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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (18)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

SEGUNDA PARTE - Heróica

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Justiça bandeirante

Mas então os homens estão descontentes? - perguntou Paes Leme, descobrindo a cabeça grande, onde os cabelos uivos empastavam nas têmporas.

Mathias Cardoso calou-se. No centro do acampamento estalavam achas num fogo vivo. E, sob as árvores, vultos escuros de barracas projetavam no ar limpo formas irregulares e fantásticas.

Era a Bandeira que dormia. Mais alta e mais larga, coberta por um toldo de palmas e fechada de couros, a barraca de Paes Leme se elevava na penumbra. Na sombra, num calor de respirações adormecidas, estirados em macas, enleados em cobrejões de pano piloto, com os pés sangrentos metidos nas alparcas de sola grossa, os homens da Bandeira ressonavam.

Há três anos rompiam mato. Há três anos, ao repicar dos sinos do Colégio, naquela manhã de maio, saíram de Piratininga trezentos homens de Bandeira, armados de escopetas e de facões de mato.

Depois, foi a penetração lenta pela mata espessa: atoleiros atravessados a vau, rios passados a nado, abismos atravessados à força de cordas. Nada os detinha nesta arrancada magnífica: nem flecha de bugre, nem garra de onça, nem dente de cobra.

Febres, picadas, canseiras, dizimavam a coluna heróica. Dos trezentos homens que partiram, apenas restavam cento e vinte. Das seiscentas arrobas de carne de porco, trezentos alqueires de feijão, e das cem cargas de biscoitos que trouxeram de Piratininga amarrados em fardos de lona ou guardados em bruacas de couros, pouco restava.

Já se iam, aos pedaços, os restos das rodelas de couro cru que defendiam os seus corpos contra a fera, e os bernéus de baeta forte esfarrapavam-se em tiras. A chuva, o sol, a lama, os espinhos, a luta febril contra essa natureza formidável, tinham posto quase nus esses restos humanos.

Vadeando rios, rompendo matos por entre cipós, já, mais de cem de seus homens foram ficando sob cruzes de pau nas macegas profundas. Vinte, trinta, cinqüenta vezes, tocara a buzina rija o toque de alarme. De todos os lados rompiam flechas, lanças apontavam de entre folhas, e ao rufo contínuo dos atambores  estouravam as escopetas. Era a luta incerta e longa que, sem descontinuar, mantinham contra o sertão bruto: a cobra rastejante e venenosa, o espinho agudo e a onça violenta e sutil.

E a Bandeira avançava sempre. Às vezes reuniam-se os homens de cabeça descoberta, diante de uma maca feita de troncos onde jazia um corpo; era mais um, que a febre ou o veneno prostrara. Um responso, algumas enxadas na terra dura, uma cruz amarrada em cipós, e a Bandeira seguia...

***

- Os homens estão resolvidos a não dar mais nenhum passo avante!

- Covardes! - rugiu Fernão -, esses perros sabiam que a viagem era longa e arriscada era a empresa!

- Os homens estão desanimados, falou Mathias. Há três anos, há três longos anos, saímos de Piratininga, sob vossa promessa que em breve encontraríamos esmeraldas que dariam como quinhão de cada um, pedras que valeriam para mais de cinco mil cruzados em ouro. E foi assim que todos nós largamos as nossas enxadas, as nossas hortas, os nossos roçados, a nossa cama, a nossa mulher e o nosso filho, para nos meter neste sertão incerto, buscando essas pedras incertas. Vós afirmastes que el-rei prometera mercês e tenças aos homens da Bandeira. E vós prometestes essas pedras verdes ocultas nesta mata verde em quantia de encher um surrão de côvado! Por isso, há mais de três anos trilhamos por entre a mata densa em busca dessas pedras desejadas. Entretanto, até agora, o que viram os nossos olhos? Setas envenenadas zunindo no ar, patas de onça fendendo a treva, cruzes nas sepulturas sobre os corpos que ficaram, e a grande massa verde da mata virgem.

Mathias Cardoso calara-se. Lá fora, perros ladravam dentro da treva e, entre as barracas alinhadas sob as árvores, uma grande chama de fogueira lambia o ar.

Fernão Paes cofiava a barba ruiva, que fios brancos já encaneciam:

- Então os homens levantam-se? - perguntou.

- Saiba que sim. Os homens descontentes tramam contra a vossa vida!

Paes Leme insensivelmente apertou o punho da espada de tigela:

- Por São Tiago, que eu faria balouçar esganado na ponta dum baraço o chefe deste motim!

Mathias Cardoso sorriu:

- Não jureis, senhor Fernão! Não jureis a esmo...

Os olhos de Fernão chamejaram de uma imensa cólera sob a chama mortiça de azeite:

- Assim vo-lo juro que apertaria a sua gorja vil para que mais vilezas não tramasse!

E o seu punho grosso apertava no ar uma gorja imaginária...

Mathias Cardoso sorria, ainda incrédulo:

- Diz Vossa Mercê que enforcava a quem assim tramasse?

Paes Leme alçou a mão como na assembléia da Câmara de Piratininga, quando falava entre os homens bons:

- Ouvi, Mathias Cardoso: há muito que me conheceis, a mim e os de minha estirpe; por isso sabeis que nunca os de meu sangue costumam afirmar e nem proferir promessas vãs. Pois agora eu vos juro sobre esta cruz, que mandarei enforcar, seja quem for, o chefe deste motim, seja ele homem d'armas, peça ou mameluco, no galho mais forte e mais próximo.

E a sua mão peluda erguia alto uma cruz peitoral que brilhava às chamas de azeite.

- Seja quem for, vós o afirmastes? - perguntou Mathias Cardoso.

- Seja quem for! - ecoou Fernão.

- Mesmo gente de vosso sangue? - ainda perguntou Mathias.

O rosto duro de Fernão, mais duro se tornou na penumbra.

- Então que quer Vossa Mercê dizer? Eu aqui, dentre essa gente, do meu sangue, só tenho os meus dois filhos: Garcia que é um homem no brio e na coragem, incapaz de vilania, e José que eu criei com amor e com amor eu eduquei na lealdade e no sacrifício.

Mathias Cardoso ainda sorriu:

- Pois saiba Vossa Mercê que é gente de seu sangue e muito chegado quem assim trama!

Paes Leme ergueu-se violentamente. Sua barba ruiva flamejava, e dentre as sobrancelhas espessas como sarças, os olhos faiscavam.

- Dizei então, gritou ele, o nome do vilão de tão negra vilta para que justiça se lhe faça sem tardança!

Mathias Cardoso levantara-se também, e no seu rosto trigueiro transparecia lealdade e firmeza. E, olhando firme para Fernão, falou:

- Pois saiba que o vilão que trama contra vossa vida é o vosso filho José!

Fernão recuou, como se toda a carga de chumbo de uma escopeta lhe estourasse na cara, e uma lividez de velho marfim descoloriu a sua face requeimada.

- Vós dizeis, José, o meu filho?

- Sim, ele mesmo!

Paes Leme, que tirara o largo feltro, enxugava a testa sob os cabelos empastados, disse simplesmente:

- Há de se fazer justiça!

Lá fora estalavam achas nas fogueiras crepitantes...

***

Um movimento desusado agitava o acampamento da Bandeira. Avisados para se reunir diante da barraca grande, os homens confabulavam. Mamelucos de olhos desconfiados cochichavam, sentados sobre bruacas, e a manhã cinzenta arrepiava-se toda de nuvens num prenúncio de tempestade.

Às nove horas, um toque lento de buzina fez ouvir o longo toque de reunir. Na frente da barraca de Paes Leme, num largo aberto, reunia-se a Bandeira. Homens escuros como raízes, donde espreitavam dentre as barbas incultas como erva, olhos que brilhavam como facas, esperavam em fila cerrada.

Outra vez soou longa a buzina. Dentre a barraca grande, acompanhado de seu filho Garcia, mais Borba Gato e Mathias Cardoso, surgiu Paes Leme.

Olhos duros esperavam numa dúvida.

Caminhando a passo no seu porte atlético, Fernão passou pelo meio de seus homens. Depois, alçando a mão, falou:

- Homens, há três anos saímos à busca das pedras verdes. Há três anos que trilhamos este sertão virgem à busca dessas pedras distantes. Juntos resistimos à fome, às febres, à flecha. Nunca um grito de medo saiu de vossas gargantas, nunca uma palavra de desânimo soou de vossas bocas. Assim andamos, assim trilhamos e assim venceremos.

E Fernão fez uma pausa. Depois, continuou mais grave:

- Agora, entretanto, falas chegaram aos meus ouvidos de um rumor de covardia e desânimo. Fernão estendia o braço para a massa escura de homens de cabeça vergada. Mais alto, continuou:

- Aos meus ouvidos chegaram falas que dentre vós há covardes. Assim ouvi que tramais, contra a Empresa, contra mim e contra el-rei. Mas de verdade eu vos digo: que se dentre vós há alguém que não se acha com força ou com ânimo para ir além, ou com bastante covardia para recuar, que recue! Que volte! Aí tem canoas e remos. Que voltem os covardes, que eu entre covardes não quero estar! E a sua mão apontava, longe, a curva do rio que cintilava na luz, ardente.

Depois, mais grave, como se retivesse a custo qualquer coisa de grande que se dilatasse dentro de seu peito, acrescentou:

- Quanto ao chefe deste levante que assim se tramou contra mim e contra el-rei, mesmo sendo sangue de meu sangue, carne de minha carne, pelo foro e mercê concedida por el-rei nesta sua empresa, mando que o enforquem no galho mais próximo com o baraço mais forte. E apontava alto para uma perobeira próxima que se esgalhava na sombra.

Ninguém falava. Um silêncio, em que se ouvia ao longe o martelar de uma araponga, emudecia os homens da Bandeira. Mas todos os olhares fixaram um homem, lívido sob a tez morena, que caíra de joelhos na terra dura, com as duas mãos postas enclavilhadas pedindo graça:

- Perdoa, pai!

Fernão voltara-se: era José, seu filho estremecido, que lhe pedia perdão, ajoelhado.

- Não me chameis pai, vilão traidor!

A seu comando, dois homens da Bandeira seguraram José pelos ombros:

- Enforquem-no!

Um baraço novo foi passado em redor do pescoço de José Paes, que, pálido e de braços encruzados, esperava no claro aberto. Uma ponta de corda foi atirada por cima do galho mais forte da perobeira; um mameluco robusto cavalgou-lhe os ombros e a corda foi puxada por três homens.

A voz grossa de Fernão levantou-se:

- Em nome d'el-rei, que se faça justiça!

Já o corpo balançava no ar. Depois foi um bracejar convulso e um espernear furioso do corpo cavalgado que dançava no ar; aos poucos, os movimentos foram diminuindo, até que ficou hirto na ponta da corda. Da boca escancarada donde escorria uma espuma ensangüentada, pendia a língua roxa...

Dois dias depois, em fila, de bruacas às costas e de escopetas em punho, rumaram em ordem os homens da Bandeira, outra vez pelo sertão adentro, outra vez à busca das pedras verdes...


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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