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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [08]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                           NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[08] Vendas e lojas

Comércio ambulante e comércio fixo - Exigências da Câmara - Fiadores, afiladores e almotacéis - Fraudes nos pesos e medidas - Armarinhos e alfaiatarias - O preço das roupas e tecidos - Um dândi - A Procissão do Corpo de Deus 

o iniciar-se o século, não há na vida ainda comércio varejista fixo.

Quem acode à necessidades do povoado com drogas de fora da terra são os ambulantes forasteiros que, de vez em quando, sobem a serra e vêm negociar no planalto.

Antes, porém, em 1599, a Câmara, reconhecendo que "hera necesario q. haja nesta villa q. venda couzas de comer e beber q. viva por isso e tenhão os forasteiros honde persendissem de comer" concedem licença a Marco Lopes para que se estabeleça com seu restaurante, onde venderá carne, beijus, farinhas e outras coisas...

O exemplo encontra logo imitadores, de tal sorte que, alguns anos depois, a vila apresenta quantidade apreciável de vendas, lógeas e tendas, com negociantes regularmente registrados na Câmara, cada qual com o seu fiador juramentado e cada ramo de negócio sob a fiscalização de um juiz especializado.

A instalação dessas pequenas casas de comércio não se faz arbitrariamente, nem se admite o exercício de uma função por quem não possua habilitações profissionais para isso, nem idoneidade moral para exercê-la. Assim, logo que determinado indivíduo comparece à Câmara a fim de obter licença para instalar uma loja, surge o primeiro representante dos poderes públicos na pessoa do juiz do ofício, incumbido de conhecer até onde vão as habilidades profissionais do pretendente.

Se o homem passa incólume por essa primeira prova, vai entender-se com o Fisco para receber seu regimento e pagar as taxas devidas ao erário municipal. Depois, apresenta em Câmara o seu fiador, o qual também presta juramento, responsabilizando-se pelas transações comerciais do candidato. E, satisfeitas essas exigências, está o homem, finalmente, autorizado a ter lógea ou tenda aberta.


Pesos
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

É claro que não param aí as suas atribulações com os poderes municipais. O lojista, logo que se instala, recebe a visita do almotacel que vai examinar seus pesos ou medidas e impor-lhe a tabela de preços, para que não seja em prejuízo deste povo, sendo, depois disso, constantemente visitado pelo afilador de pesos e medidas, benemérito funcionário incumbido de zelar pela perfeição das varas, côvados, arráteis, onças e oitavas.

Todas as providências são tomadas para que as coisas corram assim.

A verdade, contudo, é que, quase sempre, as providências falham e o povo vai sentindo, pouco a pouco, que o enganam nos pesos e medidas ou que o exploram no preço dos gêneros. Premida pelos clamores da opinião pública, a Câmara, só então, percebe que não há mais almotacéis na terra "porcoanto herão acabados os que serviam para servirem dois mezes". E, enquanto não se elegem outros, determina a Câmara que sejam notificados "todos os vendeiros que vendem couzas de comer e beber serem allmotassado pelo juiz ou por quem para isso tiver poder"...

O bem comum, tão do agrado dos senhores da Câmara, não é em verdade uma expressão sem sentido prático, pois o comércio na vila é exercido sob as vistas severas dos senhores edis que, a todo o momento, em toda a parte, acodem com suas providências - exigindo o pagamento das taxas, impondo tabelas de preços, impedindo a fraude nos pesos e medidas...

Porque a verdade é que, mal os senhores oficiais se distraem, lojistas e mercadores tratam de encolher o tamanho dos côvados e varas, de fraudar o peso das onças e oitavas ou de adulterar os gêneros alimentícios. A "arte de furtar" é muito mais velha que o padre Vieira e os artistas que a cultivam assumem os mais variados aspectos, até mesmo o de vítimas indefesas.

A Câmara, contudo, não lhes dá tréguas, pois vemo-la, a todo o momento, agir contra os lojistas que vendem vinho ruim e caro, contra os que vendem carne de porco a mais de duas patacas a arroba, e o arrátel de cera a mais de meio tostão, e a farinha de trigo a mais de doze vinténs o alqueire, e as fitas a mais de cinqüenta réis a vara...


Sapateiro
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Entremos numa loja.

O que se vende aqui são fazendas, aos côvados e à varas: tecidos de seda, de lã e de algodão - da bombazina, o calassol, a barregana até as fazendas mais rústicas, o canequim, a raxa, o picote e a estamenha. Pelas gavetas e pelas caixas, oitavas de retrós, dúzias de atacadas, varas de fitas, negalhos de linhas de cores, alfinetes, botões, colchetes, tesouras, agulhas. E, de mistura, onças de aspirina, quartas de caparrosa, onças de cravo, arráteis de pedra-ume, de verdete, quartas de blau, resmas e papel...

E, se vamos encontrar algo surpreendente nesta loja, não é o preço de suas fazendas, mas o preço do papel. Sendo artigo de importação e de consumo naturalmente muito reduzido, supõe-se que o papel custe um dinheirão.

Engano, porém. Parece não haver na terra coisa mais barata que o papel, mesmo que se trate de simples papel de embrulho. Apenas isto: 1$280 a resma! Isto é, 50 folhas por 128 réis!

Quanto às fazendas e tecidos, vamos encontrar a baeta a 300 réis o côvado; a perpetuana a 640 réis; o tafetá a 640 réis; o bocaxim a 160 réis; o linho a 320 réis a vara; as fitas a 50 réis e botões a 3 vinténs a dúzia...

Mas, quem sai dessa loja, com suas compras, entra noutra logo adiante - na tenda do alfaiate. E, aí, verificamos que esses prestimosos artífices se contentam com muito pouco. Paulo da Costa, que é o alfaiate da moda em 1628 - pois é quem corta as belas roupas de Matias de Oliveira - executa para este, em várias épocas, inúmeros serviços pelos quais podemos ter uma idéia, senão da presteza, pelo menos da modicidade dos preços. Paulo da Costa não fornece os tecidos; apenas, como tantos outros, cobra o feitio. E os preços da mão-de-obra desse modesto artista da tesoura, segundo uma conta sua em poder de Matias de Oliveira, são os seguintes:

Uma roupeta de baeta, 320 réis; um ferragoulo, 320 réis; calções de perpetuana, 320 réis; gibão pespontado 600 réis; outro gibão pespontado custa, não se sabe por que, 300 réis; outra roupeta fica em 400 réis.

Paulo da Costa, além do feitio, só fornece o forro - que, então, tem o nome de bocaxim... É o que figura na conta:

"Mais o bocaxim, cento e vinte réis".

Todavia, Paulo da Costa não se contenta apenas com essas funções porque, além de alfaiate para homens, figura na vila como perito "tailleur pour dames" - na expressão elegante dos nossos tempos. E, como costureiro, Paulo não difere do alfaiate. Assim como corta roupetas, calções, ferragoulos e gibões por 320 réis, talha véstias, corpinhos e mantos, pelos mesmos 320 réis. Só carrega um pouco quando se trata de vestidos de damasquilho, que custam 600 réis, e saias de portalegre que ele não deixa por menos de 400 réis.

Em todo o caso, não se pode negar que o homem é barateiro...


Pesos
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Isso, contudo, não quer dizer que as roupas masculinas e as toilettes das senhoras valham pouco mais do que nada. A senhora Messias Bicudo, por exemplo, possui uma vasquinha - saia de grande roda, pregueada junto à cintura - uma simples vasquinha de cetim preto adamascado com saio de melcochado preto, avaliada pela exorbitância de 20 mil réis. Essa espantosa saia deve ser uma obra-prima de confecção e luxo, pois um traje masculino custa muito menos. Francisco Cubas Preto, que deve ser um dos dândis da vila, possui um vestido de homem a saber casaca forrada de tafetá acamurçado com abotoadura de prata e cuecas do mesmo tafetá e calção forrado de bergantil com suas guarnições e fitarias. É, como se vê, uma toilette luxuosa e complicada. E quanto custa: Apenas isto: 8$500.

É verdade que essas "roupas de dias de festa" não se encontram à venda nas lojas. Costumam vir do Reino ou da Corte, por encomenda ou pelos forasteiros. Vasquinhas de gorgorão, saios de bombazina, corpinhos de catassol, capilhas de catalufa, enfim, peças de toilette executadas nesses tecidos caros, só os privilegiados pela fortuna podem possuir. A arraia miúda contenta-se com panos mais modestos - a raxeta, a tafieira, a sarja, a sarjeta, o picote, a estamenha... E os índios, mais felizes que os outros, arranjam-se muito bem com suas tangas de estamenha ou de penas.

Há quem suponha que, em contato com os brancos, os indígenas assimilem seus costumes e tenham abandonado suas tangas e cocares de penas vistosas. É possível, embora não seja provável. O que, todavia, não sofre dúvidas é que os brancos, sempre que podem, assimilam os costumes do íncola, como, por exemplo, é o caso da esposa de João Tenório que possui, naturalmente para fazer inveja às amigas nos dias de festa, uma deslumbrante mantilha de penas de cores com seu topete de penas...

Acontece que, certas vezes, os senhores negociantes desejam acumular funções - e funções absolutamente díspares. É proibido. A Câmara não deixa. Quando surgem casos desse gênero, os senhores oficiais providenciam para que não aconteça o que se deu em 1638, quando alfaiates e sapateiros começaram a negociar, simultaneamente, com "secos e molhados". A Câmara reuniu-se imediatamente e tomou medidas severas para que "sapateiros e alfaiates usassem de seus ofícios e não de vendedeiros e que houvesse vendeiros e taberneiros soparados".

O domínio da Câmara sobre o comércio é absoluto, pois ninguém discute as ordens dos senhores oficiais, nem mesmo quando estes baixam determinações deste gênero:


"E pelo procurador foi requerido mandarem fixar quartel para que os officiais macanicos[1] acudissem todos con suas insignias á procissão de corpo de Deus... e os ditos officiais assim mandaram".

***

E, como assim mandaram é de crer que, nas procissões de Corpo de Deus, compareçam sempre delegações de alfaiates, carpinteiros, serralheiros, tecelões, cada qual com o respectivo estandarte, numa demonstração cívico-religiosa daquilo que, alguns séculos mais tarde, iria chamar-se "parada trabalhista" ou "desfile de sindicatos"...


Castiçal de latão
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] "Oficiais mecânicos" são os indivíduos que exercem ofícios - alfaiates, ferreiros, barbeiros etc. Diferenciam-se, assim, dos oficiais públicos, isto é, oficiais da Justiça, da Câmara etc.


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