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A IMPRENSA DO ANCHIETA E O SONHO DE MORUS
O "assalto aos céus". O D.O. Urgente como agente
Como diria Lênin, o revolucionário soviético, mais do que um informativo, o jornal é
um órgão de organização social. E este foi o D.O. Urgente.
Nada acontece por acaso e também não foi apenas a contratação de "profissionais da imprensa" para o
D.O. Urgente, o Diário Oficial do Município transformado em divulgador de informações das ações municipais de transformação social, o que
alimentou a estrutura auxiliar e essencial de divulgação da masmorra que se abria no Anchieta – e do o avanço político decorrente.
Os jornalistas são unânimes em confessar que foram "ajudados" pela "nobreza da causa" e seu ponderável
impacto nesse sucesso da empreitada noticiosa. Ela produziu o engajamento popular da questão – fator essencial para seu sucesso, consolidação e
manutenção até mesmo com governos reacionários. Eram fatos de forte apelo emocional através da simples revelação.
Como diz Leda Mondin, "a imprensa jogou uma luz sobre a questão escondida, fez um ‘como é que se
faz’ pedagógico", explica, que encontrou receptividade na índole solidária da população". Era o gancho necessário. Esses jornalistas eram
todos antigos militantes ecológicos e ambientalistas, de movimentos sociais em defesa das crianças de rua, pessoas que incorporaram interesses
coletivos de mudança, em tempos de ditadura.
Uma forma renovada de militância política que surgia após as batalhas da esquerda tradicional presente
nos movimentos sindicais e estudantis, da luta armada, da qual surgiria, por volta de 1979, o encontro para formação do Partido dos Trabalhadores –
reunindo setores organizados do movimento estudantil e popular e movimentos da Igreja Católica.
Era essa imprensa a sede dessa transmissão de notícias, que por si só significavam idéias e conceitos
que eram superados na clareza dos fatos revelados. Pessoas de boa índole, engajados na contra-cultura e no humanismo, na contestação, se reuniriam
aqui para a tarefa de transformar, exercendo a função da comunicação em paralelo com o trabalho militante dos companheiros da Saúde Mental, ouvindo,
traduzindo e transmitindo.
Nada mais seria como antes: ocorreria um tal nível de transformação, por estas mensagens quase
pedagógicas de um novo mundo que se abria para a psiquiatria e para a psicologia e para a sociedade, que dali em diante os antagonistas (e
defensores do ideário decorrente dos interesses da classe dominante) se revelaram confusos, contraditórios. Veremos isso.
E, em outra fase, aderentes às novas concepções – um processo que levaria décadas se fez apenas em
alguns anos. Ou seja, a imprensa do Anchieta produziu um sistema de evolução ideológica e humanitária que, incorporando setores, dava propulsão ao
sentido transformador da gestão municipal, parceira necessária.
Como motor das transformações operadas na administração democrático-popular da gestão da prefeita
Telma de Souza, foi necessária a implantação de um sistema de informação que, ao mesmo tempo em que não deixasse o monopólio da notícia nas mãos da
versão nem sempre real da imprensa oficial da cidade, abrisse corações e mentes para a nova realidade que se tornava possível com as medidas
adotadas.
Essa ação política era como o "assalto aos céus" que Karl Marx descrevera,
analisando a Comuna de Paris, que aqui se viabilizava na correção dos rumos tomados há tanto tempo. De repente, a justiça era possível, a liberdade
uma porta aberta, o fim da crueldade mais do que uma possibilidade, mas um serviço pronto para ser feito por pessoas que estudaram e idealizaram
esta missão utópica até então, tornada possível como o sonho de Morus.
A Prefeitura passava a utilizar o Diário Oficial da cidade, chamado agora de D.O. Urgente,
para veicular as informações sobre o que se passava nas atitudes revolucionárias do novo governo municipal, ampliando as visões sobre o tema. Em
relação ao Anchieta não foi diferente, com o jornalista José Roberto Fidalgo na cobertura diária da intervenção, na chefia de reportagem do
jornalista Helder Marques e na chefia geral da jornalista Leda Mondin, que comandava a Assessoria de Comunicação de Telma.
A edição do D.O. Urgente era dos jornalistas Oswaldo F. de Melo e Marcos
Ferreira, além de Carlos Mauri Alexandrino. "O segredo da estratégia", conta Mauri, um afinado e ousado profissional que já tinha militado na grande
imprensa, "era a informação em massa. Bastava ela, pois a característica humana do ato de intervenção em um manicômio cruel exigia apenas que a
população fosse informada sobre a realidade", diz.
Mauri Alexandrino
"O Anchieta – conta Mauri – era uma ilha na cidade, uma realidade hedionda ignorada pela
maioria ou por quase todos. Ninguém sabia o que se passava ali. Bastava contar e foi o que fizemos. Era um assunto quente, uma puta noticia,
do ponto de vista jornalístico. Sabíamos que a ousadia do ato traria enfrentamentos com o poder dominante, reações imediatas – e era necessário uma
blindagem que, exercida democraticamente, consistia em produzir uma massa de informação que trouxesse o apoio popular.
"Não era propaganda, era informação, mesmo", explica. Além da intensa cobertura da imprensa enviando
notícias para todo o país e exterior, além da presença de cada ato no D.O. Urgente, Mauri descreve a invenção do "release eletrônico", em que
eram produzidas e enviadas em bruto para as TVs material bruto de filmagem para ser editado pelos próprios canais, permitindo noticiários
diferenciados que, por seu caráter inédito, apareceram em todos os veículos de comunicação televisiva da capital.
"Deu samba", classifica Mauri falando sobre a idéia de Leda, "cumprimos a tarefa
construindo a contraposição opinativa desse ato humanitário e revolucionário", diz.
Leda Mondin
Leda Mondin, à época dos primeiros passos da luta em defesa da humanização dos hospitais
psiquiátricos, que não era ainda chamada "a luta antimanicomial", que caminhava junto com os ecologistas e defensores das crianças de rua, cobria o
setor pelo jornal A Tribuna. E acompanhou quando o grupo em que Telma participava trouxe um psiquiatra, de nome Humberto Mendonça, para
explanar na cidade sobre a questão.
Ele trabalhava com comunidades carentes em Diadema e pretendia instalar em Santos uma cooperativa de
assistência mental, com internamentos por períodos, em que o paciente volta para casa todos os dias. Humberto foi assassinado em circunstâncias não
esclarecidas. Intermediando contatos com a rede de imprensa nacional, que gerou noticiário internacional, a imprensa do Anchieta "escancarou" aquele
mundo perverso destruidor de pessoas, nos explica Leda.
"O Anchieta era sinônimo de coisa ruim, as pessoas o ignoravam, tinham medo. Quem entrava ali era
rotulado, oprimido, destruído. E a experiência de Santos deu origem a um novo discurso em todo o país sobre as políticas de Saúde mental", conta a
jornalista que atualmente é assessora da deputada Maria Lúcia Prandi, então secretária de Educação. "Trabalho intenso" - diz, "em que a imprensa
soube reconhecer o ato corajoso que se efetivava ali, o caráter inovador da experiência.
Essa característica haveria de dar – e deu - repercussão ao fato. No centro da atitude, Telma era uma
pessoa capaz de se indignar com as injustiças e essa atitude foi uma coisa de alma. Ela disse "Eu não posso ser prefeita de uma cidade que tenha
esta chaga. A intervenção no Anchieta não foi um mero ato administrativo". Essa referência seria repetida por outro jornalista, Fidalgo.
Fidalgo
Durante todo o primeiro ano da intervenção, o período dos conflitos mais intensos e dos maiores
enfrentamentos, o jornalista José Roberto Fidalgo estava lá, na assessoria direta dos fatos que sobrevinham daquela crueza de beleza mágica da cena
aberta do manicômio que se projetou transformar, em plena época de obras. Ao invés de pedreiros e carpinteiros, lá estavam psicólogos, psiquiatras,
dentistas, médicos, terapeutas – e o trabalho era grandioso.
"Foi uma das experiências mais marcantes de minha vida", conta, construída na visão de vida e
humanidade, abolindo de nós mesmos os pré - conceitos de discriminação, colocando-os em cheque e promovendo uma verdadeira revolução
interior", sintetiza o jornalista.
Hoje assessor de Telma, ele diz que "Você tem certeza de algumas coisas e de repente
tudo aquilo é posto em dúvida, na convivência com uma nova realidade. Gratificante a experiência da coragem vencer o medo de lidar com dedicação em
um tema que estava no armário, debaixo do tapete, escondido – e cuja solução certamente não daria Ibope (N.E.:
Ibope = Instituto Brasileiro de Opinião e Pesquisas Estatísticas. Da sigla se criou o termo "dar ibope" com o sentido de dar resultados
estatisticamente relevantes). Lá no Anchieta as pessoas não foram curadas, mas se levantaram por si mesmas a
partir das condições resgatadas e inerentes à sua face humana, igual.
"Não existe possibilidade neste tipo de assunto de trabalhar sem um envolvimento
pessoal, ideológico, passional, para que você tenha um resultado positivo, para você transmitir aos colegas com a exatidão frutificada da sua
percepção dos fatos", conta Fidalgo. Segue dizendo o jornalista que Telma pensou duas coisas antes de intervir no Anchieta: será que eu tenho
estrutura para isso? Não, não tenho. Mas mesmo assim eu vou em frente, porque eu não poderia governar uma cidade que está doente, que mostra este
sintoma de um manicômio dentro de si, que merece ser tratada. E fez o que tinha que ser feito."
As profecias de Lane Valiengo. O raio de sol
Na trajetória da imprensa engajada na luta da Saúde Mental há fatos explicáveis e outros nem tanto.
"Coisa de louco", reverbera a frase popular. Na antológica reportagem sobre o I Seminário de Saúde Mental da Baixada Santista, assinada pelo
jornalista engajado Luiz Augusto Lane Valiengo – quem forneceu o registro histórico, hoje assessor do vereador Adelino Rodrigues -, publicada em
A Tribuna de 15 de agosto de 1980, este articulista escreve por sua conta e risco na página 23, bloco 5 – sintetizando pensamentos manifestados:
"As duas coisas estão juntas, é impossível separar: somente a mobilização de
toda a comunidade poderá criar um espaço para modificar o panorama da Saúde Mental e, ao mesmo tempo, da questão social e política brasileira.
Atacar apenas um destes pontos será inútil, segundo psicólogos e psiquiatras".
Foi, profetizaria o jornalista nove anos antes, a mobilização social que garantiu a conquista e
consolidação da modificação do panorama da Saúde Mental, na caminhada para mudança da questão social do país. Evidente é que esta é uma lógica
conhecida, mas valeu o seu resgate.
Mas havia outra profecia, a do "raio de sol": vinte e quatro anos depois da reportagem, na comemoração
dos 15 anos da intervenção no Anchieta, o desenho especialmente produzido para os cartazes e panfletos do evento histórico ocorrido na Unisantos era
de uma visão descrita por um paciente, como explanou Tykanori, de um raio de sol entrando dentro do hospício quando a porta se abria para a chegada
dos "libertadores". Havia escrito o jornalista no ponto 7 da referida reportagem, no bloco denominado "A casa dos loucos":
"Todos em fila, os homens vestidos com roupas largas e brancas andavam
pelo corredor, como sempre fazem, envoltos com imagens de seus mundos particulares. Era apenas mais um dia, como tantos outros, no Hospital
Anchieta. Mas, de repente, um dos pacientes teve uma visão extasiante: um raio de sol, que teimava em entrar por uma porta qualquer, que
alguém havia deixado entreaberta. Todos correram, para ver o sol mais de perto, sentir o calor. E ficaram ali, como uma benção divina tivesse caído
desavisadamente naquele mundo de loucura e demência. Afinal, eles já tinham esquecido até que o sol existia, depois de tanto tempo vivendo apenas
com luz artificial, por aqueles corredores frios e celas úmidas. No hospital psiquiátrico, até o sol é proibido". O raio
de sol foi o tema.
O quadro 6 da reportagem de Lane, intitulado "Perseguições, ameaças e violência", escreve sobre
pacientes morrendo afogados dentro das celas. Em Santos, pessoas com câncer terminal sendo internadas como doentes mentais e tratadas com choques
elétricos. Em Minas, doentes mentais junto com leprosos.
Pessoas simplesmente bêbadas sendo internadas e tratadas como loucos sem cura. Perseguições e ameaças
contra médicos psiquiatras e psicólogos, atingidos pelo Ato Institucional número cinco ou pela Lei de Segurança Nacional por se rebelarem contra os
horrores que acontecem nos hospitais psiquiátricos, os que se arriscam a denunciar estes fatos, a eliminação física de pacientes-problema. É a
realidade de 1980, que naquele momento se articulava para reverter. Denunciá-los, um papel da militância na imprensa, sem o que não haveria solução. |