Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0355e.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 05/06/07 16:25:53
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - REI PAULISTA
A história, 3 séculos depois (3)

Leva para a página anterior
Em fevereiro de 1615, o paulistano Amador Bueno da Ribeira desceu a Serra do Mar com armas e um exército para ajudar os moradores de Santos e São Vicente a combater os piratas holandeses comandados por Joris van Spielbergen. Na época (1580 a 1640), Portugal estava sob o domínio espanhol, e um dos episódios marcantes foi quando um grupo de paulistas não quis retornar ao domínio português, proclamando Amador Bueno como seu rei, o que ele não aceitou.

Três séculos depois, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo publicou, em 1941, uma plaquette, em mil exemplares, dedicada "A Amador Bueno no Tricentenário de Sua Aclamação como Rei de São Paulo - 1641-1941", a seguir transcrita (com grafia atualizada):


Assinaturas de Amador Bueno e de dois de seus filhos
Imagens publicadas com o texto na obra do IHGSP

A "lenda" de Amador Bueno

Afonso de E. Taunay

À objurgatória com que Cândido Mendes agrediu frei Gaspar da Madre de Deus [1] seguiu-se, anos mais tarde, a de Moreira de Azevedo [2]. Acompanhando as inspirações do ilustre antecessor, de rijo atacou o escritor fluminense ao beneditino e a Pedro Taques, pretendendo destruir o que intitulou A Lenda de Amador Bueno.

Partiu, porém, de premissas falsas ao asseverar que o senador maranhense já provara "não serem exatos no que escreveram de João Ramalho e Tibiriçá" os dois cronistas de São Paulo. Muito mais sensato e prudente, no entanto, seria avançar que as hipóteses do eminente Cândido Mendes, e a sua argumentação, apenas se revestiam do aspecto da verossimilhança, pois, com efeito, nenhuma prova cabal pudera ele aduzir da falsidade daqueles a quem detratara.

Entendeu Moreira de Azevedo propícia ocasião para "faire aussi son petit Niebuhr". Grata e elegante tarefa! Muito pouco resta para o domínio da lenda na História do Brasil, exígua e despida de grandes lances. Já Varnhagen pulverizara a de Caramuru e Paraguassu, afilhados dos reis Cristianíssimos. Assestou, pois, as suas baterias o estimável autor d'O Rio de Janeiro contra Amador Bueno, que lhe pareceu sumamente expugnável, coisa de quatro ou seis tiras de papel. De um fato simples, tão verossímil e possível de se ter passado como esse da aclamação de Amador, quiz fazer monstruosa deturpação da Verdade Histórica, com V grande e H maiúsculo, obra da vaidade incomensurável, da descabelada imaginativa, do bairrismo super-exaltado dos dois cronistas.

Tudo isto transeat; injustíssima, porém, a pecha de falsificadores de documentos irrogada aos dois escritores setecentistas de S. Paulo. E assim ab ovo decretou que a famosa patente de capitão passada a Manuel Bueno da Fonseca pelo governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Menezes, base de toda a documentação do beneditino e do genealogista, fora escandalosamente manipulada, se não, mais escandalosamente ainda, inventada.

Como argumento insofismável fizera copiar do arquivo da Câmara de S. Paulo - de S. Paulo, note-se bem - no livro de Registros "que principiou em 1684", a fol. 125, o malsinado documento, vibrando de indignado, quando o arquivista lhe comunicara não haver encontrado vestígio deste ato. Que maior prova do embuste do que esta? a citação feita por frei Gaspar do livro de 1684 às folhas citadas contém registro diferente do que ele refere. Vê-se, pois, comenta triunfante, que não foi o cronista exato no documento que exibiu. Proh pudor! não teria deixado de acrescentar o retificador, caso fosse o conselheiro Acácio.

Perfídia, ou mera, e aliás grave, distração, inspiraria o escritor ao traçar estas linhas? Cometera, no entanto, monstruoso engano.

Não se dera ao trabalho de prestar a atenção à mais elementar indicação das fontes documentárias do cronista, pois quisera encontrar em S. Paulo o que ali jamais existira. A patente de Manuel Bueno da Fonseca achava-se registrada, diz-nos com toda a clareza o beneditino (Memórias, 1ª edição, nota 2ª, pág. 134) no Livro de Registros que principiou em 1684, a fol. 125, no Arquivo da Câmara de S. Vicente!!

Triunfo completo para o nosso Niebuhr brasílico, que para mero desencargo de consciência ainda alega pequenas buscas realizadas sempre no arquivo da Câmara de S. Paulo, a fim de poder ex-cathedra e ex-corde fulminar esta sentença: "Assim, não há documento algum que prove a aclamação e recusa da coroa por Amador Bueno, sendo este fato apenas uma tradição".

Tal prurido em expurgar a História brasileira da pretensa lenda de Amador Bueno, filho da precipitação leviana, do juízo malévolo e preconcebido, há de custar-lhe à reputação de historiógrafo bem grave nódoa, porém.

Vendo-se desmentido agora, e formalmente, pela voz do documento que declarou forjado, dirão os observadores imparciais que ao acusador de frei Gaspar bem se pode atribuir o baldão arrasador lançado pelo velho Melo Morais à sua geração de historiadores: de que jamais de leve sequer perscrutara os arcanos dos Arquivos Nacionais.

Verdadeiro horror consagrava ao contato com os papéis velhos, à "poeira dos séculos", únicas fontes da verdade histórica. Historiadores à feição de certo conselheiro fariam o histórico dos cercos como o abade Vertot.

Se o cronista vicentino e se Pedro Taques [3] do modo mais formal declaram que a patente fora passada por Artur de Sá e Menezes, nada mais elementar, como justiça e como critério, do que a supor no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, em algum livro de registro daquele notável governador do Rio de Janeiro, a existência do original trasladado para outro livro idêntico da Câmara de S. Vicente, apontado pelos escritores desmentidos. Para tanto, era preciso, porém, ir ao Arquivo e remexer papéis velhos. Muito mais fácil declarar, pura e simplesmente, "demolida" a reputação do frade e do genealogista, com a simples afirmação de que haviam sido os autores de colossal invencionice.

E, no entanto, bem à mão se achava a defesa dos caluniados: no livro VII da coleção Governadores do Rio de Janeiro, a fls. 82 [4] em diante se encontra o documento reabilitador, que mais abaixo, na íntegra, transcrevemos, dele havendo graciosa cópia, graças à obsequiosidade do nosso erudito amigo, tão amável quanto versado na História Nacional, dr. Eduardo Marques Peixoto.

Não é nossa intenção discutir detidamente as opiniões e afirmações de Moreira de Azevedo; apenas aqui desejamos oferecer aos estudiosos da História do Brasil o ato reivindicador das acusações aos dois cronistas, destituídas de base e fundamento, levianas, malévolas e, sobretudo, clamorosamente injustas:

"PATENTE DE CAPITÃO GOVERNADOR DA COMPANHIA DE REFORMADOS A MANUEL BUENO DA FONSECA [5].

"Arthur de Sáa e Menezes. Faço saber aos que esta minha Carta patente virem que tendo respeito ao mto. q. convem ao serviço de sua Magestade, que Ds. gde. e ao bem Cumum destes Povos de São Paulo alistaremos todos homens q. ha Capazes de pegarem em armas pª. o q. formei dous terços de auxiliares e ordenança e porq. a principal gente está por alistar q. aser os officiaes de guerra Reformados, Juizes e Vereadores q. tem servido na Camara e porq. estes são os principaes pª. qualquer incidente suceda, porq. de todos fio o brasão conforme a sua nobreza e pessoas, e pª. governar esta infanteria Se necessita de Capitão de grande talento, experiencia, Valor e Respeito que com a sua actividade e dispozição sobre com acerto que se espera e vendo eu os Serviços q. tem feito Manoel Bueno da Fonseca, alem de ser hua das principaes pessoas das familias de São Paulo e ter servido a Sua Magestade q. Ds. Gde. nos postos de Alferes de Infantaria da ordenança Capitão e Sargento mór Com muita aceitação e zello, e sendo Juiz ordinario na Camara desta Villa, Sabendo as ordens q. Sua Magestade q. Ds. Gde. tinha mandado Logo pos em execução a dª. baixa, Sendo Contra a vontade de muitos, malquistandose e pondose em Risco de perder a Vida no que mostrou Com dilliberada Resolução, mostrando o zello de leal vaçallo por dar a verdadeira Execução ás Reais Ordens E na occasião q. se lhe encarregou arecadação do Donativo Real foi á Villa de Jundiahy arrecadar o D.º Donativo, Como consta dos seus papeis e quando não bastavão estes serviços era merecedor de grandes Cargos, por Ser netto de Amador Bueno, q. Sendo chamado pello Povo para o acclamarem Rey obrando Como Leal e verdadeiro vaçallo com evidente perigo de sua Vida, Exclamou dizendo que vivesse El-Rey Dom João o quarto se Rey e senhor q. pela fidillidade q. devia de vaçallo queria morrer nessa defença e respeitando eu neste tão Louvavel Vaçallo digno de grande remuneração Hey por bem nomear, e eleger, como pella prezente faço nomeo, elejo ao d.º Manoel Bueno da Fonseca por Capitão Governador da Comp.ª dos Reformados, Juizes e vereadores q. tem servido na Camara e servirá o d.º posto enquanto Sua Magestade q. Ds. Gde. o ouver assim por bem en tudo de q. Encarregado dará inteira satisfação, Como delle espero, e gozará com o d.º posto de todas as honras e previlegios, Liberdades, e yzenções que em rezão delle lhe pertencerem e será yzento dos terços, e só se agregara na occasião que por mim ou o Capitam lhe for ordenado, e ordenado a todos os officiaes mayores de guerra e justiça tenhão, honrem e estimem e conheção ao d.º Manoel Bueno da Fonseca por Capitão Governador da Comp.ª dos Reformados, Juizes, Vereadores q. tem servido na Camara, e ordeno a todos os officiais e soldados da sua Comp.ª lhe obedeção como são obrigados, guardando suas ordens por escripto, e de palavra e jurará em minhas mãos de bem e verdadeiramente comprir Com as obrigações do seu posto para firmeza do q. lhe mandei passar a prezente sob meu signal e sello de minhas armas q. se comprirá como nella se contem, Registandosse nesta secretaria em Livros da Camera da Capitania. Dada nesta Villa de São Paulo aos tres dias do mez de Março de mil e settecentos. O Secretario Joseph Rebello Perdigão o escrevi. - Arthur de Saa e Menezes. - Lugar do sello. - Carta patente por q. V. S. faz mce. nomear no posto de Capitão, governador da Companhia dos Reformados, Juizes, Vereadores que servirão na Camera a Manoel Bueno da Fonseca pellas rasões nella declaradas. Pª. V. Sª. Ver.".

Dos mais interessantes é o cotejo do texto da patente e o do autor das Memorias:

Texto de
Frei Gaspar
E quando não bastavão estes serviços era merecedor de grandes cargos, por ser neto de Amador Bueno, que sendo chamado pelo Povo para o acclamarem Rei, obrando como leal e verdadeiro Vassalo, com evidente perigo de sua vida, "clamou", dizendo que vivesse El Rey Dom João o IV seu Rey, e Senhor, e que pela Fidelidade que devia de Vassalo queria morrer nesta defensa; e respeitando eu tão louvável        Vassalo, digno de grande remuneração, hei por bem nomear...
Texto do documento do
Arquivo Nacional
E quando não bastavão estes serviços era merecedor de grandes cargos por Ser netto de Amador Bueno, q. sendo chamado pelo Povo para o acclamarem Rey, obrando como Leal e verdadeiro vaçalo, com evidente perigo de sua Vida, "Exclamou" dizendo q. vivesse El Rey Dom João o IV seu Rey e Senhor   q. pella fidillidade p. devia de         vaçalo queria morrer nessa defença; e respeitando eu neste tão louvavel Vaçallo digno de grande remuneração, Hey por bem nomear...

Mais favorável não pode ser o confronto; inequivocamente demonstra a escrupulosa fidelidade de frei Gaspar.

Pondo de lado as divergências meramente ortográficas, sem importância alguma, notamos num dos documentos clamou e noutro exclamou, há no original um neste que não existe no de São Vicente, e só...

Raramente se cometeu tão séria injustiça quanto a Moreira de Azevedo em relação ao cronista vicentino. Lavrou o decreto condenatório do beneditino, a "demolição" da "lenda" de Amador Bueno, e as conseqüências da tão iníqua sentença, revestida das aparências de verdade, não se fizeram esperar. Assim, pois, estribado no que escrevera o autor d'O Rio de Janeiro, avança Sílvio Romero na História da Literatura Brasileira: "Investigações recentes provaram o exagerado do caso, reduziram-no a proporções mais modestas".

Protestando contra o injustificável emprego do substantivo inicial, e do verbo de que é sujeito, entendemos que o respeito às fontes históricas impõe a substituição da frase por outra: "Recentes hipóteses e meras conjecturas, sem fundamento documentário algum, pretendem demonstrar o exagerado do caso, reduzindo-o a proporções mais modestas."

Esta é a verdadeira lição que se depreende do exame das alegações de Moreira de Azevedo, que, longe de conseguir amesquinhar o apreço em que a obra de frei Gaspar deve ser tida, proporcionou retumbante ensejo para que se evidenciasse quão grande foi o respeito pelo cronista consagrado à exatidão dos documentos transcritos para o alicerçamento das suas afirmações leais.


Mosteiro e Abadia de São Bento em 1640
Aclamação de Amador Bueno - Quadro de Oscar Pereira da Silva
Imagem publicada com o texto na obra do IHGSP


Notas de Rodapé:

[1 ] Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 40 parte II.

[2] Idem, tomo 50, parte III, a páginas 1-10, 1887.

[3] "A substância do referido caso se confirma com as palavras de Arthur de Sá Menezes, capitão general da Repartição do Sul, e governador da Companhia dos Oficiais de guerra reformados, juízes e vereadores, que tivessem servido na Câmara de S. Paulo, por ele passada a Manuel Bueno da Fonseca, e datada aos 3 de Março de 1700". (Memorias, 1ª edição, pág. 1.134). "Este fato da intentada aclamação de rei, que não aceitou Amador Bueno, se lê no 'Archivo' da Câmara da Vila, Capital de S. Vicente, no livro grande de registros, tit. 1684, fls. 125 até 126. No mesmo 'Archivo' livro de 1684 até 1702, fls. 125, se acha a patente de Arthur de Sá e Manuel Bueno da Fonseca em que se declara a lealdade de Amador Bueno, sendo aclamado pelo povo". (Nobiliarchia Paulistana. Revista do Instituto Histórico Brasileiro, tomo 32, página 182).

[4] Anais do Arquivo Nacional, tomo XI, página 91.

[5] O grifo é nosso. (N.E.: de Taunay).

Leva para a página seguinte da série