de Santos), páginas 94 a 98, exemplar no acervo da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC). Foi mantida a grafia original nesta transcrição:


Imagem: reprodução parcial da publicação original

 

Vozes d'Africa

INTRODUCÇÃO DO POEMA INEDITO "OS ESCRAVOS"

 

Deus, oh Deus, onde estás que não respondes?

Em que mundo, em que estrella tu te escondes,

            Embuçado nos céos?

Ha dous mil annos te mandei meu grito

Que em balde desde então corre o infinito;

            Onde estás, Senhor Deus?

 

Qual Prometheu, tu me amarraste um dia

Do deserto na rubra penedia,

            Infinito galé.

Por abutre me deste o sol ardente,

E a terra de Suez foi a corrente

            Que me ligaste ao pé.

 

O cavallo estafado do Beduino

Sob a vergasta tomba resupino,

            E morre no areial;

Minha garupa sangra, a dôr poreja

Quando o chicote do Simoun dardeja

            O teu braço eternal!

 

Minhas irmãs são bellas, são ditosas!

Dorme a Asia nas sombras voluptuosas

            Dos harens do Sultão!

Ou no dorso de brancos elephantes

Embala-se coberta de brilhantes

            Nas plagas do Hindostão!

 

Por tenda tem os cimos do Himalaya,

O Ganges amoroso beija a praia

            Coberta de coraes!

A brisa de Mysora os céos inflamma,

E ella dorme nos templos do Deus Brahma,

            Pagodes colossaes!

 

Europa, é sempre Europa, a gloriosa!

A mulher deslumbrante e caprichosa,

            Rainha e cortezã!

Artista, corta o marmor de Carrara,

Poetiza, tange os hymnos de Ferrara

            No glorioso afan!

 

Sempre o laurel lhe cabe no litigio!

Ora uma cr'ôa, ora um barrete Phrygio

            Enflora-lhe a cerviz!

O universo apoz ella, doudo amante,

Segue captivo o passo delirante

            Da grande meretriz!

 

Mas eu, Senhor, eu triste, abandonada,

Em meio das areias esgarrada

            Perdida, marcho em vão!

Se choro, bebe o pranto a areia ardente,

Talvez p'ra que meu pranto, oh Deus clemente,

            Não descubras no chão!

 

E nem tenho uma sombra de floresta,

Para cobrir-me nem um templo resta

            No solo abrazador!

Quando subo ás pyramides do Egypto

Embalde aos quatro céos chorando grito:

            Abriga-me, Senhor!

 

Como o propheta em cinza a fronte envolve,

Velo a cabeça no areial que volve

            O sirôco feroz!

Quando eu passo no Sáhara amortalhada,

Ai! dizem, lá vae Africa embuçada

            No seu branco albornoz!

 

Não vêem que o deserto é o meu sudario?

E o silencio campeia solitario

            Por sobre o peito meu?

Lá no solo onde o cardo apenas medra,

Boceja o Sphynge colossal de pedra

            Fitando o morno céu!

 

De Thebas nas columnas derrocadas

As cegonhas espiam debruçadas

            O horizonte sem fim:

Onde branqueja a caravana errante

E o camello monotono, arquejante

            Que desce de Ephraim.

 

Não basta inda de dôr, oh Deus terrivel?

É pois teu peito eterno inexhaurivel

            De vingança e rancor?

E o que é que fiz, Senhor? que torvo crime

Eu commetti jamais que assim me opprime

            Teu gladio vingador?

........................................................

Foi depois do diluvio... um viajante

Negro, sombrio, pallido, arquejante

            Descia do Ararat:

E eu disse ao peregrino fulminado:

Chám, sê meu esposo bem amado,

            Serei tua Eloah!

 

Desde esse dia o vento da desgraça

Por meus cabellos ululando passa

            O anathema cruel!

As tribus erram do areial nas vagas,

E o nomade faminto corta as plagas

            No rapido corcel!

 

Vi a sciencia desertar do Egypto...

Vi meu povo seguir, judeu maldicto.

            O trilho da perdição!

Depois vi minha prole desgraçada

Pelas garras da Europa arrebatada,

            Amestrado falcão!

 

Christo! em balde morreste sobre um monte!

Teu sangue não lavou de minha fronte

            A mancha original!

Ainda hoje são, por fado adverso,

Meus filhos, alimaria do universo,

            Eu, pasto universal!

 

Hoje em meu sangue a America se nutre,

Condor que transformara-se em abutre

            Ave da escravidão!

Ella juntou-se ás mais, irmã traidora,

Qual de José os vis irmãos outr'ora

            Venderam seu irmão!

 

Basta, Senhor! de teu potente braço

Role atravez dos astros e do espaço

            Perdão p'ra os crimes meus!

Ha dous mil annos te mandei meu grito,

Escuta o brado meu lá do infinito

            Meu Deus, Senhor, meu Deus!

A. de Castro Alves

 


Imagem: reprodução parcial da publicação original

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