A PAREDE CAIU - O centenário modo de distribuição de trabalho no cais de Santos, a
chamada parede, está com os dias contados. Quinta-feira, dia 4, começa a funcionar a escalação eletrônica. A cena das carteiras pretas
abanadas vai ser apenas história
Foto: Alex Almeida, publicada com a matéria
Parede nunca mais
Carlos Mauri Alexandrino
Quinta-feira, dia 4 de maio de 2006, encerra-se uma fase do
Porto de Santos. Entra em atividade nesta data a escala eletrônica para trabalhadores portuários avulsos. Os braços erguidos apelando por trabalho
têm sido uma imagem recorrente do porto. Fotos, filmes, livros, textos... Verdade que já faz tempo que a parede de escalação do porto não tem
mais a dramaticidade de antigamente, mas agora deixa a existência para entrar na história.
A informatização da escala eliminará interferências na escolha de quem trabalha e onde. De
um jeito ou outro, sempre se garantiu quem não estava presente no momento da escalação. Agora não mais.
Os chamados bagrinhos, que são atualmente os trabalhadores cadastrados no Órgão
Gestor de Mão-de-Obra (Ogmo), reclamam há décadas e esperam que o rodízio melhore sua renda. Já os carteiras pretas de antes, que hoje são os
trabalhadores registrados no Ogmo, temem perder renda.
Os estivadores criticam o sistema e, especialmente, o Ministério Público do Trabalho. O
presidente do Sindicato, Rodney Oliveira da Silva, tem repetido que "função do Ministério Público é fiscalizar e não impor um sistema com o Ogmo".
A partir do dia 4, caso não haja a implantação do sistema, a multa será de R$ 10 mil mais R$
500 por trabalhador avulso irregular, a cada dia.
Duplo corporativismo - Os estivadores querem um pagamento mínimo para quem for ao
cais e não encontrar trabalho. É justo, já que a nova escala quebra a simetria de dois corporativismos, o dos patrões e o dos trabalhadores. A
organização do trabalho nos portos sempre permitiu ao trabalhador comparecer quando quer, mas, em contrapartida, os patrões só pagam se houver
trabalho a ser feito. Isso tornou necessário um número de avulsos maior do que seria preciso.
Hoje as paredes são mais organizadas, mas a lógica é a mesma. Sempre vai sobrar gente.
Dispensado, o trabalhador tinha - e tem - pouca chance além de um bico eventual. Como a preferência é dos trabalhadores registrados, quem mais
sobra, por óbvio, é o cadastrado, o antigo bagrinho.
A escala eletrônica verifica licenças médicas ou de qualquer ordem, se o trabalhador está na
ativa ou suspenso e o tempo de descanso. Sem contar que o ingresso na área do cais terá passe e verificadores biométricos que examinarão a formação
óssea das mãos, como determina o ISPS Code (N.E.: código internacional de segurança nos portos, em implantação).
Serão três postos no cais. Neles os trabalhadores terão a escala de trabalho em telas
eletrônicas, com no máximo 15 opções de trabalho em cada navio, com o produto a ser movimentado e o local de atracação. O investimento foi de R$ 6
milhões.
10 milhões/mês - Os avulsos são cerca de 9 mil trabalhadores, de dez diferentes
categorias, entre os quais estivadores, doqueiros e conferentes, que trabalham dentro dos navios ou no cais, junto ao costado. São cerca de 6 mil
profissionais registrados e 3 mil cadastrados, que são uma força de reserva. Ele injetam na economia local, especialmente no comércio, mais de 10
milhões ao mês.
Tomando dados gerais do Órgão Gestor de Mão-de-Obra (Ogmo) sobre os ganhos dos avulsos em
março passado, foram pagos R$ 10,1 milhões a 4.823 trabalhadores, uma renda média de R$ 2.100. Os mais numerosos foram os estivadores, 3.126, que
ganharam R$ 6,7 milhões daquele total. Para efeito comparativo, em março de 2005, foram pagos R$ 10,8 milhões a 5.559 trabalhadores, uma renda média
de R$ 1.900.
Foto: Alex Almeida, publicada com a matéria
Beira de cais
Eugênio Martins Júnior
Branco, forte e valentão, Toninho Navalhada era o estivador
mais respeitado do cais santista. Senão o mais respeitado, pelo menos o mais temido. Andava armado com pau de fogo e tinha fama de ser bom atirador.
Arrumar arenga com ele era irresponsabilidade. Simião não ficava atrás. Moreno, parrudo, também era respeitado pela turma, tanto pela valentia
quanto pela disposição de encarar o trabalho. A desavença entre os dois, dizem, foi por causa de trabalho, mas o motivo real ninguém sabe ao certo.
O cais acabou ficando pequeno para os dois. Tava sobrando valente.
Simião,
é claro, não era trouxa, conhecia o oponente e sabia que a contenda teria de ser resolvida. Qualquer dia, o destino haveria de colocá-los frente a
frente e ele não ia ser pego de surpresa. Também passou a andar com o revólver na cintura. Era bom de briga, treinava boxe, mas não ia facilitar,
ainda mais com o Navalhada.
Finalmente o encontro aconteceu. Perto da garagem dos carros elétricos da Companhia, na
calçada do armazém V externo. No cais ninguém sabe de nada, muita gente, mas poucas testemunhas.
Eram onze horas da manhã de um dia de sol. Mas para o Toninho Navalhada o dia era de
tempestade. Apesar de ser bom de tiro tombou morto. O Simião recebeu um na coluna e nunca mais estivou. Ficou aleijado até morrer entrevado. Viraram
lendas.
Frederico Cabeleira, também, era branco e forte, valente de bater em polícia. Certa vez, em
um bar na Bacia do Macuco, saiu na mão com um sargento da temida Polícia Marítima até quebrarem todo o estabelecimento. Quem era doido de apartar?
Cabeleira foi preso e deve de ter pagado todos os pecados na mão do sargentão, mas sobreviveu, acabou morrendo de velhice.
Tinha também o Peixinho. Magro e briguento, morreu no bonde 19, na ponta da faca de um
otário que matou mais por medo do que por coragem. Histórias como essas não faltam no cais santista, ambiente insalubre e de homens rudes.
Para ouvir essas histórias, é preciso primeiro tentar ganhar a confiança dos velhos
estivadores, normalmente arredios à gente estranha. Houve resistência até dentro de casa. Muito do que eu sei foi contado elo meu pai, portuário
durante 23 anos e que também fazia fé na estiva.
Quando colhíamos os dados para essa matéria em uma das paredes da estiva, eu e o fotógrafo
Alex Almeida chegamos a tomar algumas "intimas".
Um estivador coroa ficou me encarando até chegar junto para perguntar: "E aí tá com algum
problema?" Eu disse que não e perguntei se ele estava. Meio desconcertado, ele resmungou e saiu andando. Beleza. Eu não tinha para onde correr,
estava segurando a cadeira para o fotógrafo, se eu soltasse ele caía.
Na verdade, eles não gostam de falar sobre as antigas malandragens, quando o mestre escolhia
a equipe "na fé" e colocava metade para trabalhar no navio e mandava metade para casa, mas na hora de receber todos ganhavam.
Muitas vezes o estivador fazia a boa em um dia e não ia trabalhar no resto da semana.
Então ele pegava o trabalho e o peixe é que ia trabalhar no seu lugar. O meu pai, que era operador de guindaste da Companhia Docas de Santos,
fez isso de montão com a carteira preta do tio dele. "Tu não conta essa história não, que é cagüetagem". Tô ligado, pai, eu também não gosto
de alcagüete, mas que a história é boa, ah, isso é.
Todos precisam sustentar a família, não é verdade? Antes de recriminar, é bom lembrar que a
situação também era cômoda para os operadores do cais, pois não tinham nenhum vínculo com os estivadores.
Sem falar dos riscos que levaram muitos trabalhadores da estiva a perderem a vida ou ficarem
inválidos. "Hoje ainda querem colocar só dois trabalhadores por navio. Isso é um absurdo, se der dor de barriga em um deles, ou o outro pára o
trabalho ou trabalha sozinho. E isso a R$ 2,59 por contêiner. Quer dizer que a minha vida vale só isso", reclama um trabalhador com 12 anos de
estiva.
Antigamente, os estivadores eram respeitados na Baixada Santista pela politização e unidade.
Eram a vanguarda dos trabalhadores brasileiros. Faziam greve para eles e para os outros se precisasse. Se os funcionários da Santa Casa entravam em
greve por melhores salários, o porto parava. Aconteceu em 1961. E assim era com tantas outras categorias. Pronto pai, o que tem de ser dito, dito
será, também não é só queimar os caras.
A época dos valentões foi também de honra e irmandade para a categoria. Na turma, dentro do
navio, não se escutava palavrão. Se um xingasse o outro ou fizesse corpo mole era esculachado pela coletividade e seu nome corria como mau
companheiro.
"Hoje o cara é escalado e se ele for vagabundo ou cachaceiro eu sou obrigado a conviver com
o cidadão e ele ainda diz que eu tenho que engolir e ficar calado. Pelo menos na época do grito eu sabia quem estava entrando comigo dentro do porão
do navio, eu confiava no parceiro", diz Mister Konde (com K), estivador das antigas, 56 anos de idade e mais de quarenta de cais. Começou ajudando a
mãe a pegar café espalhado pelo chão da Rua do Comércio e tem, ele próprio, um filho na estiva.
"Os caras valentões existiam, mas eles também defendiam os direitos da categoria. Às vezes
um era um cara errado e outro não era lá muito certo", diz Konde com K.
O certo mesmo é ficar com a observação de um doqueiro das antigas: "Lugar de freira é no
convento e não no cais do porto".
Ganham com o sistema, em primeira instância,
os trabalhadores portuários avulsos do Porto de Santos
Foto: Alex Almeida, publicada com a matéria
Rumo à modernização
Nélson Domingos de Giulio (*)
Em
sintonia com o desenvolvimento de equipamentos, tecnologias e processos na atividade portuária, o Ogmo estará proporcionando aos trabalhadores
portuários avulsos uma grande evolução e modernização no sistema de escalação ao trabalho portuário.
Através da construção de três novos postos de escalação distribuídos ao longo do cais do
Saboó, na Santa e no antigo Restaurante Portuário, com toda infra-estrutura de apoio, além de um moderno sistema eletrônico de escolha ao trabalho,
os trabalhadores portuários avulsos terão conforto, segurança e rapidez na busca diária dos serviços.
O projeto foi concebido em 2004, com a concessão dos locais de construções autorizados pela
Codesp. Após 10 meses de obras, em dezembro de 2005 iniciamos a instalação de todos os equipamentos periféricos para assegurar seu funcionamento,
tais como: Centro de Processamento de Dados, catracas de acessos, terminais de vídeos, quiosques eletrônicos, sistema eletrônico de monitoramento de
segurança, sanitários e agências bancárias.
Além desta estrutura nos três postos de escalação, especificamente no maior posto, conhecido
como P3, instalamos as seguintes áreas de atendimento aos avulsos: Serviço de Medicina Ocupacional, Segurança e Higiene do Trabalho, Treinamento e
Habilitação Profissional, Serviço Social e num futuro breve estaremos transferindo os profissionais de atendimento de RH/Benefícios aos TPA's.
Finalmente, não só a estrutura física/instalações mais próximas do local onde os
trabalhadores desenvolvem suas atividades, como principalmente a aproximação da equipe de profissionais do Ogmo apoiando e orientando os TPA's em
todos os aspectos profissionais do seu dia-a-dia, contribuiremos para a melhoria das operações portuárias e conseqüentemente com o aumento da
competitividade do nosso Porto.
Acreditamos que os beneficiários destes dividendos positivos sejam em primeira instância os
trabalhadores portuários avulsos de Santos.
(*) Gerente de Operações do Órgão Gestor de
Mão-de-Obra (Ogmo) do Porto de Santos
Cartazes de lançamento do filme. Em sentido horário, no Brasil, na Alemanha, na França, na
Espanha, na Argentina e em Portugal
Imagens publicadas com a matéria
COLUNA DO ZÉ
"Sindicato de Ladrões" e eletrônica
José Rodrigues
Há
um longo traço nas relações de trabalho que liga, ou talvez, desliga, o ambiente mostrado pelo filme Sindicato de Ladrões, da anunciada
escala eletrônica para o Porto de Santos, daqui a alguns dias. A distribuição do trabalho tira qualquer possibilidade de arbítrio pessoal, sob os
mandos da tecnologia, naturalmente programada, e da segurança, o novo ingrediente imposto aos portos e aeroportos, após o 11 de Setembro. Os
computadores não vão reconhecer compadres nem cunhados, numa postura olímpica de decisão inegociável, pelo menos no curto prazo.
A obra de Elias Kazan, um comunista arrependido, já tem 52 anos de rodagem e ainda sustenta
mercado nas locadoras. Não é para menos. Ganhou, na época, 1954, oito Oscars, com algumas curiosidades aguçadoras. A Fox descartou o script,
que foi aceito pela Columbia. Baseou-se em série de artigos do jornalista Malcolm Johnson, publicados na década de 40 no jornal New York Sun,
pelos quais lhe deu o prêmio Pulitzer. Marlon Brando, no papel principal, foi escolhido na disputa, diga-se, chance de maior bilheteria, com Frank
Sinatra.
Avalio que a tradução para The Waterfront, do original, para o Brasil, tenha um peso
excessivo, aquela forçada de barra para obter maior público. Os espanhóis preferiram Fronte del porto, ou La ley del silencio. Já os
franceses o chamaram de Sur les quais. A força do título Sindicato de Ladrões foi tanta que um parente meu, à época menino ainda
puxado pela mão do pai, sem saber que estava à frente de um cinema, ao ler o cartaz monumental, perguntou: "mas pode existir isso?"
Recordando, Kazan quis retratar o mundo de corrupção que existia em torno do trabalho no
porto de Nova Jersey, nos Estados Unidos. Quem distribui o trabalho, sempre com vantagens pessoais, é Johnny Camarada (Lee J. Cobb), cercado de
diretores e protetores da mesma laia. Quem abre o bico paga com a vida e aí começa o enredo que irá destruí-lo.
O astro Marlon Brando (Terry Molley) é um estivador, ex-boxeador, que tem benesses no
trabalho. Ganha no mole, sem sujar as mãos, até que, aparentemente sem saber, contribui para a morte de um companheiro "marcado". Isso lhe
traz dor de consciência, agravada pelo fato de que Edie (Eva Marie Saint), irmã do morto, tudo faz para desvendar o crime. Há uma aproximação com
Molley, que dá em namoro.
Molley passa a ser visto como delator e um seu irmão, que ajudava a gang do porto,
também aparece executado. Outro simpatizante das mudanças, Nocaute Dugan, em trabalho no porão, é atingido propositadamente por caixas de whisky.
O cerco a Johnny Camarada se intensifica, até que, em paralelo com um júri que apura os
crimes, dá-se um embate físico entre ele e Molley. Na escala para o trabalho, Molley fica de fora. Como ex-boxeador, ele apanha, mas vence. Então
surge o dono da carga e diz que "tempo é dinheiro", no bom estilo norte-americano.
Nesse ponto, os trabalhadores já tinham perdido o medo e apoiado Molley. A escala é ampla e
todos partem para as docas, no verdadeiro waterfront, para ganhar o pão de cada dia, sem precisar dividir o resultado.
Cartaz original do lançamento nos EUA, em 1954
Imagem publicada com a matéria
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