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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Passeando pelos morros... em 1944

"...vou buscar água. É que nós não a temos cá na porta..."

Este artigo foi publicado na edição especial comemorativa do cinqüentenário do jornal santista A Tribuna (exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda), em 26 de março de 1944 (grafia atualizada nesta transcrição):

Morros santistas

Paula Beiguelman

Enquanto aqui embaixo vivemos nossa vida urbana, numa terra plana entre as planas, reta e lisa e sem subterfúrgios, calma e sem altos e baixos ou pontes terrestres; vamos à praia ver os forasteiros que chamam de Santos a orla de areia; vamos trabalhar num centro que não é centro, mas é nordeste, porque é função do cais, ou vamos à escola tirar o diploma; enquanto nos espalhamos pelo Leste da cidade para carregar sacos de café - não, perdão, os que carregam sacos não os esquecem muito, porque não se dirigem ao Macuco e similes, dirigem-se a eles, aos morros...

Morros santistas... O aluno de orografia diz: Nova Cintra, Caneleira, Monte Serrat, Fontana, S. Bento, Pacheco, Penha, Santa Maria, e assim por diante, todos os anéis desse espinhaço único.

O contemplador de belezas naturais enxerga, nos dias luminosos, uma linda cadeia azulada a cercá-lo e, conforme a posição em que se acha, vê-a como fundo de uma dessas estampas de portos, que nos mostram caminhões atulhados de sacos e homens descarregando-os, à frente do armazém do cais.

Para o comum dos "planos", o morro é o Monte Serrat com seus atrativos tradicionais e, mais raro, o cassino. Ou os elementos de "turismo interno" de domingo e feriado que o mencionado e o de Nova Cintra apresentam. Em todo o caso, como Santos é o mar do paulista, o morro é a nossa garapa, provada, talvez, uma vez, apenas, só para ver como é, e de que, geralmente, nos esquecemos o caminho. E só lhe guardamos bem o nome, quando ele vem na lista das residências de necessitados, para exibir o único característico que conhecemos: "No morro mora gente pobre".

Coitado... Vai ver que, no momento em que o mencionamos, até pensamos na decantada Favela... Tal é o poder aproximador da palavra escrita.

***

As quinze mil pessoas, que representam pouco menos de um décimo da população santista, não se distribuem regularmente por todos os morros. O morro de São Bento é o mais populoso, com cerca de 1.000 almas. Depois vem o do Pacheco, com mais da metade, seguido pelos de Nova Cintra e Penha. E o resto da população se distribui pelos outros, num decrescendo, até chegar-se aos que apresentam população irrisória, como o de Santa Terezinha. Mas este último já pertence, evidentemente, a uma outra categoria: é morro granfino e o ar puro e o isolamento são aproveitados conscientemente...

Entretanto, todos os outros não pertencem a uma só e mesma espécie. Pode-se até fazer a divisão: rurais e urbanas.

Nova Cintra é um morro rural. O bonde deixa o movimento da Vila Matias e nos larga no sopé. Então, é só escalar um declive aplainado, de uma terra bem batida, onde a intervalos espaçados encontram-se encravadas pequenas plantações com uma casa de madeira no centro. Há muitas subidas, mas parece que todos os caminhos vão a Roma. Roma é uma planura tão horizontal que a gente até esquece que está num morro. Apresenta, além das chacarazinhas espalhadas pela sua superfície, a Avenida Santista, que é uma ruazinha larga e - maravilha! - com iluminação elétrica. Mas não é calçada e as galinhas passeiam por ela calmamente, entrando e saindo à vontade do mato da chácara que rodeia os chalés; mas o capim, sem necessidade absoluta de cerca, já sabe que não tem que avançar pelo meio da rua a dentro.

Como conhecer começo e fim de tal avenida? Pelos postes que estendem seus fios poucos metros que ela ocupa. Mas tanto antes como depois dos postes, o aspecto é idêntico, com a exceção de algumas casas de tijolo, sem chácara alinhadas direitinho numa das calçadas da avenida.

Uma dessas casas é o botequim de um sírio, outra o local em que funciona uma escolinha que só mantém o primeiro e o segundo anos primários, e outra, e outra, ainda, uma venda. Aliás, por Nova Cintra, espalham-se vendas muito bem providas. Mas não há açougue. Nem quitanda, absolutamente desnecessária, porque em volta de cada casita as bananeiras se amontoam e as hortaliças se atropelam, à espera do comprador; e a gente que vem da cidade e só enxerga, por onde quer que olhe, blocos de verdura distribuídos regularmente sobre uma extensão de calma verdadeiramente dominadora, sente-se, de fato, numa aldeia com todos os característicos peculiares.

Uma pequenita queimadinha e travessa, um amor de bonitinha, inteligente como quê, apesar dos seus oito anos incompletos, olhinho espevitado e curioso à cata de novidades com que entreter sua alminha infantil; criança que acha uma maravilha descer, bem cedinho, no domingo, com a mãe, "p'rá ir na missa da cidade" e que recordará para sempre que, quando fez seis anos, "foi com a mãe lá na cidade p'rá comprar roupa"; envereda por um caminho ao lado, e grita: "Mamanhe!"

A portuguesa magra, gasta e de óculos, sentara à porta - porque o dia luminoso está muito quente e aí, além de ar livre, está uma sombrinha que é um gosto - costura umas calças de brim - e o seu "que queres, ó menina?" não se entende bem, porque o rádio está aberto no último grau. Que engraçado: grau de botequim, naquelas paragens calmas e doces. A garotinha corre para ela: "Deixa eu ir mostrar a venda da titia e os engenhos e os estábulos?" - "Pois vai, ora essa!" O anjinho volta de um salto, com um sorriso de banda, contente mesmo: - "Ela disse que deixa!".

O sol está tão ardente que dá vontade de parar e sentar um pouco, embaixo de algumas das bananeiras que se enxergam ladeando o caminho, mas mais para dentro. A criança nem o percebe. A uma observação a respeito, coloca as mãozinhas no alto da cabeça, mas as plantas dos pés continuam em cima do chão quente.

- "Eu vou mostrar um estábulo; meu irmão, que é grande, também já teve um, uma vez".

- "Seu irmão já trabalhou num estábulo?"

- "Trabalhou nada! TINHA, ele tinha, ele, o meu irmão que é moço. Agora ele trabalha com o meu pai, na cidade. Olha, a gente conhece ela" - aponta a pequena uma simpática portuguesa de virote - aliás Nova Cintra é toda portuguesa. Descalça, lavava roupa numa tina - com água trazida de perto, porque esse líquido não corre dentro de casa... - em frente ao seu chalé, onde já mora há 20 anos.

- "A gente se conhece todos aqui" - diz ela com o seu sotaque intacto - "Quase todos vieram da terra, logo p'ra aqui, porque o aluguel dos terrenos é barato. Os homens vão trabalhar nas docas, no café, lá no trabalho deles. As crianças vão p'ra escolinha do 1º e 2º ano e depois descem p'ro Varnavé p'ra tirar o diploma. E depois os moços também vão p'ro seu trabalho, não é?"

- "E a senhora:"

- "A gente lava um pouco de roupa e, quando é ocasião, vai catar um pouco de café, não é? Depois, sempre se planta alguma coisa em volta da casa, não acha? E as meninas ajudam também o serviço!"

U'a menina corada e bonita sorriu para a mãe o seu sorriso sadio.

- "Mas aqui é bom mesmo" - continuava esta - "e depois é tão fresquinho..."

Essa portuguesa é apenas uma de todas essas campônias portuguesas, que continuaram seu sistema de vida num apêndice  da cidade, com a qual não se incomodam muito, utilizando-a, apenas, economicamente, sem preocupar-se, em absoluto, com o aspecto urbano. Entretanto, para os filhos, os novos, a urbe na qual estão encravados e à qual têm de descer umas quatro vezes por dia, não deixa de ter os seus atrativos, bem fortes, às vezes.

Mas não é raro notar o espírito de Nova Cintra, a consciência do morro rural, por assim dizer, arraigada no coração de muitos, principalmente moços filhos de proprietários de estábulos e engenhos, entretidos na labuta paterna, sentindo os mesmos interesses e aspirações nascidas da mesma vida dura e rústica, preocupados com a carestia da cana e a saúde das vacas. E a reunião domingueira junto de um engenho ou "anjainho", como dizem todos os portugueses, é bem boa para distrair. Para quê os cinemas: Nem sei...

Damos mais alguns passos e a pequenita informa que "este velho é intaliano", mostrando um senhor parecido com os octogenários veneráveis que se vêem em quadros, e que revolve a terra à frente de sua bonita casa de madeira.

Sua nacionalidade fá-lo um dos raros chefes de família não portugueses. Funcionário "apresentado" da City, já morou na cidade, e só depois - já faz vinte e poucos anos - foi morar no morro baratinho e bom. Fazia também carvão, no tempo em que isso rendia, nesse terreno que lhe fica em frente. Agora está viúvo e os filhos casados mudaram. "Foram-no tuto para baixo, na cidade. Só ficou comigo uma filha viúva. Mas eu quero ficar em paz aqui".

A garotinha mostra uma venda, mas aconselha esperta: "A da minha tia é melhor, vamos lá. É lá no fim desta rua, aqui perto da Igrejinha de S. João. Minha tia é a mãe das minhas primas que eu fui com elas no cinema, um dia."

Um rádio fez-se ouvir:

- "Todo o mundo tem rádio, aqui?"

- "Tem gente que tem e tem gente que não tem. Nós temos, sabe?"

Se sabia! Ainda tinha a barulhada nos ouvidos...

- "Pronto, é esta". Alguns portugueses descansavam do que haviam transportado para cima. U'a mocinha esperava a possível freguesia.

- "Chama a titia."

- "Mamãe! Mas é melhor entrá."

A titia era forte e corada, respeitável dona de um lar abastado - e sempre atarefada.

- "Esta vida é o que se vê. Um trabalhão, principalmente neste calor... A gente é mãe de família, tem venda... Ainda bem que a minha filha que casou agora - o quê? com moço de Nova Cintra, sim - me ajuda um pouco. Depois tenho de fazer bebidas e outras coisas para a venda. É, é..." E para a sobrinha: - "Vai, filhinha, mostra o anjainho que fica aqui perto".

A bonequinha saiu correndo e, ao chegarmos ao novo terreno, mostrou primeiro os meninozinhos curiosos que olhavam "com quem ela ia" e só depois informou: - "O irmão moço deles manda como dono. Olá ele! Mas o dono é o pai, não é ele!" Ei-lo-lá, o jovem negociante, regateando a cana, desconfiado, e preparando-se para levar seu produto para baixo.

- "No domingo vem uma porção de gente tomar garapa aqui" - sorriu a menininha. "E agora vamos no estábulo!"

- "Onde fica?"

- "É loguinho, por aqui mesmo".

Pusemo-nos a caminho. O sol queimava, mas a pequena não punha mais as mãozinhas na cabeça. De vez em quando parava para encher de inveja umas meninas acanhadas e uns guris carecas, com o seu "passeio diferente". Mas mesmo com essas pausas estava sempre adiante.

Voltamos à sua casa.

- "Mas afinal, onde é isso?"

Ela sorriu maliciosamente: - "É mais para lá, ainda..." Diabinho!

- "Olá! Esta mulher, o marido dela é peixeiro. Ela é nortista. Eu vi quando ela mudou para cá".

Seguimos. Um menino passa assoviando, vê a pequena em companhia de estranhos e se aproxima correndo. Puxa-a de lado e murmuram qualquer coisa. Depois sai numa carreira, rápido e arisco.

- "Ele é de lá do estábulo" - explica a cicerona.

Hum... Agora compreendo o seu jeitinho prevenido, vendo gente no seu caminho, e bem próximo...

Mas a pequenina continua calmamente e sempre em zig-zag. Depois arranca uma flor e oferece graciosa - "Olha florix, quem quer!"

Entretanto, moscas e mosquitos já anunciavam, em coro, a proximidade do nosso objetivo. Na janelinha do casebre podia-se perceber o olhinho do garoto do caminho, que mandara a irmã sair para escutar a conversa. E a mãe grisalha, obstinada em calar-se e em provar "sua ignorância", transformava o seu tempo de imigrada à vontade, ora chamando-o de "pouquinho" para contar, um segundo depois, que eram 23 anos (!). E contava, sem cessar, os aborrecimentos que lhe davam as "únicas duas vacas que possuía" e que não paravam de adoecer...

À porta do seu chalé, a mimosa criança se despediu, não sem antes oferecer mais uma florzinha, esta do seu próprio jardim: - "Toma e vem domingo na minha casa. Mas vem, hein? Vem mesmo". E, quando já estávamos lá longe, sua vozinha ainda avisava: - "Domingo... ô... Heins?"

Deixamos Nova Cintra horizontal para avançar morro acima, por um caminho pedregoso. Então as casas já se espaçavam mais e mais. Era raro encontrar uma, jogada nalguma escavaçãozinha. E desaparecia aquele aspecto de povoado, para dar a impressão de casas perdidas nas montanhas.

Num canto de acesso difícil, uma mulher, com lama até os joelhos, acompanhada da filha crescida, gritava qualquer coisa ao marido que descia, com uma lata às costas, equilibrado numas pedras pontiagudas.

- "Onde ele vai? Buscar água. A gente veio de Portugal e mora aqui alguns anos. Planta, faz carvão... Mas fica difícil o lugar aqui. Depois, tem de buscar água aí embaixo, para reserva. É ruim, principalmente quando chove. Lama e tudo... É a vida...".

Dava bem o que imaginar uma falta de água, de noite, naquelas condições. E as nuvens iam-se avolumando nesse céu dia quente.

- "Mas de qualquer jeito é difícil descer, não é?"

- "Bem", - esqueceu ela imediatamente a sua lástima - "venda é bom que tem na Nova Cintra mesmo; e açougue, desce num pulo o meu filho que tirou o diploma" - explicou, como se o diploma fosse indispensável.

Continuamos a palmilhar um morro que parecia deserto, esgueirando-nos por um atalho estreito, entre a mata cerrada e o espaço vazio, como um abismo. Súbito, porém, uma cesta de padaria, colocada numa encruzilhada de atalhos, anunciou casas próximas. E, de fato, já se encontravam homens que regressavam do trabalho e que levantavam seus chapéus murchos num cumprimento atencioso. Naquelas paragens silenciosas não há conhecidos nem estranhos. O cumprimento não distingue.

Eis-nos, enfim, chegados a uma nova morada. São três ou quatro chalés próximos. Todos eles rodeados de plantação. Olhando-se para baixo, avista-se o mar cinzento sob um céu nublado de crepúsculo escuro.

Uma velhinha idosa e magra, descalça e ágil como uma criança, diz:

- "Pois é, aqui é como na Nova Cintra, lá embaixo. A gente planta, tem uma vaca ou uma cabrita, os homens trabalham lá embaixo, vai-se vivendo. Quando sobra leite, vende-se também, como as bananas e verduras, que me vêm comprar! O quê: Há, sim, há de tudo. Vêm me vender de tudo aqui à porta. Ouça aqui: é só ter dinheiro! Ah! Ah! Ah! Olhe, lá vem a minha filha que casou agora. Ele veio comigo, faz vinte anos; tinha só dois aninhos!" E a filha ouvia a mãe, toda acanhada e, quanto respondia, era uma perfeita portuguesinha.

Saímos. A velhinha foi junto. Lembramo-nos, então, do doloroso problema da água, mas antes da pergunta, já ela tagarelava risonha.

- "Vou também porque vou buscar água. É que nós não a temos cá na porta".

Um "não a temos cá na porta" sorridente e despreocupada. Só. Amor de velha!

Continuamos seguindo. Mas, então, já era pleno morro de S. Bento.

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