Manipulação do café nos armazéns de Santos. Feitas as mesclas em grandes montões e formados os
tipos, se procede ao ensacamento e pesagem definitiva
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Às portas do Brasil
O porto e a cidade de Santos - O
inesperado para o viajante do Prata - O que Deus deu e o que fez o homem - "Um grande porto universal" - A lenda da febre - A higienização pelo
progresso - O negro se vai - Os carregadores de café - Água, saúde, força, cultura - Uma cidade marítima e balneária - Regresso a bordo e rumo a Rio
de Janeiro
Anoitece
vendo-se o farol de Castillos, último indicador da costa uruguaia, e começa o Brasil a desenvolver nas sombras o desmesurado perfil de suas 5.000
milhas de litoral atlântico. Dois dias depois, ao levantarem-se os viajantes madrugadores, gozam o forte encanto da entrada ao magnífico canal em
cujo fundo está o porto de Santos.
Os montes que flanqueiam aquela ciclópica desgarradura de
15 quilômetros de fundo, por onde o mar, apaziguado, entra como buscando repouso, estão, da mesma forma que toda essa serra da costa, cobertos de
floresta de um verde castanho, onde uma que outra palmeira, antecipação da flora do trópico, abre seu trêmulo guarda-sol.
Entre elevações suaves, em cuja turbidez apraz ao homem
dos pampas repousar a vista, vai penetrando o transatlântico sem nenhum receio. O canal tem, pelo menos, 400 braças de largura e até 28 de fundo no
centro. A certa altura faz uma curva, como quem faz uma graça para agradar ao viajante e para lhe indicar por vez que aquilo não é obra de homens,
pelo qual pudesse escapar à aridez da reta.
Encanta mirar ao mar, de uma tão diáfana transparência,
que quando há sol dizem que se vê o fundo a vinte braças. Um viajante observa: "se aqui houvesse sereias e conhecessem o pudor, não iriam saber onde
esconder as caudas!"
À direita, uma fortaleza
duas vezes secular, crava seus muros na rocha viva, e de sua plataforma amendoada vêm ecos de Diana, que parecem saudar simultaneamente o dia que
nasce e o viajante que chega. Na borda esquerda, entre cortinas de bambus, assomam casinhas risonhas, de trabalhadores do porto, e mais distantes,
ao amor de uma curva da praia, onde as ondas chegam mansas, um, dois, três hotéis balneários, alçam suas construções caprichosas.
O novo porto de Santos - navios de ultramar atracados ao grande cais de pedra e carregando café
com os guindastes hidráulicos
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Aparece a cidade, branca e pitoresca na manhã cinza, já
fumegando chaminés de oficinas e fábricas, silvando e chiando locomotivas, movendo-se transatlânticos e chilreando guindastes hidráulicos.
Ao fundo, o canal se alarga, abrindo-se em hemiciclo, para
formar uma espécie de baía interior que faz-se de doca de manobras, onde viram e circulam sem embaraço transatlânticos e rebocadores, veleiros de
cabotagem e canoas guaranis, lavradas em um tronco de árvore, que cruzam, escorregadios como enguias, de costa a costa, ou estacionam, pescando.
Duas poderosas dragas bufam a curtos intervalos com ruído
de latas, passando e repassando o interminável rosário de seus baldes. O cais, firme, alto, liso, de pedra desde o contorno até o fundo, desenvolve
a linha rígida de seu muro em uma extensão de 3.000 metros, e onde acaba, um atarefado enxame de 1.800 trabalhadores carregando granito dos montes
vizinhos, trabalha em ampliá-lo para 5.000 metros.
Este é por agora o plano, que me vai explicando um
viajante indulgente – mas este porto não tem limite: toda a dupla costa do canal pode ser paredão, elevando a capacidade da movimentação, que no ano
passado foi de 1.3000.000 toneladas, tanto faz se a quatro milhões como a dez, vinte ou trinta mil. A natureza preparou as coisas com grandiosidade,
para que ao futuro, por muito que cresça, não lhe perturbem as costuras.
Não era meu propósito ocupar-me de Santos, pois com a
tradicional obsessão da baía de Rio de Janeiro, a verdade é que não se pensa quase em outra coisa. Quiçá isso contribua a que o porto de Santos
surpreenda o ânimo, como o surpreende, até uma franca admiração. Vem-se do Prata com a vaga noção de um porto sujo, onde se carrega muito café, mas
donde as tripulações, enquanto atracam os navios, têm de fugir para sanatórios especiais, para escapar à febre, deixando aos negros a tarefa de
carga e descarga.
SANEAMENTO DE SANTOS - Ponte de cimento armado, na Rua Braz Cubas (uma
das várias que servem ao tráfego sobre os canais de saneamento)
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Tudo isso era assim poucos anos atrás, e não nos preocupou
muito averiguar se continuava sendo. De modo que ao encontrá-lo convertido em lenda do passado, causa-nos um sincero maravilhamento, e nos
maravilhamos sem reserva, contentes no fundo de nossa admiração, pois ela nos revela que, ainda que sejamos quiçá um pouco vaidosos, não
nutrimos nosso engrandecimento com o leite azedo de emulações inferiores.
A ardente preocupação com o próprio destino, e a
satisfação do êxito alcançado à força de honrados suores, nos impedem por vezes ver o que passa no entorno e chegamos a pensar que vimos galopando
sozinhos, enquanto outras energias avançam também, com alento para grandes jornadas.
Mas esse ensimesmamento, que pareceria uma antipática
paixão, se não o explicassem patrióticos afãs de uma ordem superior, não nos é exclusivo: pelo que venho observando, observa-se igual fenômeno entre
os brasileiros. Alguns turistas de Rio que regressam ao Prata exprimem sua impressão de Buenos Aires em termos gratos a nosso sentimento,
declarando-se encantados pela cordialidade do acolhimento e pela amplitude da vida e das idéias, que encontraram ali, onde talvez, ainda que não o
dissessem, pensavam entrever prevenções ou antipatias.
Assim, não se pode dizer que se temem, nem que se odeiam,
nem que se amam, nem que tenham inveja, apenas que se suspeitam porque se ignoram – ignoram-se com incrível ignorância – estes vizinhos de parede
por meio. Ignoram-se em seus progressos, em seus idiomas, em suas letras, em seus sentimentos e interesses – vêm-se uns aos outros apenas os
defeitos, que é o que sobressai – gastam amiúdo um infantil prurido em comparar-se de longe, cotejando avenidas para ver quem as tem mais largas,
supondo-se intenções sinistras, apontando para a ironia, puxando a língua à estatística para fazer-lhe dizer coisas ingratas – tudo o qual, se não
pode chegar além, como acaso não poderia de fato chegar, não é certamente o caminho direito para avizinhar-se à finalidade amável e proveitosa de
uma estima recíproca.
Aos dez minutos de atracar nosso navio ao cais, antes que
comecem a baixar os passageiros, já estão os dois guinchos de estibordo levantando lingadas de café e sepultando-as em seu porão; enquanto com outra
mão, ou seja, com outro guincho, o vapor vai sacando de outra parte do ventre enormes fardos de mercadorias, caixotes e volumes de máquinas, e
depondo-as em terra firme.
O trabalho do porto se faz com uma precisão perfeita. Os
trabalhadores são em sua maioria portugueses, seguindo em número os espanhóis e alguns poucos italianos. O negro se foi quando se foi a febre, que
excluía a concorrência dominante do trabalhador europeu. Não vi meia dezena de negros entre aqueles milhares de carregadores que formigavam
transportando sacos dos depósitos aos vapores, apoiada a carga sobre os ombros e as colunas. Tal exercício dá um desenvolvimento taurino aos
pescoços daqueles homens, que chegam a suportar até cinco sacos de café, ou seja 300 quilos, sem aparente esforço.
SANEAMENTO DE SANTOS - Um dos três canais de cimento armado, abertos
através da cidade de Santos, para fazer a drenagem do subsolo. São navegáveis a bote e estão cruzados por numerosas pontes em todas as saídas de
ruas
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Há até bem poucos anos, as companhias de navegação tinham
todos seus refúgios em ilhas e sítios sãos do altiplano, para onde enviavam as tripulações, apenas entravam os navios no canal. Então não havia
cais, e a negrada, chapinhando em uma praia viscosa e malcheirosa, povoada por nuvens de mosquitos, fazia as operações de carga e descarga como Deus
era servido.
A natureza havia dado ao homem um dom que devia pôr à
prova sua atitude para se defender e prevalecer. Aquele canal admirável era uma espécie de escorpião que mordia com a cauda. Lá no fundo, onde era
preciso ir para buscar a cobiçada carga, se emboscava o lagarto da febre. E o telégrafo tinha que transmitir continuamente despachos sinistros:
"Tripulação dizimada pela febre", "Fretes encarecidos pela febre". O código telegráfico continha três páginas de fórmulas para transmitir fatos
relacionados com a terrível endemia.
Contudo, era tão excelente o porto natural e tão
indispensável à rica zona cafeeira de São Paulo, que não podia deixar de progredir, ainda que fosse sobre cadáveres. E progrediu, e o progresso
afastou o germe mórbido. Construíram-se os cais, suprimindo o pântano onde se incubava e ebulia o veneno febril. Vastas extensões foram aterradas,
construindo-se sobre elas os enormes armazéns atuais, capazes de guardar 300.000 toneladas; e depois de feita a obra com dificuldades inauditas,
encontrou-se a cidade com o belo e inesperado bônus de sua saúde, assegurada junto com seu progresso. E a evolução fatal e benéfica se completou
rapidamente: febre, mosquitos e negros foram varridos com o mesmo escovão.
Hoje Santos é um porto limpo na acepção completa do
vocábulo, e é um grande porto, em potência de ser dos primeiros, no Brasil, no continente e no mundo. Recorda-se ali com evidente agrado uma frase
do doutor Quirino Costa ao regressar da Europa e ver o porto de Santos, que visitou um dia inteiro: "Vocês não estão fazendo um porto brasileiro,
nem sul-americano: estão fazendo um porto universal".
Claro é que isto não se podia dizer se não estivesse
completado o quadro de vantagens com o fator profundidade. Mas já foi dito que o canal tem profundidade natural para qualquer calado, sem que haja
que gastar em mantê-lo nenhum centavo. A dragagem se faz na baía ou doca interior e ao largo dos cais ou muralhas. Logo chegarão a nove metros, e
prosseguirão escavando. Hoje mesmo entram e saem vapores como La France, que cala carregado 27 pés.
Os dados apontados bastam para notar a importância e o
futuro daquele porto – mas estas condições se purificam com o fato expressivo de que tão magno e florescente esforço seja exclusivamente brasileiro,
em homens, e idéias e em capitais. Dois filhos de Rio Grande do Sul, os senhores C. Gaffrée e Eduardo Guinle, fizeram a seu país este incalculável
serviço de abrir-lhe uma grande porta sobre o mar, e de abater o estigma da febre amarela em seu centro mais intenso e temível, dando-lhe uma lição
que foi aproveitada no Rio de Janeiro, para apagar também lá do passivo nacional a listra negra do flagelo.
Esta obra tem ainda o mérito de haver sido, sobretudo, uma
obra de tenacidade e de energia. A hoje poderosa Companhia das Docas de Santos, que tem na Avenida Central do Rio de Janeiro um palácio cuja porta,
de jacarandá talhado, custa 30.00 pesos argentinos, foi durante anos uma modesta empresa cheia de vicissitudes. Hoje se afirma que goza um lucro
líquido mensal de um milhão de francos. Se a tem, se a ganhou em boa lei, segue fazendo méritos para saneá-la.
Agora mesmo termina uma usina elétrica a 40 quilômetros de
Santos, em plena serra, usando uma cascata de 30 metros de altura que lhe dará 20.000 cavalos de força; moverá com ela todo o trabalho do porto e
armazéns, que hoje é hidráulico e a vapor, e a sobra, que será acima de dez mil cavalos, venderá a baixíssimo preço para bondes, moinhos e fábricas
na cidade. O preço mínimo a fixar será de 50 réis o quilowatt – uns 3½ centavos – e para grandes quantidades baixará à metade.
Com este enorme impulso, Santos, que começou sendo somente
o porto de São Paulo e que tem já 50.000 almas, se improvisará uma grande cidade fabril e uma bela cidade marítima e balneária, excelente para uma
temporada invernal de sossego e reposição fisiológica. Suas praias são esplêndidas, sua vida fácil, sua paisagem aprazível e risonha.
A municipalidade moderniza o antigo casario, abrindo
febrilmente longas avenidas de uma a outra costa do mar, aterrando terras baixas, construindo esgotos e fazendo, com ajuda do Estado, toda uma
custosa rede de canais de drenagem – à qual há que agregar, como elemento essencial da saúde e da vida,uma água de consumo deliciosa, que baixa
cantando, fresca e jovial, das alturas das montanhas.
Sente-se circular ali a atividade sanguínea e forte de
uma população enérgica, confiada em seu destino. Quantas outras pode a fantasia imaginar, destas cidades tropicais, supondo-as meio amodorradas na
enervante placidez de uma contínua siesta, comendo bananas e fazendo rimas, sem penas nem ambições, alheia sua alma a este anseio de
progresso que nos atormenta como uma sede?
É hora de seguir para Rio de Janeiro. Regressamos a bordo,
com o espírito cheio de sensações. Como se alarga o conceito da vida à medida que se move o horizonte! Ficaria pelo menos para outras dez
cartas com o que vi, senti e pressenti nesta primeira arribagem à terra do Brasil; mas tratarei de concentrar tudo em uma, antes de entrar no Rio de
Janeiro.
A ALTITUDE RETIFICANDO A LATITUDE - Relevo da zona ao redor de São Paulo (Comissão Geográfica e
Geológica do Estado) - Este relevo, sumamente prolixo e detalhado, além de mostrar com vivacidade como é acidentado o território paulista,
permite apreciar as dificuldades vencidas pela linha férrea que sai desde a praia de Santos, até São Paulo, e explica graficamente a razão do calor
que faz em Santos, encerrado entre o mar e a muralha da serra da costa, e do clima fresco que goza a capital paulista, distante só 10 quilômetros de
seu porto, mas bem acima, a 800 metros sobre o nível de Santos, já no imenso altiplano fértil, cuja altitude permite ao Brasil star ao mesmo tempo
na zona tropical e na zona temperada. Graças a este fenômeno, há em Minas e Goiás vastas extensões onde o calor do verão não excede ao de nossas
amáveis primaveras
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