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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [32]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                            NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[32] A escopeta

Armas bandeirantes - Os velhos dicionaristas e a escopeta - Como funcionava esta arma - Uma criação do "Gran Capitán" e a invenção de um relojoeiro alemão - Armas de fuzil e armas de mecha - A escopeta, o trabuco e o bacamarte

ercorrendo-se os inventários e testamentos seiscentistas, os espíritos curiosos são levados a indagar de que forma se armavam os audaciosos sertanistas para enfrentar o íncola feroz no recesso das matas ou o castelhano astuto que se alapardava nas reduções jesuíticas.

Cingindo-nos exclusivamente à primeira metade do século XVII, quando o bandeirismo se caracterizou pela audácia e ímpeto irreprimíveis, vamos encontrar nas mãos dos irrequietos homens do planalto os mais variados tipos de armas, desde as brancas - espadas, adagas, lanças, machetes e terçados - até as de fogo - espingardas, bacamartes, clavinas, mosquetes, arcabuzes, pistolas e escopetas.

Não falemos nas armas defensivas, como as rodelas, as "armas de algodão" e as "couras", de que nos ocupamos em outro lugar deste livro. O que nos interessa agora, a nós que vivemos a esmiuçar a vida íntima dos bandeirantes - pois desejamos que eles saiam da penumbra lendária em que têm vivido e surjam à luz da realidade como seres humanos que sempre foram, com todas as suas virtudes e todos os seus defeitos - o que nos interessa agora é procurar fazer um pouco de luz sobre a arma preferida dos impetuosos sertanistas - a escopeta.

Antes de tudo, convém acentuar que se enganam os que supõem ser a escopeta um nome genérico dado a todas as armas de fogo nas terras do planalto. Tanto não é assim que, nos seus róis de inventário, os meticulosos avaliadores seiscentistas não costumavam generalizar, dando, ao contrário, os verdadeiros nomes a todas as peças.


Roda de arcabuz com a manivela
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

E os próprios bandeirantes, como é, por exemplo, o caso do capitão João Tenório, especificam muito bem as suas armas de fogo: "uma escopeta de seis palmos, uma escopeta de quatro palmos, uma escopeta oitavada, um arcabus, uma espingarda clavina..." Ou, no inventário de Francisco Pedroso Xavier [1]: "Foram avaliadas quatro escopetas em sua avaliação em vinte mil réis; foi avaliada uma carabina em sua avaliação em seis mil réis..." Ou como em inúmeros outros inventários em que se especificam claramente as várias armas, demonstrando, sem a menor sombra de dúvida, que a escopeta era uma arma diferente das outras então em uso, como o arcabuz, o mosquete, a espingarda, a clavina etc.

Os lexicógrafos antigos não dão, contudo, dessa arma, senão vagas definições, do mais desconcertante laconismo. Rafael Bluteau, no seu precioso "Vocabulário Português e Latino", dos princípios do século XVIII, afirma que a escopeta "é uma arma mais curta e de menor bala que a espingarda e a carabina e de coronha mais curta", enquanto Frei Domingos Vieira nos assegura, apenas, que ela é "uma espingarda mui curta".

Ora, a espingarda era arma de extraordinário comprimento, de transporte dificílimo, e que se disparava com o auxílio de mechas e botafogos. Era um aperfeiçoamento da colubrina e foi a precursora da escopeta. De complicadíssimo manejo, dando um trabalho doido para ser transportada, a espingarda foi, contudo, nos primeiros anos do bandeirismo, a companheira inseparável do paulista.

Eram poucas, porém, e elas só reapareceram, nas mãos bandeirantes, nos fins do século XVII, já muito aperfeiçoadas, "com trombetas e pontos de prata", "miras e guarda-mãos", "fechos de segurilho", rendeduras, soquetes... Era o "fuzil", aparecido pouco tempo antes na Espanha e logo trazido à vila do planalto.

Mas os primeiros cinqüenta anos de bandeirismo são vividos, heroicamente, entre estouros de escopetas e roncos de arcabuzes. E, se o bandeirante, muita vez, preferiu aquelas a estes, foi exclusivamente devido ao seu pequeno tamanho ou, quando o seu tipo não era dos menores, pelo seu pouco peso.

Com efeito. Para que um homem, em plena selva, diante da chuva de flechas desferidas pelos índios, pudesse dar um tiro, era preciso, antes de se armar de pelouros, armar-se de infinita paciência e bom humor. A escopeta era uma arma primitiva e perigosa, de manejo difícil e complicado, quase tão complicado como a colubrina, sua próxima ascendente. "Um êmbolo giratório - diz dom Francisco Barado na sua notável obra "Museu Militar" - al que iba unida una palanca, permitia abrir y cerrar la recámara: este mecanismo estava provisto de fuertes chapas de hierro convenientemente sujetas. El canon era de calibre de catorce adarmes y quatro pies e igual numero de pulgadas de longitud y a el se adataba la recámara, de mayor calibre y diametro que aquel".

A carga era conseguida por meio da mecha enfiada na "serpentina". Ora, para que um bandeirante conseguisse disparar um tiro nesse terrível aparelho, tinha que andar com um candeeiro aceso, o que exigia cuidados alucinantes para que o seu fogo não se comunicasse à pólvora fora da caçoleta.

Na hora H, quando as hordas bárbaras surgiam despejando tempestades de flechas, o bandeirante tinha que pegar no candeeiro, acender a mecha, puxar a "palanca", largar o fogo, firmar a arma no peito, soltar a haste metálica e esperar a explosão da coisa. Nessas operações dramáticas, ia um tempo enorme que o inimigo aproveitava para realizar ofensivas fulminantes, principalmente depois que se habituaram aos assustadores estrondos dessas armas.

Porque uma coisa é certa: o barulho dos tiros produzia, nos índios, um pânico muito maior do que o efeito das balas... Contudo, ainda era a escopeta a arma ideal para os infantes, e o seu aparecimento constituiu, inegavelmente, um grande progresso na indestrutível "arte de matar", pois ela foi, pode-se dizer, a primeira arma de fogo realmente portátil. E o seu aparecimento deve-se ao Gran Capitán.

Quem era o Gran Capitán?

No inventário dos bens deixados por Martim Rodrigues Tenório, após seu falecimento em São Paulo, em 1612, encontra-se entre outros, este livro: "Chronica do Gran Capitão".

Trata-se, sem dúvida alguma, da narração dos feitos e aventuras de Gonçalo Hernandez de Córdova, famoso cabo de guerra espanhol dos fins do século XV e princípios do XVI, capitão que teve uma existência fundamente marcada por lances épicos não só na Península Ibérica, mas até mesmo nos campos da África, França e Itália, tendo chegado, durante dois anos, a ser rei de Nápoles. Foi ele o criador do exército espanhol e - o que mais nos interessa neste momento - foi ele quem teve a idéia de dotar esse exército com uma arma portátil - a escopeta.

Essa arma que, como dissemos, era um aperfeiçoamento da chamada "espingarda", surgiu como uma miniatura do "chioppo" italiano, mais ou menos portátil porque, para dispará-lo, se faziam necessários dois homens - um para segurá-lo e outro para meter-lhe fogo na mecha e ajudar o companheiro a agüentar o coice.


Bandeirante com escopeta
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

A escopeta, contudo, apesar de um sem-número de aperfeiçoamentos, tinha apenas sobre suas antecessoras a vantagem de ser pequena. Tanto que, algum tempo depois, tendo surgido o arcabuz de roda - graças à engenhosa invenção de um relojoeiro de Nürnberg [2] que conseguiu substituir a mecha por uma corda de relógio - os bandeirantes, em sua maioria, continuaram preferindo a velha escopeta, com seu incômodo e perigoso candeeiro e o seu complicado estopim. Isso porque, além de outros desazos, o arcabuz de roda constituía um perigo em tempo de chuva. O bandeirante se embrenhava nas selvas, afrontando todas as intempéries e, no momento crítico, quando era atacado por tribos ferozes, agarrava na chave, dava corda na roda mas a "bicha" não se movia; estava enferrujada. E aí, então, é que surgia mesmo o drama do "morro ou mato"...

Tem-se feito, vezes sem conta, uma grande confusão entre a escopeta, o trabuco, e o bacamarte. O trabuco italiano, curto e de boca de sino, muito semelhante à escopeta, foi um sucessor do bacamarte, de que encontramos alguns exemplares em São Paulo do século XVII. Mas não tinha nada que ver com a escopeta, apesar de o Larousse insistir nessa confusão, pois o trabuco não tinha mecha, mas fuzil, e não se carregava pela caçoleta, mas pela boca.

Apesar, contudo, de suas inúmeras imperfeições, mau grado o perigo que havia em manejá-la, a escopeta foi, durante os anos mais intensos do bandeirismo, a companheira inseparável do paulista. Foi com os seus estrondos e as suas descargas de pelouros que o bandeirante, carregando seu candeeirinho, pondo fogo na mecha e varrendo o inimigo, conseguiu vencer o Sertão e salvar da destruição aquele vilarejo que se chamou São Paulo do Campo de Piratininga e que atravessou os séculos para chegar a isso que está aí: uma cidade que é quase um mundo.


Serpentina com a mecha. Ao alto, um botafogo
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] "Inv. e test.", XX, pág. 299.


[2] Alfeo Clavarino, "Armi e Tiro", Turim, 1887.


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