SUPERAÇÃO - No Lar das Moças Cegas, em Santos, a arte de superar as dificuldades em
meio à aprendizagem, dedicação de voluntários e reforço da cidadania
Foto: Nirley Sena, publicada com a matéria
LAR DAS MOÇAS CEGAS
Exemplo de trabalho e dedicação há 63 anos
São mais de 30 atividades, desde a alfabetização até o goal ball
Bruno Guedes
Da Reportagem
"As mãos olhando por ela, o passo calmo, firme e
silencioso, casa cheia de ecos de um mundo não seu, mundo em que a imagem e a cor pareciam a nota mais viva das outras vidas de ilimitados
horizontes".
Nesse trecho do conto As Cores, de Orígenes Lessa, o mundo que pertence somente
aos outros na perspectiva da protagonista Maria Alice, deficiente visual, é o mesmo no qual se inserem centenas de deficientes visuais atendidos
pelo Lar das Moças Cegas, em Santos. Mundo que, um dia, muitos enxergavam, mas hoje têm a oportunidade de conhecê-lo com outros sentidos e de
aprender a fazer parte dele.
Por meio de mais de 30 atividades, entre aulas de alfabetização, capacitação, braile e
informática, atendimentos terapêuticos, Atividades da Vida Diária e goal ball (esporte para cegos), eles aprendem, ou reaprendem, a
viver com sua condição.
Há pelo menos 20 anos, o atendimento no lar não é exclusivo às moças. Contempla também
crianças, jovens, rapazes, idosos, sejam homens ou mulheres. O nome é fruto de sua origem, há 63 anos, quando a entidade foi inaugurada como um
abrigo para moças cegas por dirigentes de outra instituição de assistência localizada na Capital.
Nos anos 80, passou a ser um Centro de Educação e Reabilitação para Deficientes
Visuais. Hoje, além da sede social, a instituição possui um Centro Aquático e um sítio em Pedro de Toledo, onde também são realizadas atividades de
reabilitação.
Foto: Nirley Sena, publicada com a matéria
O lar é uma entidade sem fins lucrativos que, atualmente, atende 641 pessoas com perda
total da visão ou com comprometimento parcial do sentido. São os que possuem um resíduo visual e enxergam muito pouco, ou somente a claridade.
"Todos (os serviços) são gratuitos e disponibilizados por faixa etária e avaliação. O
deficiente passa por processo de triagem e é direcionado para as atividades das quais necessita", explicou a supervisora de Relações Institucionais
da entidade, Ana Lícia Gotardi.
Reconhecida como entidade de utilidade pública nas esferas municipal, estadual e
federal, a instituição tem 98 voluntários que promovem atividades extra-curriculares e ajudam nas tarefas que geram renda para o lar. Outros 87
profissionais ajudam na reabilitação dos deficientes, entre pedagogos especializados, psicólogos, profissionais da Educação Física e terapeutas
ocupacionais.
Entre os voluntários estão também todos os dirigentes. Presidente da entidade, Carlos
Antônio Gomes se dedica ao Lar das Moças Cegas há décadas. Ele acompanha as atividades há 58 anos, desde que tinha um ano de idade. "Meu pai era
presidente nesta época", lembrou.
Gomes preside a entidade há 18 anos e se recorda com clareza dos tempos em que o local
abrigava somente 20 meninas. "Hoje, são 203 somente em reabilitação (completamente cegos)", orgulhou-se Gomes.
Para manter tal estrutura, contou a supervisora Ana Lícia, a entidade arrecada fundos
com eventos realizados durante o ano, com a renda de um bazar e uma lotérica localizados dentro do estabelecimento. A entidade faz ainda locações de
móveis e veículos e serviços eventuais. Outras fontes de recursos são os convênios estabelecidos com prefeituras da região e verbas do Governo
Federal destinadas a projetos educacionais.
"Estamos buscando a auto-sustentabilidade da instituição", explicou a supervisora.
"Além das atividades gratuitas, caso o deficiente ainda não tenha capacidade de mobilização, a entidade faz o transporte até sua casa".
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Carlos Antônio é o presidente
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Ana Lícia explica estrutura
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Fotos: Nirley Sena, publicadas com a matéria
Técnicas específicas - Como abrange uma educação especializada, a entidade
conta com algumas particularidades, sendo que muitas das quais são possíveis por meio de parcerias. A biblioteca, por exemplo, possui mais de 2 mil
títulos doados, todos em braile.
As aulas de alfabetização são ministradas com o suporte do Telecurso 2000,
disponibilizado por uma parceria com o Senai. Na aula de informática, explicou Ana Lícia, são utilizados programas que repetem, por uma voz, o que
está escrito na tela. Os alunos aprendem digitação e decoram a posição de cada tecla.
As aulas de braile são ministradas por uma professora especializada neste tipo de
comunicação, com réguas com células e máquinas de escrever. "Tenho alunos muito esforçados", ressaltou a pedagoga especializada em deficiência
visual, Sandra Regina de Souza Silva.
Há pelo menos 20 anos, a instituição também
passou a atender crianças com tarefas diversificadas
Foto: Nirley Sena, publicada com a matéria
Superação das dificuldades é uma constante
Entre os profissionais do Lar das Moças Cegas, estão também 8 deficientes visuais que
já foram atendidos pela entidade. É o caso do auxiliar de escritório, e estudante de Pedagogia, Aílton Souza Freitas, de 38 anos. Casado há 10 anos,
união que trouxe como frutos duas filhas, ele faz todo o trabalho de rua da entidade.
Freitas contou que mora em São Paulo, mas fica em Santos nos finais de semana para
trabalhar e estudar. "Quando quero saber a localização de algo em São Paulo, pergunto a ele. O Aílton sabe tudo da cidade, melhor do que muita
gente", brincou o presidente da entidade, Carlos Antônio Gomes.
Nos estudos, as dificuldades são rapidamente superadas. Quando prestou vestibular, ele
contou com a ajuda de um auxiliar que leu toda a prova. "Mas a faculdade também pode mandar a prova para o Lar (das Moças Cegas) e eles passam para
uma folha em braile", lembrou Freitas.
Nas aulas, grava tudo o que é dito e, ao chegar em casa, passa o conteúdo para o
computador. Para estudar e fazer as provas, Aílton também usa o computador, graças ao curso de digitação do qual participou durante os anos em que
foi atendido pela entidade.
Cidadania |
"Este lar é uma porta que vemos para o mundo. Faz a gente perceber que somos
cidadãos e temos os mesmos direitos de todos"
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Valéria Cristina da Silva Teixeira
Aluna
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As aulas também foram a porta de entrada para Aparecida Pereira Brito. Aos 18 anos,
ela ingressou na entidade. Fez os cursos de alfabetização, supletivo e computação. Os conhecimentos em Informática possibilitaram que ela
conseguisse um emprego de telefonista em uma universidade. Lá, faz relatórios diários de todas as ligações recebidas.
Questionada se tem aspirações de ter uma carreira, ela abre um sorriso: "Sabe quando
você faz seu trabalho com amor? Eu sou assim, porque adoro ser telefonista".
Já Valéria Cristina da Silva Teixeira, 38 anos, além da Informática, dedica-se às
aulas de natação, ao curso de Ensino Fundamental do Telecurso 2000 e à disciplina Atividades da Vida Diária. "Este lar é uma porta que vemos para o
mundo. Faz a gente perceber que somos cidadãos e temos os mesmos direitos de todos". Valéria tem de 10% a 13% da visão por conta de uma retinose
pigmentar, uma doença que a acometeu aos 13 anos.
Regina Helena Maia Moreira também perdeu a visão por conta de uma enfermidade. Ela
teve uma infecção ainda na adolescência. "Era uma fase em que estava cheia de planos. Fiquei totalmente perdida".
Regina ficou sabendo da entidade por uma amiga e participa das atividades há seis
anos. Hoje, no último ano do curso de Pedagogia, já está se dedicando ao seu trabalho de conclusão de curso, com o tema Mercado de Trabalho para
o Deficiente Visual.
Regina Helena Moreira perdeu a visão quando era adolescente por causa de uma
enfermidade
Foto: Nirley Sena, publicada com a matéria
Trabalho feito por voluntários ajuda na obtenção de recursos
A aula de dança no Lar das Moças Cegas é uma terapia para a diretora escolar Sônia
Regina Bassili da Silva. Voluntária da entidade há 1 ano e meio, ela ensina os deficientes visuais a dançarem pelo menos uma vez por semana. "O
resultado é maravilhoso. Trabalhamos as partes motora, mental e social", ressaltou ela.
Na verdade, Sônia nunca havia ensinado dança antes. Ela percebeu que poderia se
dedicar ao voluntariado e, por meio de amigos, chegou à entidade. "Fui aprender para depois vir aqui ensinar", brincou a diretora.
Para ajudar os mais novatos nas aulas de Sônia Regina, a dona-de-casa Balbina Maria do
Nascimento dedica algumas horas de sua semana para dançar com os alunos. "É muito bom dar alegria a eles. Foi a melhor escolha que eu fiz",
emocionou-se Balbina.
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Antes, as alunas iam às ruas para pedir brindes
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Renda - Os serviços que proporcionam renda ao Lar das Moças Cegas recebem a
dedicação de experientes voluntárias. A costureira Rita Simões Teixeira, de 71 anos, passou a manhã da última segunda-feira dobrando camisas de uma
empresa que contratou a entidade para este serviço.
Rita também não deixa de participar dos eventos que resultam em mais recursos para a
instituição. "Meu maior prazer é fazer algo por eles. Adoro ajudar".
Há 19 anos trabalhando voluntariamente pela entidade, a também costureira Mafalda
Paiva Areas não hesita em dar uma colaboração em todos os afazeres. "Lembro quando íamos com as alunas na rua para pedir brindes", recordou Mafalda.
Rita Simões dobra camisas para empresa que contratou o Lar
Foto: Nirley Sena, publicada com a matéria
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